março 09, 2020

....................................... CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 04




“É pelas nossas ambições que a vida nos domina e castiga. Só os abandonados e os que renunciaram a tudo podem considerar-se livres e serenos.”
ALBERTO MORAVIA
A Romana (1947)
(Roma, Itália. 1907 - 1990)

Ilustrações:
MOEBIUS
(Nogent-sur-Marne, França. 1938 - 2012)


Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.

Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.

São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog.

Confira a quarta narrativa.

04
La GIORNATA D´UNO INESISTENTE

Viajando pelas verdes montanhas do fim do mundo, por vezes não me encontro. Se ao menos eu tivesse a certeza de que há esperança em qualquer lugar. Mas não desisto, vou em frente. Alemanha, Áustria, Itália. Irmão beat, aqui estou! De carona, comboios de terceira classe, ônibus, sutilezas. Dormindo na relva de bosques e jardins, campings, pensões baratas e castelos invisíveis. De súbito, amanhece mais um dia no verão europeu. Abro os olhos sonolentos ao lado de um monumento em homenagem aos mortos da Segunda Guerra, lendo um por um os sobrenomes em relevo. Um despertar cara a cara com o heroísmo, o patriotismo e a estupidez das guerras. Para viver, jovens partem para a batalha agasalhados no medo. Buscam a eternidade e acabam como cadáveres. Que tolos! Mais sensato seria ri dos interesses sem escrúpulos dos governantes. 
 
A simpática vila nas montanhas chama-se Pievepalago. Será um reduto de gente que combate a indolência e o torpor com o calor humano? Nem tanto. Depois de beber lentamente um capuccino, dou uma volta pelas redondezas e coloco outra vez o pé na estrada, sem deixar de anotar aventuras no “Diário”: uma inusitada carona ao entardecer, numa furgoneta vermelha conduzida por um alemão e com um rastafari espanhol como co-piloto, além de meia-dúzia de cães. Uma dupla irrequieta, maluca, ouvintes de minimalistas melodias de flautas oníricas. Estão a caminho da Turquia. Mas como dizia um ditador italiano, muito a propósito em certos casos: “Entre o dito e o feito, há uma distância do tamanho do mar”.

No interior do carro fedorento, restos de comida, mochilas, tocos de cigarros, conchas, caixas de cd’s e anúncios de festivais de música. Recordaram uma brasileira chamada Joana, parceira de viagem durante alguns dias. “Os brasileiros são interessantes. Misturam dinamismo, sensualidade e espiritualidade na seu ser, nos deixando hipnotizados”, definiu o garoto germânico. Ao me ver folheando “Se uma Noite de Inverno um Viajante / Se una Notte d’Inverno un Viaggiatore” (1979), de Italo Calvino, revelou-me a profissão e as “qualidades” do seu pai: “Ele é um famoso e talentoso escritor”. Qual o seu nome? Não respondeu, rindo, misterioso. Será que viajei com o filho de Peter Handke ou do Gunther Grass? Após 12km, saltei na primeira cidadezinha com algum mérito, embora qualquer vilarejo com quatro ou cinco casas já me pareça fascinante.
 
Em Modena, visitando um amigo ator, surpreendeu-me a beleza, a cultura e a tranquilidade pouco turística do lugar, passando horas na Piazza Grande, fascinado com o Duomo e a Torre Ghirlandina. Uma cidade protegida pela sacra La Boníssima, um ícone medieval, que leva uma das mãos no coração. Já Milão é diferente, opressora e sofisticada. Faz parte da Europa atraente e aflitiva. Percebi uma fortaleza de altivez, de orgulho e frieza. Seus habitantes demonstram rara ternura, movidos por um ideal organizado, por um entendimento. Perderam a alma no universo do dinheiro, das máquinas e da desconfiança. Procuro não deixar levar nos extremos: nem niilismo nem crença nos fenômenos.

Recordo uma passeata neo-nazista, este ano, em pleno centro histórico de Lisboa, divulgada com benevolência pela imprensa. Muitos não suportam os imigrantes, o mundo diferente que se descortina. Ainda assim trocam palavras de cortesia, proferidas com brevidade, de modo conciso, para não dizer hipócrita. Nada fazem para se aproximar do estrangeiro, pouco se esforçando para compreendê-lo. As recordações prendem-se em experiências simples, de pouca importância, fincadas na suavidade. Nada de rancor ou comentários autoritários! Procuro a palavra moderada, de toada pertinente. Não ofendendo será mais fácil não ser ofendido. 
 
