agosto 31, 2024

........................................ Na TEIA do DESTINO AZUL – livro 01

 

para Friedrich Hölderlin
 
Ilustrações:
IVAN IVANOVICH SHISHKIN
(1832 – 1898. Ielabuga / Rússia)


Ao mundo meu coração dei.
Obrigado, humanidade,
(apesar de tudo).
 
 
01
É no uso palpitante, consciente, da palavra
eleita mestra do espírito
que se traça o caminho para o azul do ser.
Mas sei, também, de nossa dança
sobre um abismo, em que o equilíbrio
é incerto e a sensibilidade imprevisível.
 
02
Quantos outros me faltarão,
para chegar finalmente a mim próprio?
 
03
Como sementes atiradas ao vento,
nascemos numa terra qualquer
que passamos a chamar nossa,
e esquecidos desse esplêndido
acaso de sermos tão-só atirados,
julgamos que somos dali.
Não somos nem de nós próprios,
imagine da terra, onde,
ao acaso, nascemos.
 

04
O lugar da poesia é um espaço de luz,
que fica além do pensamento comum.
Além, porque contempla a eternidade
na folhagem cíclica das árvores existentes;
porque ela é mais vida que o comum pensar,
como um perfume vigilante do esplendor de uma flor.
 
05
És o meu país, disse-lhe,
e o teu corpo o meu lar.
 
06
Minha vida é o meu reino, nela sou eu o rei.
Se for um bom rei, terei uma vida feliz, e o meu povo,
que é o meu corpo, será, no fundo, o verdadeiro
soberano. O meu corpo é assim, o princípio
inviolável de toda a soberania.
 

07
Todos me chamam um nome,
e eu nem sequer me conheço.
 
08
Como é bom, como é belo
ser ave no meio de nuvens.
Sentir que a nossa fé irradia
brancura, que somos tão virtuosos
como notas numa pauta de música
que nada irá mudar nosso destino,
nem mesmo os sonhos desfeitos
nas asas da história.
 
09
Sem te poder nomear, nem ver,
sinto-te. Pela tua presença benigna
ardem-me sentimentos de êxtase,
teço pirilampos e noites de lua nas
miragens de felicidade. Dói-me saber
que não te posso ver, mas a clareira
em que vive ilumina meus passos
como um sol interior. Quem és tu
invisível bem?


10
Não me forcem a buscar a poesia
unicamente em versos iluminados.
Permitam, ó conservadores, que a procure
e encontre num sorriso fugaz,
em palavras de amor e, porventura,
no azul da natureza.
 
11
Essa doçura que irrompe na minha mente,
mais forte que os mais contraditórios sentimentos,
esta brisa fresca atravessando jardins perfumados,
esta vontade de responder com impensável suavidade
à fealdade mundificada, será isto amor?
Serão as coisas assim somente por eu te amar?
 
12
Entregue ao teu destino
te deixo, pátria que me nasceste.
Pátria de deuses emudecidos, onde,
por entre a treva, ressurgem muros
cinzentos, teimosos em sua tirania
fantasmática. Devolve-me o destino
azul, ó deusa humana,
estou farto do maltrato, da corrupção.
 
 

13
Sou, dizendo que sou,
sendo o que faço.
Digo o oculto,
revelo ao dizer a face
que sou e propriamente
desconheço. Dizer
o oculto é trazer à clareira
o que sou, densificar
que sou.
 
14
Devolvo-te agora a luz azul
que me deixaste contemplar, absoluto.
Por esse raio que me cindiu primeiro,
e me reuniu depois na leveza de um ser
iluminado para dentro, avançando
em círculos interiores mais amplos,
como um pássaro finalmente atirado
ao infinito do voo de insustentável leveza.
 
15
Cheguei à luminosidade do ser,
à permanente dor alegre de existir.
Desoculto, até aqui vim pelo fazer
que a própria aventura ditou.
Não espero pelo destino,
aprendi a arrancá-lo à indiferença
com estas mãos de terra e frutos.
 
 

16
Que liberdade imensa que nasce
de não querer ter futuro, de
não haver amanhã pelo qual deva
esperar. Amanhã é já hoje, e flutuo
na ponderação de rostos antigos
de lembranças, ocultos ou resplandecentes.
Subirei, ou descerei pela escada,
mas não irei amanhã, porque
lá chegarei hoje.
 
17
Espero nu as tardes em azul
nos jardins encantados da memória.
Espero ir na carruagem dos
nobres cavalos, pela sombra da serra,
às muralhas de mata, ver a terra respirar,
feliz, com a luz que a povoa. Espero o
brilho dos frutos na nudez do dia.
Ficam as manhãs, que se repetem,
as manhãs em que o pólen e a maresia
embriagam infâncias cintilantes. Passeios
à beira-mar, nas longas tardes
de verão. Velas, ondas, pescadores,
beijos aquáticos, risos, tênues memórias.
Assim fico.
 
18
Dou tudo o que tenho por um pouco
de azul, uma cintilação de verdade.
Que me importa o que tenho se tudo
que quero é ser levado sempre
em torrente pelo rio profundo da vida?
 

19
Il vient toujours. Aprés la juissance
ephemère de la beauté, aprés
cette maladie passagère de l’amour.
Un jour amére, aprés l’espoir,
aprés le sang sacrifieè. C’est bien
le jour aprés: il te renvoy au dèlá
du miroir, sans conditions, à l’autre
solitaire en toi-même.
 
20
Qual é o preço de querermos ser
bons, justos e pacíficos no mundo?
É a solidão, é o esquecimento. Mas é
nesse momento em que
o mundo nos esquece,
que alcançamos o azul da liberdade.
 
21
Depois de longa jornada na vida,
sincronizada nas profundidades da
poesia e da filosofia, depois de
muito saciada a inexaurível
sede de conhecimento, duvido
afinal de tudo, e já só compreendo
a maltratada linguagem do mundo:
a dos injustiçados, dos oprimidos,
dos carentes de amor.
 

22
Reunamos forças mais uma vez.
Preparemo-nos para a derradeira
batalha. O bem vencerá. A verdade
triunfará, e o mundo será inundado
de beleza. A verdade é o termo vencedor.
A fé a sua única arma.
 
23
Ouço os avisos da direita,
e as infâmias da esquerda.
Espectador arrepiado de indignação
e esperança.
 
24
Paira sobre mim,
tão mortal como todos,
oculto e eterno, o sentido
da palavra poética. Ao
escrevê-la, vejo-a
como estrela aclaradora
de um jogo de figuras
estranhas, misteriosamente
silenciadas. Sem a palavra
poética, o homem seria
só assombrada forma
da matéria.
 
25
Agora, sim: que se inicie, lá fora,
a tempestade. Agora que varri
a casa! que escrevi, pensei, decidi;
que este dia, corretamente, concebi.
Que qualquer dia fosse assim!
Vertiginosamente criativo,
na solidão em partilha:
com a luz azulada e tranquila,
de um guia espírito antigo.
 

3 comentários:

Lurdinha Teles disse...

Ler seus textos, poesias é um grande aprendizado.
Sinto-me especial pela sua deferência em encaminhar a minha pessoa suas criações literárias.Obrigada pela sua atenção tão cativante !
Grande abraço 🥰

Alice Dias disse...


Li, reli, depois li para Mamãe. Ficamos emocionadas. Lembrei de Rilke e Pessoa. Vc é um grande poeta, amigo querido.

Ylca Fernandes Maciel disse...


Dentro destes versos existe um verdadeiro poeta apesar deste tempo obscuro que nos consome e corrói as nossas entranhas. Parabéns!