“Um país se faz com homens e
livros”
MONTEIRO LOBATO
Ilustrações:
EMILIANO DI CAVALCANTI
(1897 - 1976)
DOSSIÊ PROSA de FICÇÃO
“A literatura existe no tempo”,
afirmou certa vez o escritor argentino Jorge Luis Borges. Depois de tanto tempo
lendo, pergunto-me: quais são os livros fundamentais, essenciais, imperdíveis
da literatura brasileira? Que romance, peça ou conto nacionais não poderia
deixar de ler na vida? Curioso, selecionei os 30 LIVROS em PROSA/FICÇÃO MAIS
IMPORTANTES DO PAÍS.
Lista são problemáticas. Por
definição. Pela própria natureza. Por limitarem arbitrariamente o universo em
foco. Aí residem a perdição e a eventual graça das listas. A desta postagem não
foge à regra. Mas como definir quem entra e quem sai? As preferências, no
fundo, são sempre pessoais. Portanto, este ranking não encontrará
unanimidade entre os leitores. Alguns eliminariam títulos ou acrescentariam
outros. E é bom que seja assim, é bom que haja valores literários distintos.
Discutível como todas as listas
de melhores em qualquer atividade humana, tanto na escolha dos melhores filmes
de todos os tempos como nas melhores cidades para passar férias,
tem uma utilidade indiscutível: abre uma polêmica sobre obras e autores, entre
o que tem valor e aquilo que é fútil, o descartável e o duradouro. “Pode ser
uma arte em extinção a de ler atentamente, com amor, com a emoção de ver como o
texto se desdobra”, disse o famoso crítico literário norte-americano Harold
Bloom, concluindo: “Mas todo mundo tem ou deveria ter uma lista de obras
literárias que lhe serviriam de companhia numa ilha deserta”.
Com esse mesmo espírito, montei
esse cânone brasileiro, consagrando três autores que figuram na lista com duas
obras: Autran Dourado, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. O resultado é um
dossiê versátil e informativo. Para o leitor do consagrado e do que pode apontar para o polêmico. Confira os 30 LIVROS em
PROSA/FICÇÃO essenciais da literatura brasileira, listados em ordem de
lançamento. Divirta-se.
1
IRACEMA
(1865)
de José de Alencar
(Ceará. 1929 – 1977)
Este romance é a mais concreta tradução do projeto estético e ideológico da
vertente indianista do romantismo brasileiro. O amor entre Iracema e Martim
serve de alegoria do processo de colonização do Brasil pelos colonizadores
europeus. O nome da personagem que dá título ao romance é um anagrama de
América. Por sua vez, o português remete ao deus grego Marte, cujos
atributos são a guerra e a destruição.
A atualidade do livro pode ser atestada
pela sua popularidade ainda hoje, mas também pelas traduções ou adaptações para outras linguagens artísticas. A personagem principal foi tema de várias pinturas e
esculturas no Brasil. Em 1979, Carlos Coimbra dirigiu a versão cinematográfica protagonizada por Helena Ramos.
2
A ESCRAVA ISAURA
(1875)
de Bernardo Guimarães
(Minas Gerais. 1825 – 1884)
Livro dos mais conhecidos de nossa literatura. Considerado o
melhor romance do escritor mineiro de Ouro Preto. Escrito em plena campanha
abolicionista, conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de
caráter impecável, vítima de um senhor perverso. Grande sucesso editorial, permitiu
que seu autor se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época. Ele
pretende, nesta obra, fazer um libelo antiescravagista e libertário e, talvez,
por isso, exceda em idealização romântica, a fim de conquistar a imaginação
popular perante as situações intoleráveis do cativeiro.
Não se trata exatamente, no entanto, de uma história de amor, mas
dos sofrimentos do amor, que se deixam perceber pelos conflitos da escrava, que
não tem o direito de amar, e os do homem casado, que não deve trair a esposa. O
tratamento dos personagens é superficial. A linguagem é influenciada pelos
padrões românticos, num vocabulário rico e vasto de caráter regional. Tornou-se um megassucesso,
no Brasil e no mundo, depois de ter sido transformada em telenovela em 1976.
3
O CORTIÇO
(1890)
de Aluísio de Azevedo
(Maranhão. 1857 – 1913)
Considerado o melhor romance do autor. Escrito pouco antes dele
decidir abandonar a literatura e dedicar-se exclusivamente à atividade
diplomática. A obra, mais do que contar a história dos personagens, trata da
ambição e exploração do homem pelo homem, por meio da rivalidade entre o
ganancioso comerciante João Romão e o próspero comendador Miranda. Enquanto um
aspira à riqueza, o outro ambiciona a fidalguia. Entre eles, o
cortiço.
