morvan frança por antonio nahud |
“Sim, minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas
tempestivas
nem das grandes ventanias soltas,
pois eu também sou o escuro da
noite.”
CLARICE LISPECTOR
(Chechelnyk, Ucrânia. 1920 – 1977)
Ilustrações: MARC CHAGALL
(Liozna, Bielorrússia. 1887 – 1985)
Após vinte e dois dias nas terras do sem-fim,
volto ao reino. Ao abrir a porta, deparo-me com ele afogado em águas de uma
tempestade do dia anterior. Algo raro em Natal, a terra do sol. Ruas se abriram
como xoxotas em flor e outras se metamorfosearam em lagoas assombradas. Nunca passei
por tal birra da natureza. Atravesso o escritório, a sala principal, sala de
leitura, dois quartos, uma copa, cozinha, banheiro. Tudo tomado pelas águas do
céu. Abro portas, janelas, ventanas, convidando o vento. Chet Baker na
trilha-sonora, sento, numa espécie de torpor, e choro. Reajo aos poucos,
passando a vista na tragédia. Intocáveis as telas, livros, rascunhos, fotografias,
DVDs. Emocionante! A água toma o chão de cerâmica. Como um banho
purificador, preservando as pequenas preciosidades que quase todo mundo tem. Telefono
a diarista, ela está fora da cidade, de férias. No verão, no Rio Grande do
Norte, muitos mudam para as pequenas cidades do litoral potiguar. Pobres e
ricos. Voltam na quarta-feira de cinzas. Uma vizinha simpática decide me
ajudar. Por umas três horas enxugamos e organizamos o ninho. Chet tocando e na faxina
interminável bebemos Veuve Clicquot. Não me desespero, a enchente parece-me absolutamente normal. Como
um roteiro de um filme seguido à risca. Nesta cena, encontro a caixa de papelão
azulada. Guarda pedaços de M. Bilhetes, rabiscos, poemas, citações, uma cueca,
livros, cadernos-diários, e-mails, fotografias, batas hindus, pulseiras,
colares etc. Separei para jogar fora. Nunca tive coragem. Está há meses na
nossa cama, como um objeto maldito de decoração.
A água cola páginas. Fotografias borram. Letras
mortas e misturadas. Sinto um primeiro impulso de salvar parte do tesouro, mas
dou um passo para trás e desvio-me da tentação dançando. Avisto a cama de casal
ensopada pelas águas do outro lado do mundo. Arrasto-a à garagem, onde habitam
bons ventos. De um pequeno rasgo no forro do colchão, cai um delicado colar de
cobre, de designer grego antigo. Nele, pendurado, um minúsculo papel amarelado,
dobrado. Em chamas eu o abro: “De mãos dadas sempre. Sempre é para sempre,
nêgo. Acredite. M.” Toma-me um cabuloso ardor poético! Ele surge após mais de três anos do suicídio. Meu sorriso agradece, mas atiro a caixa
valiosa, o bonito colar e a eternidade de um amor no lixão na esquina
da rua. Volto à ilha. Está tomada por centenas de formigas de asas, como em um conto do vermelho García Márquez. Não me rendo, não me importo. Sou romântico, mas a vida continua.
Com amor ou dor.
ANTONIO NAHUD
Natal, Rio Grande do Norte
Janeiro de 2020
Um comentário:
Parabéns Nahud, como sempre impecável
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