novembro 25, 2014

.................................... A ALQUIMIA FOTOGRÁFICA de MORVAN



“A carícia do olho sobre a pele é de uma doçura extrema”
GEORGES BATAILLE 


A fotografia enlaça olhares. O mineiro MORVAN FRANÇA, radicado em Natal (RN), está enlaçado ao olhar fotográfico bem treinado e estimulante. Suas imagens beiram o poético, dando mais importância à perspectiva e ao jogo de luz e sombra do que ao objeto fotografado. Radiografam o mais íntimo da paisagem tropical, valendo-se do estancamento da beleza, daquilo que passa por todos nós, todos os dias, mas vemos sem enxergar. Num aproximado estranhamento, criam uma atmosfera de realismo fantástico - talvez alquímico em seu mosaico de intenções -, perseguindo uma finalidade estética única, profunda. O objetivo aparente é documentar sua relação com a natureza, capturando inclusive sentimentos. Isso é muito difícil, mas parece ser essa a meta, tornando visível a invisível passagem do tempo. Afinal, lembrando o poeta gaúcho Mário Quintana, “Se as coisas são inatingíveis ora, / Não é motivo para não quere-las / Que tristes os caminhos se não fora / A mágica presença das estrelas!”. O resultado dessa persistência é notável, mostrando a conexão homem-paisagem, sua vivência e ações, repulsa e cumplicidade. Ele deixa isso transparecer nas fotografias. Com tato. E essa relação reservada e comovente que estabelece com seus sujeitos fotográficos é a força da sua bonita fabulação pictórica.


Imagens emblemáticas. Mesmo estando, em sua maioria, solitárias e deixadas ora com foco em algo distante, ora encarando com fúria quem as olha, as emoções mais secretas estão vivas. O ‘eu’ do artista é puxado através do assunto clicado. Para captar seus temas, que se repetem à exaustão em imagens, ora extremamente elaboradas, ora apenas cotidianas, mas não menos levadas a sério, ele intervém com miragens alquímicas, pinceladas meigas que conversam com o que foi retratado, mostrando, evidentemente, a que veio o fotógrafo em sua arte. Tudo registrado em detalhes tão íntimos, tão aproximados, que o fluxo existencial se ilumina. Uma coleção de imagens poderosas, ternas, às vezes secas, melancólicas, inertes, perdidas, mas sempre formosas. Paisagens, folhagens, dunas, areia, vento, águas, luas doidas. Fotografias libertárias, de prazer, dor, vida, morte, revolta.


O filósofo francês Gilles Deleuze disse que “A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras”. Essa reflexão vibra na linguagem fotográfica despida e polêmica de MORVAN FRANÇA. Torna-se impossível não ver sensibilidade, afeto, tristeza, solidão e vazio nas suas narrativas visuais de estradas, mares, rios, lagoas, palmeiras, montanhas, matas, espaços. Inclusive em retratos inusitados, por vezes sádicos, como a série “A Face Oculta”, homenageando o pintor irlandês Francis Bacon. Suas fotos de pessoas sugerem inquietude; suas fotos de paisagens sugerem inquietude; suas fotos de árvores, rochas, praias, animais, tudo sugere inquietude. A leitura do olhar fotográfico não é isolada. Ao olhar suas imagens é provável ver muitas facetas e não apenas um retrato. Os retratos lembram coisas, as coisas remetem ao delírio, o delírio aos sonhos e distanciamento. Há uma dor singular em cada uma de suas fotos, mas não é uma dor individual, e sim partilhada com o fotógrafo que retratou o que nossos olhos observam. Imagens que podem e devem ser lidas e traduzidas livremente pela composição multilinguística, luz, papel, cor, adereços, memórias e olhares do autor, memórias e olhares do público.


Em alguns casos, os artistas revelam-se em suas fotografias, sem limites, num ato confessional. Por outro lado, há aqueles que se debruçam sobre a intimidade alheia, utilizando estratégias esquivas para capturarem imagens que por alguma razão subjetiva os interessa. Nesse sentido, tomam pra si o papel do voyeur, buscando na relação entre olho e câmera, uma maneira de invadir a privacidade anônima. A linguagem fotográfica carrega de alguma forma a essência do voyeurismo. O ato de fotografar permite uma ativação do olhar, que passa a observar o mundo por uma pequena fresta, em que o “objeto” observado por mais próximo que esteja diante de nós, permanece ainda distante, mediado por um aparelho técnico. A câmera reconfigura a maneira de vermos o mundo. Segundo Susan Sontag “ter uma câmera transformou uma pessoa em algo ativo, um voyeur (…) tirar fotos estabeleceu uma relação voyeurística crônica com o mundo, que nivela o significado de todos os acontecimentos.”. A crítica de arte atribui ainda a ação cometida pelo voyeur ao olhar do fotógrafo, pois através da câmera o olhar se desloca de uma condição contemplativa e passiva de percepção para uma forma ativa e investigativa de ver o mundo.


Na arte contemporânea, sobretudo na produção fotográfica, observa-se um crescente interesse pelo experimentalismo. Tal manifestação está evidente nas nove fotografias da obra “Orbitorium”, de MORVAN FRANÇA, de viés contemplativo, onde o autor faz lúdica investida em conchas, raízes, folhas secas, areia. Forma um mosaico de fabulário particular, capturando imagens com a astúcia e técnica de um detetive ou mesmo de um paparazzi, atividades onde a fotografia é utilizada de forma esquiva, mas ao mesmo tempo invasiva. Oferece uma visão panorâmica, revelando um caráter de subversão, baseado no deslocamento do impessoal para um domínio privado e afetivo. Despojado de formalismos, o artista vive a obsessão dos tempos modernos de produzir e consumir imagens. Na sua arte, a fotografia majestosa nasce como tem vontade: na granulação, luz baixa, flash estourado em primeiro plano, interferências na foto, banalismo, documental, alta definição, conceitual, bucólica, histórias pessoais.