Esse espaço coletivo, fundado por João Romão a fim de
ganhar dinheiro com os aluguéis, é o personagem
principal. A obra se insere na linha naturalista, que
fazia sucesso na ocasião. Em busca da objetividade, o ficcionista trata seus personagens como se sob a lente do microscópio. Em 1978,
foi adaptado ao cinema por Francisco Ramalho Jr.
4
BOM-CRIOULO
(1895)
de Adolfo Caminha
(Ceará. 1867 – 1897)
O autor foi um dos representantes da vertente naturalista do
realismo brasileiro, caracterizada pela oposição ao romantismo por intermédio
da recusa do sentimentalismo e da abordagem de temas fortes, no bojo da qual
vinham as críticas ao moralismo dos costumes. Neste livro, o amor romântico se
dá numa dupla de marinheiros, ou seja, dois homens.
Amaro, um escravo fugido, alista-se na Marinha, tornando-se um
soldado exemplar. Forte e gentil com todos, recebe o apelido de Bom-Crioulo.
Dez anos se passam e ele não mostra a mesma disposição para o trabalho, nem
tampouco a mesma gentileza, notadamente quando se entrega à bebida. Seu estado
de ânimo se altera também na presença de certo grumete, Aleixo, com quem se
envolve amorosamente. Chegam ao Rio de Janeiro e se instalam em uma pensão,
levando uma vida matrimonial secreta.
Considerado como o primeiro romance homossexual de
toda a literatura ocidental, foi recebido com escândalo pela crítica literária
e com silêncio pelo público, devido à ousadia de abordagem de temas tabu, como
o sexo inter-racial e a homossexualidade em ambiente militar.
5
DOM CASMURRO
(1899)
de Machado de Assis
(Rio de Janeiro. 1839 – 1908)
Contado em ordem cronológica, centra-se mais no retrato psicológico de seus personagens. O desenho dos estados internos de consciência, o quadro das motivações ocultas e
a exposição dos sentimentos (o amor, o ciúme, a desilusão) animam o romance. Além disso, um narrador manipula o enredo para seu proveito.
Bentinho, o Dom Casmurro do título, conta sua trajetória a partir
da infância, centrando-se na amizade com a vizinha Capitu, com quem se casa. Com o correr dos anos, convence-se de que a
mulher o trai com o amigo Escobar. Ela, porém, refuta a acusação, de sorte que
a dúvida paira no ar até hoje, com defensores de ambos os lados: teria ela
traído ou não o marido? A modernidade de “Dom Casmurro” reside justamente nessa
ambiguidade insolúvel.
Foram feitas duas adaptações cinematográficas do romance. A
primeira, “Capitu” (1968), de Paulo Cesar Saraceni, com roteiro de Paulo Emílio
Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles, e atuação de Isabella, Othon Bastos e Raul
Cortez, é fiel ao livro, enquanto a mais recente, “Dom” (2003), de
Moacyr Góes, mostra uma abordagem
contemporânea sobre o ciúme. Também ganhou adaptações para o teatro e ópera. Para a televisão, em 2008, uma microssérie foi dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
6
Os SERTÕES: CAMPANHA de CANUDOS
(1902)
de Euclides da Cunha
(Rio de Janeiro. 1866 – 1909)
Surgiu de uma reportagem encomendada pelo jornal “O Estado de S.
Paulo”. Encarregado de cobrir a Guerra de Canudos (1896-1897), o
jornalista-escritor encontrou nos confrontos entre o Exército brasileiro e um
grupo de fanáticos religiosos liderados por Antonio Conselheiro matéria para
descrever a geografia e a população do sertão baiano. Vistos como uma ameaça à
jovem República brasileira, os seguidores de Conselheiro foram dizimados.
Dividido em três partes – “A Terra”, “O Homem” e “A Luta” -, é rico em informações científicas, imagens e narrativa
eficaz. Os leitores de Euclides costumam não esquecer de alguns trechos, entre eles: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a
História, resistiu até ao esgotamento completo”.
