janeiro 12, 2020

..................... PELO VALE das SOMBRAS AFOGADAS do AMOR

morvan frança por antonio nahud



“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

CLARICE LISPECTOR
(Chechelnyk, Ucrânia. 1920 – 1977)

Ilustrações: MARC CHAGALL
(Liozna, Bielorrússia. 1887 – 1985)


Após vinte e dois dias nas terras do sem-fim, volto ao reino. Ao abrir a porta, deparo-me com ele afogado em águas de uma tempestade do dia anterior. Algo raro em Natal, a terra do sol. Ruas se abriram como xoxotas em flor e outras se metamorfosearam em lagoas assombradas. Nunca passei por tal birra da natureza. Atravesso o escritório, a sala principal, sala de leitura, dois quartos, uma copa, cozinha, banheiro. Tudo tomado pelas águas do céu. Abro portas, janelas, ventanas, convidando o vento. Chet Baker na trilha-sonora, sento, numa espécie de torpor, e choro. Reajo aos poucos, passando a vista na tragédia. Intocáveis as telas, livros, rascunhos, fotografias, DVDs. Emocionante!

A água toma o chão de cerâmica. Como um banho purificador, preservando as pequenas preciosidades que quase todo mundo tem. Telefono a diarista, ela está fora da cidade, de férias. No verão, no Rio Grande do Norte, muitos mudam para as pequenas cidades do litoral potiguar. Pobres e ricos. Voltam na quarta-feira de cinzas. Uma vizinha simpática decide me ajudar. Por umas três horas enxugamos e organizamos o ninho. Chet tocando e na faxina interminável bebemos Veuve Clicquot. Não me desespero, a enchente parece-me absolutamente normal. Como um roteiro de um filme seguido à risca. Nesta cena, encontro a caixa de papelão azulada. Guarda pedaços de M. Bilhetes, rabiscos, poemas, citações, uma cueca, livros, cadernos-diários, e-mails, fotografias, batas hindus, pulseiras, colares etc. Separei para jogar fora. Nunca tive coragem. Está há meses na nossa cama, como um objeto maldito de decoração.

A água cola páginas. Fotografias borram. Letras mortas e misturadas. Sinto um primeiro impulso de salvar parte do tesouro, mas dou um passo para trás e desvio-me da tentação dançando. Avisto a cama de casal ensopada pelas águas do outro lado do mundo. Arrasto-a à garagem, onde habitam bons ventos. De um pequeno rasgo no forro do colchão, cai um delicado colar de cobre, de designer grego antigo. Nele, pendurado, um minúsculo papel amarelado, dobrado. Em chamas eu o abro: “De mãos dadas sempre. Sempre é para sempre, nêgo. Acredite. M.” 

Toma-me um cabulozo ardor poético! Ele surge em uma tempestade após mais de três anos do suicídio. Meu sorriso agradece, mas atiro a caixa valiosa, o bonito colar e a eternidade de um amor solitário no lixão na esquina da rua. Volto à ilha. Está tomada por centenas de formigas de asas, como em um conto do vermelho García Márquez. Não me rendo, não me importo. Sou romântico, mas a vida continua. Com amor ou dor.

ANTONIO NAHUD
Natal, Rio Grande do Norte
Janeiro de 2020

 

Um comentário:

Mary Ferreira disse...

Parabéns Nahud, como sempre impecável