Viajo em rostos nada familiares, figuras que poderiam ter sido inventadas por Gianluigi Toccafondo, um discípulo de Bacon. Às vezes vejo-os como minúsculos espelhos num globo giratório. Não viajo para bancar o importante. Não enxergo as paisagens, as pessoas, os costumes e a gastronomia dos países de acordo com os padrões da minha própria pátria. Seria irracional, mal-educado. Viajo na beleza do ato de viajar, crendo no entusiasmo que é capaz de despertar e aprendendo com motivações privadas. São os meus singelos segredos da arte de viajar.

Caminho por um destino inevitável pintado por um renascentista. Inexistente, confirmo o impalpável ao notar que tenho lido muito pouco nesses dias, quase nada, vez ou outra o jornal “Corriere della Sera”. No entanto, a história da literatura italiana se aprofunda em mim há muitos anos, da poesia a prosa, desde as primeiras finuras verbais aos mais recentes autores contemporâneos: Dante, Petrarca, Boccaccio, Luigi Pirandello, Ungaretti, Vasco Pratolini, Giorgio Bassani. O conto “O Amante Abandonado”, de Alberto Moravia, que ensaia um diálogo interior do qual o leitor raramente emerge absolvido, é um tesouro literário. Pier Paolo Pasolini, arauto do bem e do mal, autor de “Uma Vida Violenta / Una Vita Violenta” (1956) é um dos meus mestres
 
Camillo Boito toca fundo com a pequena novela “Sedução da Carne / Senso” (1883), assim como Alessandro Baricco me emocionou com “Seda / Seta” (1996). A escrita de Italo Calvino desliza sensações, luminâncias. Primo Levi, Dino Buzzati, Leonardo Sciasca e Antonio Tabucchi são válidos. Umberto Eco? Um intelectual chato, mas há quem considere “O Nome da Rosa / Il Nome della Rosa” (1980) uma obra ilustre. Para focar a sensibilidade da literatura italiana necessitaríamos de uma perspectiva do qual se visualize a realidade. E qualquer realidade é diversa, pessoal. Esta é a grandeza e o limite: aspirar a realidade implica encontrar privilégios em um e outro, iluminá-la em uma certa luz e não em outra.

A caminho de Triste e Veneza, recordo cidades toscanas (Florença, Siena, Lucca, Vinci, Pisa), seus arredores dedicados ao cultivo de videiras e oliveiras, convertidos em lugares indicados para aqueles que buscam a tranquilidade mais absoluta sem renunciar ao prazer de se enamorar por uma beleza isenta de dores e frustrações. Desfruto desse paraíso. Amante da história, estive em vilas onde as marcas dos etruscos perduram. Em Talamone, próxima ao Parque Nacional de Uccellina, restos arqueológicos desta civilização e vestígios medievais.

Uma aventura que desperta entusiasmo na minha curiosidade por terras desconhecidas, cuja essência nunca me é indiferente. Sempre fugindo de turistas, hotéis internacionais, elementos folclóricos e da falta de bom senso, viajo ao acaso, maravilhado. Afinal um dia, assim espero, envelhecerei. Depois morrerei. Sendo feliz, mesmo por instantes, a trajetória cigana vale a pena. E sou feliz agora.

Milão, Itália
agosto de 2005

CONFIRA as CRÔNICAS ANTERIORES

01
RELÂMPAGOS RASGANDO a NOITE
http://cinzasdiamantes.blogspot.com/2018/06/como-um-relampago-rasgando-noite.html

02
A ENCRUZILHADA dos DESTINOS
http://cinzasdiamantes.blogspot.com/2019/01/cronicas-da-floresta-negra-02.html

03
O CHAPÉU MÁGICO
http://cinzasdiamantes.blogspot.com/2019/12/cronicas-da-floresta-negra-03_9.html

 
 
 
 
 
  
 
 
 
 
 
 
 

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