7
TRISTE FIM de POLICARPO QUARESMA
(1911)
de Lima Barreto
(Rio de Janeiro. 1881 - 1922)
É a obra mais famosa do autor carioca, publicada em forma de
folhetim (1911) e depois em livro (1915). Consolidou-se como um clássico porque
traduziu os impasses do Brasil de seu tempo. O major Policarpo Quaresma vive de
idealismos nacionalistas em trajetória dividida em três partes: como funcionário
público, proprietário rural e soldado na Revolta da Armada, em 1893,
quando se decepciona com o seu idealizado marechal
Floriano Peixoto. Ao criticá-lo, é preso.
Quaresma queria basicamente três reformas: da cultura, da
agricultura e da política, mas não consegue nenhuma. Seu sonho mais singular
foi o de oficializar o tupi-guarani como idioma brasileiro. Certas desventuras
e desencantos do protagonista poderiam ser vistas como as do próprio autor,
mas o romance passa longe da autobiografia.
Intitulado “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil”, o filme de 1998 foi dirigido
por Paulo Thiago.
8
MACUNAÍMA, o HERÓI SEM NENHUM CARÁTER
(1926)
de Mário de Andrade
(São Paulo. 1893 – 1945)
Escrito como um passatempo. Mario isolou-se com um tio
doente e a companhia de livros, entre eles o trabalho do
antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, que havia pesquisado as lendas e os
mitos do Norte brasileiro. Entusiasmado, redigiu em seis dias a obra.
O protagonista da selva amazônica, onde vive de comida e sexo, vai para São Paulo para recuperar a muiraquitã — um
talismã que dele foi furtado. São muitas
as metamorfoses que ele passa, transformando-se (em
príncipe, estrela, francesa etc.) e transformando São Paulo em um bicho-preguiça
de pedra.
Segundo o poeta Haroldo de Campos, o autor construiu uma “fantasia
estrutural”, que rompe com o tempo e espaço dos romances tradicionais. A
solenidade do tom épico-lírico, a leveza da crônica cômica e sem-cerimônia e os
atrevimentos da paródia devem ser vistos, em conjunto, como uma das mais
ousadas e eficientes experiências literárias. Adaptado com sucesso para o cinema por Joaquim
Pedro de Andrade em 1969. Também foi feita uma premiada peça de teatro, dirigida por Antunes Filho, encenada pela primeira vez na década de 1970 e que chegou a ser apresentada em vários países.
9
SÃO BERNARDO
(1934)
de Graciliano Ramos
(Alagoas. 1892 – 1953)
Narrada em primeira pessoa, a vida de Paulo Honório é
rememorada. Da infância a adulto, proprietário, casando-se com a professora
Madalena, com quem tem um filho. E é aí que seu verdadeiro drama começa ao
sentir um ciúme doentio da mulher, desconfiando de todos. Achava que
a criança nada tinha de parecido com ele.
Sua loucura acabou, por fim, levando Madalena ao suicídio. Daí em
diante, os negócios da fazenda começaram a andar mal. Esse exercício de
recapitulação biográfica detalha essencialmente o desejo de posse do narrador
que o acompanhou a vida toda. O crítico Antonio Candido identificou em Paulo
Honório “uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de
propriedade”. Ele age sempre de forma firme, objetiva e
implacável para obter o que quer.
Nessa tragédia rural, o estudo psicológico tornou-se um dos mais
exemplares da literatura brasileira. Em 1972, Leon Hirszman dirigiu uma das
melhores adaptações literárias do cinema brasileiro, vencendo vários prêmios.
Além disso, teve também uma versão para TV roteirizada por Lauro César Muniz, com Paulo José na direção e José Wilker e Regina Duarte no elenco. Levada ao ar em 1984.
10
Os RATOS
(1935)
de Dyonélio Machado
(Rio Grande do Sul. 1895 - 1985)
Rendeu ao escritor gaúcho o prêmio Machado de Assis, da Academia
Brasileira de Letras. Em uma década marcada por grandes romances dedicados aos
dramas das camadas sociais menos favorecidas, ele transformou o atormentado Naziazeno
Barbosa em uma das figuras mais marcantes dos personagens desvalidos que povoam a literatura brasileira.
Romance breve, composto de 28 capítulos curtos que se passam num
único dia. Sem cair no naturalismo fácil que explora a degradação e a violência
das cidades, consegue um perfeito equilíbrio entre investigação psicológica e
descrição social. O autor mostra sensibilidade para retratar um quadro humano
próximo ao desespero: o obsessivo Naziazeno, funcionário público que precisa de
53 mil réis para pagar a conta do leite e sai pela Porto Alegre do começo do
século 20 para cavar o dinheiro.
