Fotografias: MORVAN FRANÇA
(Belo Horizonte, Minas Gerais. 1987 – 2016)
Dotado de uma “independência criativa muito acima do
comum”, na análise de Assis Brasil. IVAN ÂNGELO (Barbacena, MG. 1936) começou a
escrever em 1954 e logo foi premiado num concurso da
Prefeitura de Belo Horizonte com o conto “Culpado sem Crime”. Em 1966, reuniu contos, e, numa
parceria com Silviano Santiago, lançou “Duas Faces” e faturou o prêmio Cidade
de Belo Horizonte. O livro reflete a questão da injustiça social, uma constante
em toda sua obra.
“A Festa” (1975) e “Amor?” (1995) receberam o Prêmio
Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Foi colunista dos jornais “Correio
de Minas”, “Diário de Minas” e “O Tempo”, de Belo Horizonte. Duas vezes
premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo livro de contos “A
Face Horrível” (1986) e pelo romance juvenil “Pode me Beijar se Quiser” (1997).
Teve livros publicados em inglês, francês, alemão e espanhol. Cronista da
revista “Veja” de 1999 a 2018.
Dono de um texto exemplar, sua narrativa atrai o leitor,
prende-no desde a primeira frase e só o liberta na última linha. Casos
bem-humorados e outros nem tanto, retratos de tipos humanos, relações amorosas,
cenas urbanas, crítica social e de costumes, alguma poesia. Um assunto puxa o
outro, e o que emerge desse conjunto é um panorama muito pessoal da vida
brasileira. Seu lançamento mais recente é um livro de crônicas: “Certos Homens”
(2012).
A CRÔNICA: “ASSOMBRAÇÕES”
Existe amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando aparecem, como uma assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Vadinho de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem. Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de improviso, sem arrepiar ninguém.
Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio, uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece: era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma leitura, ao escovarmos os dentes e até na hora do amor. A gente pode estar conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje em nossa perna tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa conversa.
Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta, sensível, do mesmo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma chinelada da mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo quem se convida.
Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria, independentemente de vontade ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua visita-relâmpago, muda ou falante, e some.
Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa trêmula, temerosa de desamor: “Não sou mais virgem” - quando isso tinha importância. Outra, espantada com as descobertas: “Eu não acho que ia gostar tanto disso”. Outra, cobrando: “Você não assume”. Outra, no escuro: “Quem é você?” Amores de outro mundo não se sentem obrigados a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se mostram.
Alguns perdem a visagem e nos assaltam só com uma sensação, um nome, umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em sua fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada.
De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é essa sua intenção, se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer: são desejos, frustrações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar, alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão satisfeitas no seu canto.
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais! São borboletas: passam, enfeitam o instante com algumas cores, voejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.
A OBRA de IVAN ÂNGELO
HOMEM SOFRENDO no QUARTO (1959)
DUAS FACES (1966)
A FESTA (1975)
A CASA de VIDRO (1979)
A FACE HORRÍVEL (1986)
O LADRÃO de SONHOS e OUTRAS HISTÓRIAS (1994)
AMOR? (1995)
PODE me BEIJAR se QUISER (1997)
O VESTIDO LUMINOSO da PRINCESA (1998)
O COMPRADOR de AVENTURAS e OUTRAS CRÔNICAS (2000)
AS MELHORES CRÔNICAS de IVAN ÂNGELO (2007)
CERTOS HOMENS (2012)
O PENSAMENTO de IVAN ÂNGELO
“Essa é nossa maldição como escritores: exorcistas dos
demônios de nosso grupo social... Por haver entendido, afinal, que a escritura