A maior parte dos registros fotográficos de vida selvagem reforça a percepção nostálgica de uma natureza exótica, estimulando uma visão ingênua e edulcorada. Tais fotografias alimentam uma cultura visual que desenha a relação romântica que mantemos com esse mundo distante. A bela cena aguça o interesse pela natureza pitoresca, sendo explorada à exaustão e com competência técnica. Essa imagística agrada ao consumidor do exótico estampado em folhas de papel, satisfazendo o prazer de reconhecer o “selvagem” em poses previsíveis que reavivam o desejo por aventuras. Contudo, encontra-se em alguns fotógrafos a preocupação de desestabilizar a imagem estereotipada do selvagem e suscitar um pensamento sobre a relação entre os seres humanos e as outras formas de vida. A fotografia de MORVAN FRANÇA não faz parte dessas convenções habituais, propondo outras formas de ver a questão das espécies ameaçadas de extinção e da ação devastadora do homem sobre os lugares que elas habitam. Ele busca invenções, por meio das quais pretende se diferenciar. Chamando a atenção para espaços e situações que a maioria das pessoas não vê, fotografa como quem atira dardos, alheio aos pactos recorrentes e mergulhando num mundo próprio, que desconcerta.


Explorando aproximações entre elementos díspares, sugere conexões entre luz e sombra, volume e superfície, repetição da mesma figura em diferentes composições. Esses procedimentos suscitam analogias e tornam sua fotografia virtuosa. Talentoso, crítico e polêmico, o fotógrafo MORVAN FRANÇA ironiza a sociedade em seu experimentalismo, realizando uma arte significante, de referência, que merece um longo percurso. Finalizo lembrando mais uma vez Gilles Deleuze: “Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga”. Assim parece compreender o autor de “A Face Oculta” em sua arte.



MORVAN FRANÇA – Breve Biografia

Nascido em 1987, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, rendeu-se ao mundo da fotografia desde sempre. Tem imagens publicadas em blogues e jornais do Rio Grande do Norte. Diretor fotográfico da revista “Ícone – Turismo e Cultura no Nordeste”, teve participação especial na exposição “Cartografia dos Afetos”, no Museu de Cultura Popular Djalma Maranhão (Natal). Sua exposição “A Face Oculta” recebeu Troféu Cultura de Melhor Exposição de 2013 no RN.

          potiguar notícias (rm)
           Imagens: MORVAN FRANÇA


27 comentários:

Unknown disse...

Beautiful photographs!

VALÉRIA SIMÕES disse...

Texto maravilhoso! Qual o fotógrafo que nao gostaria de uma análise inteligente dessas sobre seu trabalho? Fiquei curiosa em relação à série "A Face Oculta". Gostaria de conhecê-la.
Abraços
Valéria S.
(fotógrafa)

Carmen Regina Dias disse...

Caríssimo! Que bela resenha tu me chegas.
Adorei a crítica, as fotos.
Tua literatura é um néctar:

“TALVEZ AMOR

Essa doçura que irrompe no meu ser,
mais forte que as mais contraditórias cobiças,
esta brisa atravessando jardins perfumados,
esta vontade de responder com impensável suavidade
à fealdade mundificada, será isto amor?
Serão as coisas assim somente por eu amá-lo?”

Felicidade em tua vida se derrame nobre Antonio!

Mais uma vez, parabéns.

Virgílio Amorim disse...

Desconheço o fotógrafo, mas as fotos são lindas. Parabéns.

Ricardo Seixas disse...

Esse texto foi uma experiência valiosa, para quem como eu estou entrando nesta área apaixonante da fotografia.

Amanda Xavier disse...

Parabéns em dobro: pelas imagens e pelo texto bonito. Bjs

Ari Schmidt disse...

Show de fotos...

Nayara da Costa Parreira disse...

Trabalho incrível ! *--*

Maria Aparecida disse...

Lindo
Mágico!!!!

Sílvia Maria Sena disse...

Só podia vir de você esse espetáculo, Antonio Nahud!

SÍLVIA SOL disse...

M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Adorei!!!!! Muito grata!!!!!!!

Angelus Magno disse...

Maravilha, Nahud! Gostei muito do baile floral e todo o espetáculo de criatividade. Já estou seguindo seu blog, viu? Abraços!

Ynha Dias disse...

Lindo! ♡

Soraya Silva disse...

Que coisa mais linda... mexeu com minha alma. Lindo é pouco!

Bruno disse...

lindas fotos mesmo!!
parabéns!!

Juliana Vazquez disse...

divino seu trabalho! parabens!

Bel Borba disse...

Quem é o autor do banner do seu blog, Nahud? Belo, revelador. Um surrealismo suave.

Miriam Ohlweiler disse...

Very nice!!!

Bel Saffe disse...

Adorei!

Beatriz Seki disse...

Lindas fotos e texto primoroso.

Chen Fu Yi disse...

Excellent work!

Camila Rocha disse...

Morvan iluminado! Texto lindo. Parabéns. Posso publicar na Gazeta de São João del Rei?

Galinhos Tubarão disse...

Show man tudo lindo

Sílvia Sol disse...

Sou fã das fotos do Morvan!!!!

Jacqueline Albuquerque disse...

Lindo!!! Adorei obrigada Antonio Nahud!

Analise Seixas disse...

Fotos lindas!!!

Getúlio Person disse...

Resenha maravilhosa. Vou utilizá-la numa redação colegial. Parabéns.