março 29, 2020

.......................... ENTRE o AMOR e o TEMPO: LUPE & MORVAN




“O futuro só nasce de um invento:
nós dois, amor, nós somos este tempo.”

“Olhando dentro de mim,
de dentro da natureza,
eu a refaço - e invento a beleza.”


VERSOS de LUPE COTRIM
(São Paulo, SP. 1933 - 1970)

FOTOGRAFIAS de MORVAN FRANÇA
(Belo Horizonte, Minas Gerais. 1987 – 2016)


01


A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.

Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.


02


Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspectos de vastidão.

Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?


03


— Eu sou de pedra, me dizias,
a defender tua distância.

E esquecias o musgo,
essa tua epiderme de ternura,
e o teu corpo de carinhos,
num horizonte de água e terra,
a te envolver na vida.


04


E esquecias
que és pouso de borboletas,
alicerce de flores,
abraço de raízes,
vulnerável em tudo
do que em ti pertence
e minha mão possui, acaricia.


05


Pela terra em que não me desfiguro,
hei de surgir um dia em cristal puro.


06


Meu corpo — para ti somente —
deve emergir a cada gesto límpido
e profundo deve ser meu futuro
para reter-te e recriar-te permanente.


07


E por isso temo. No meu sentimento
sofro por ti. Receio
ser larga a hesitação de meu caminho,
ser um mito a conquista da montanha,
ser pobre e fugaz o meu espaço
na extensão que reduz teu infinito.


08


No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.


09


É o tempo meu receio, não o amor,
que este perdura. Por novos desígnios
refaz em outro aquilo que não for
mais seu momento: trama outro domínio.


10


Esta brisa entre nós, este sossego
agudo de desejo, esta presença
alerta, esta carne toda apego
certo se apagam: tempo algum sustenta
ou seduz uma solta intensidade.


11


Se entre nós cada folha de silêncio
for linguagem dos gestos desprendidos
e em clareiras tombar cada momento
o que outrora foi verde e preenchido,
segurarei na queda tua imagem.  
 

12


porque entre raiz e folha
o animal salta,
elástico, e desconheço
liberdade tão alta;


13


a solidão é o rosto da humanidade
a terra é voo, o céu se reaproxima,
e em tudo estou presente, simultâneo,
o horizonte a meus pés,
como um riacho doce.


14


corpo de estrela, impulso de planície,
a morte é apenas uma flor
vermelha, que passa no vento,
o amor se desvenda nas colheitas,
rostos anônimos surgem
dos troncos de cimento


15


Dentro da paisagem
cortada de pássaros
um voo se cala


16


Num grito gutural,
agudo como soluço do mundo,
o súbito apelo da solidão,
no corpo prolongado
de plumas e surpresas.


17


No ar suspensa
teia tecendo
seu íntimo movimento.


18


um gesto distraído e delicado,
no instante em que criava o verme
e sonhava a estrela.


19


Coreografia aérea,
sedoso equilíbrio
subindo da terra.


20


Fios prateados
que o olhar desenha
sem poder caminhar.


21


para criar um novo chão
entre a altura
e a solidão.


22


Viverá como vivo.
O tempo e seu assalto
não nos caberá
fora desse pacto
sonoro e terrível;
a morte é o que não falo.


23


Seduzidos pela brisa
mergulhamos na poeira dourada
e nos azuis incontáveis:
mas rompe-se entre os olhos
uma miséria sem trégua
- essa é a nossa treva.


24


A beleza se aconchega
madura e esplêndida
no umbral dos solares,
é ela quem nos vê
altiva e derradeira.


25


Se morre por outros rumos
aquém e além do dizer
e do poeta é a sina
não viver só de palavra
mas do chão, da cerca, da água
onde germina em silêncio
o que desabrocha a fala.


26


Se vive com fome e sede
com amor estilhaçado
analfabeto, amarrado,
com chumbo dentro do ventre
sem sexo, luz, alvorada,
um homem vive de pouco
resiste às vezes de nada.


27


Hei de inventar amor num desafio
às mais concretas frases, aos dias úteis,
amor de ser a outro que é demais
ter um mundo por dentro desprovido.


28


Todo poeta é uma flor que permanece
espada aérea e franca
contra a morte

Todo poeta é uma cor que permanece
no olhar sobrevivente
e na luz das manhãs que voltam sempre


29


Também de dor se morre pois é morte
o sentimento ausente. O ser feliz
é ser presente, sem que mais importe
esse profundo sulco e a cicatriz
que no corpo nos marca o sofrimento.


30


Se nenhum amor me resguardar
em seu abraço
a dar-me sensação
de que possuo e pertenço
quero pegar a vida
palmo a palmo,
traço a traço,
num dia esfuziante de azul
com o mar na boca e nos braços.


31


Quando eu morrer,
se morrer,
eu que renasço a cada momento,
criando íntimos laços
por toda natureza,
eu que perduro no eterno
da intensidade,
quero morrer assim:
os olhos na distância
do entendimento
e o corpo penetrando na beleza,
passo a passo.
Meu fim transformado em luz
dentro de mim.


32


Ser transparente
é quase um suicídio,
um transbordar de si
perdido, ir a outro de nós
que nos retém, apagado
o sentido.


33


Um poeta suicida
anunciou vento adentro
- o romantismo acabou.
O que estava por detrás
lá nos fundos da poesia
é que mata. E o matou.


TODA a OBRA de LUPE COTRIM



RAIZ COMUM (1955)

MONÓLOGOS do AFETO (1956)

ENTRE a FLOR e o TEMPO (1961)

CÂNTICO da TERRA (1963)

O POETA e o MUNDO (1964)

INVENTOS (1968)

POEMAS ao OUTRO (1970)

ENCONTRO (1984, antologia)






LEIA sobre MORVAN


A ALQUIMIA FOTOGRÁFICA de MORVAN


INTERLÚDIO - 29 vezes MORVAN

ANATOMIA da AUSÊNCIA


MORVAN por ANTONIO NAHUD


Antonio Nahud e Morvan em 2014