fevereiro 21, 2020

....................................................................................................... Os PÁSSAROS




Ilustração: ERIC PAUTZ
(Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 1974)


Em céu dourado de entardecer, pássaros seguem rumo ao horizonte voando em formação semelhante a um arco. Apelo irresistível atrai esses migrantes, que partem em busca da sobrevivência tão logo se manifestam os sinais de escassez de alimento e de mudanças no clima. Ainda que correndo riscos extraordinários e despendendo alto custo energético, se põem a caminho quando é chegado o momento. Não incomodam, não desacatam, não resistem, não agridem. Harmoniosos e obedientes ao instinto batem em retirada sem nos darmos conta de sua partida.

Desde a antiguidade, o aparecimento e o desaparecimento de pássaros deixam os naturalistas inquietos. Informações na anilha – um anel metálico colocado em algumas espécies, auxiliando no rastreamento – revelaram, por exemplo, que uma batuíra abatida por um caçador em São Paulo saíra de Washington, D.C., distante cerca de 10 mil quilômetros. Falcões peregrinos voaram da Groenlândia à capital paulista, enquanto um filhote de albatroz, anilhado em ilha próxima à Nova Zelândia um mês antes, morreria a 6 km ao sul de Tramandaí, no Rio Grande do Sul.

Migrantes rumo ao desconhecido, nossa peregrinação não é majestosa como a dos pássaros. Distraímos-nos pela caminhada, perdidos em conflitos. Em compulsão, aceleramos o carro para ver o pedestre que atravessa a rua se assustar e correr. Desprezamos os velhos, aniquilamos o habitat e abatemos parceiros de migração. Em nome do egoísmo e de toscas ambições, nos deixamos levar por uma espécie de instinto bárbaro e individualista. Se por um lado, a ausência que dói é a que nos deixa incompletos, por outro insistimos em preencher o vazio com a estupidez das ambições.

Inflados pela expansão avassaladora do ego, somos levados a crer que a vida só vale a pena se chegarmos à fama e riqueza, vencedores de uma corrida onde ganham os que furam filas, os que praticam a rapinagem com o dinheiro público, os que manipulam covardemente a boa fé de seus iguais. Por isso tão poucos gastam o tempo a perder com a bondade. Solidariedade, só negociada. Pobres de nós, solitários migrantes para quem o nomadismo é o outro nome da liberdade. Ruidosos e desengonçados, seguimos agitando asas feitas de ilusão, fincando nossa bandeira como donos da História.

Já os pássaros deixam a impressão de que a natureza os privilegiou com sabedoria e simplicidade. Um terço das espécies catalogadas bate em retirada a cada ano e, destas, metade morre no caminho ou permanece no exílio, enquanto a outra metade retorna ao local de origem. Missão cumprida, a vida se renova. Quanto aos sonhos, também eles os tem, encantadoramente singelos. Segundo a revista “Science”, pesquisadores de Chicago concluíram que os pássaros sonham com seus cantos.

Talvez mais do que em qualquer outra época, estamos deixando marcas que ferem a Terra. Ainda assim, continuamos inchados de orgulho, como um dos personagens de Saint-Exupéry. De tanto olharmos para o céu, contabilizamos centenas de planetas fora do Sistema Solar, supondo a existência de outros mundos habitáveis. Acaso voltássemos no caminho percorrido descobriríamos, envergonhados, que apenas deixamos um rastro de infâmias. Se houvesse solidariedade pelo que nos foi dado, poderíamos, quiçá, voar suavemente como os pássaros, legando ao futuro a mensagem de um mundo melhor.


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