me faz escrever...Os brasileiros escrevem para compreender seu país e nisso
estão atrasados em relação aos americanos de língua espanhola, que já passaram
dessa fase. Escrevem para explicar, para contar. Compreender o Brasil não é
fácil, mas é menos difícil do que explicá-lo”
“Tem que pensar numa história, numa intriga, tem que
inventar. Podem ser flashes, alguma coisa que pinta, um olhar que você tem com
alguma pessoa. Todo mundo põe recordações nas histórias, não conheço um autor
que não coloque. Digamos que, dependendo do que você escreve, 50% são emoções
que você viveu. Pego um personagem central, num conflito que se desenvolve ao
longo de todo o livro, e faço a história pronta e acabada. Você tem um fio
condutor e o resto tem que inventar, criar (os personagens). Surgem talvez de
pessoas que conheço, de comportamentos que quero denunciar, ir contra ou a
favor. São idealizações dentro do aspecto geral da sociedade. Como faço uma
literatura um pouco crítica da sociedade, procuro detectar esses comportamentos
em pessoas, anoto, e a partir daí vou desenvolvendo. Cada personagem é um
envolvimento total, mesmo que seja de ódio. Já cheguei a pensar: ‘o que seria
bom para tornar tal personagem mais condenável, mais antipático?’. Para isso
tenho que pensar como aquilo me ofenderia, é também uma forma espelhada de
procurar os personagens. (...) Muitas vezes (a narrativa) dá nó. Às vezes paro
no meio do processo, não engata, não vai. De repente você vai, vai e muda o
processo. O principal são os personagens centrais, isso faz parte do conflito.
Os outros vão surgindo e o que for necessário aparece. A cabeça do escritor dá
muitas voltas. São armadilhas que o texto mesmo prepara pra gente e aí, tem que
parar”.
“Posso enumerar dessa época um mestre da vida inteira,
Carlos Drummond de Andrade, e mais Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Murilo
Mendes, Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, alguns românticos como Gonçalves
Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu, alguns parnasianos como [Olavo] Bilac,
Machado [de Assis], Raimundo Correia [um dos fundadores da Academia Brasileira
de Letras]. Lia ficção, também, mas a poesia é que me enchia as medidas. De
prosa, não há como escapar de Machado de Assis, ele nos persegue. Escritora
moderna que me maravilhou pelo estilo, porque das histórias nem me lembro direito,
foi Clarice Lispector. Escrevi um conto imitando-a, “Menina”, está por aí em
antologias. Devo ter sofrido alguma influência de poetas e ficcionistas de
língua inglesa, modernos, que lia bastante, aí já na fase de aprimoramento da
escrita, digamos. Mas foram tantas as leituras prazerosas e exemplares que fica
impossível destacar alguém. Como diz Drummond, no poema “Resíduo”, “de tudo
fica um pouco”.
“Eu acho que seríamos injustos com os críticos se
fossemos apontar os defeitos no trabalho deles, considerando as condições que
eles têm atualmente. O trabalho é mal pago, eu trabalho na imprensa e sei
quanto os jornais e revistas estão pagando. Eles têm de fazer muitas coisas
para conseguir dinheiro, e um livro dá trabalho para ler e analisar. As
resenhas a gente não pode criticar dizendo que são ligeiras, porque essa
ligeireza na imprensa tornou-se qualidade, e não defeito, não é verdade? Bom,
então o que temos, na realidade, é um comentário conteudístico e, no último
parágrafo, vem é bom, é ruim, é mais ou menos, na base do gosto pessoal. Nessa
base eu estou muito bem, só tive uma crítica mal-intencionada do ponto de vista
ideológico, só uma. Não vou dizer qual, mas os preconceitos e os dogmas
entranhados no raciocínio do crítico estão muito visíveis, ele pedindo um herói
em choque com a sociedade, pedindo um encadeamento de ações que conduza a
consciência do leitor, coisas assim. Agora, análises mesmo, tive poucas. Creio
que faltaram análises que abordassem meu trabalho com as palavras, que
examinassem o uso crítico que eu faço de certas linguagens, as minhas soluções
para um dos problemas que excitavam e, às vezes, até inquietavam os poetas e
ficcionistas do modernismo brasileiro, que é o problema da simultaneidade.”
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