11
VIDAS SECAS
(1938)
de Graciliano Ramos
Uma família de retirantes se lança contra o sertão nordestino em
busca de uma vida melhor na cidade grande. A história poderia se tornar um
drama de apelo emocional imediato, mas recebeu um tratamento literário
seco. Seus personagens, Fabiano, Sinhá Vitória, os filhos, a cachorra
Baleia e o papagaio, são criaturas em constante embate com
o hostil e o degradante.
Dividido em 13 capítulos independentes, que não apresentam ligação entre si, apenas temática, foi chamado por Rubem Braga de
“romance desmontável”. Assim, há capítulos intitulados como “Mudança”,
“Cadeia”, “Festa”, “O Soldado Amarelo”, “O Mundo Coberto de Penas”. Graciliano
começou a montar o livro depois de escrever “Baleia”, inicialmente um conto
publicado em jornal. O filme de 1963, dirigido por Nelson
Pereira dos Santos, é um elogiado clássico do nosso cinema.
12
O SÍTIO do PICAPAU AMARELO
(1939)
de Monteiro Lobato
(São Paulo. 1882 – 1948)
Série de 23 volumes de fantasia, escrita entre 1920 e 1947. A obra
tem atravessado gerações e representa a literatura infantil do Brasil. O
conceito foi introduzido em “A Menina do Narizinho
Arrebitado” (1920), sendo mais tarde republicada como o primeiro capítulo de
“Reinações de Narizinho” (1931). Além de uma
imaginação poderosa, o autor demonstra um sentimento de nacionalismo e de apego ao rural.
Há também uma clara orientação didática. Por meio de fabulações, educam e incentivam nas
crianças o gosto pela leitura. A obra tem sido adaptada diversas vezes desde os anos
1950, para filmes e séries populares de televisão.
13
FOGO MORTO
(1943)
de José Lins do Rego
(Paraíba. 1901 - 1957)
Última obra do mais expressivo dos ciclos do autor paraibano: o da
cana-de-açúcar. Mostra a decadência dos
senhores de engenho e é uma obra-prima da literatura regionalista, de caráter
neo-realista.
“Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir
numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da
adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através
dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e
social da região”, descreve o crítico literário Alfredo Bosi, em “História
Concisa da Literatura Brasileira”.
Narrado em terceira pessoa, é dividido em três partes. Cada uma conta
com seu próprio protagonista, como se fossem três histórias distintas e
sucessivas. No entanto, os personagens principais (mestre José Amaro, Coronel
Lula de Holanda e o Capitão Vitorino) se inter-relacionam durante toda a
narrativa, quase inteiramente ambientada no Engenho de Santa Fé. O filme de
1976 foi dirigido por Marcos Farias.
14
TERRAS do SEM-FIM
(1943)
de Jorge Amado
(Bahia. 1912 – 2001)
De proporções épicas, narra a formação da zona cacaueira da Bahia,
que abrange a região de Ilhéus e Itabuna, com seus conflitos e paixões.
Centrada nas disputas entre proprietários rurais pelas terras do sul da Bahia,
a obra faz parte do chamado “ciclo do cacau”. Ao contrário de “Gabriela, Cravo
e Canela”, em que a crítica social aparece camuflada na crônica de costumes, o
escritor grapiúna denuncia claramente o patriarcalismo, o clientelismo e a
violência do sertão, baseado na lei do mais forte e na demonstração do poder,
evidenciando com isso, sem tom panfletário, a injustiça social e a exploração
do trabalhador, vítima da ambição dos coronéis sertanejos. Em 1948, a Atlântida
Cinematográfica produziu o filme “Terra Violenta”, inspirado no romance. Já em
1981, foi adaptado para a televisão.
15
SAGARANA
(1946)
de Guimarães Rosa
(Minas Gerais. 1908 – 1967)
Estreia do mineiro Rosa, este livro de contos é visto como um rascunho de “Grande Sertão: Veredas” e também uma obra-prima. O título consiste num neologismo criado a partir da palavra
portuguesa “saga” (história fantástica) e do pospositivo tupi “rana”
(semelhante, parecido); ou seja, sagarana é “algo parecido com
uma saga”. Compõe-se de nove contos, cada qual dotado de suas próprias
peculiaridades.
Como se vê, a maestria vocabular do autor, conhecedor e amante de
diversos idiomas, presente em toda a sua ficção, transparece desde esta
primeira obra. Ela está repleta de neologismos, arcaísmos, regionalismos,
metáforas, frases quebradas, rica imaginação fabular e uma musicalidade
impressionante, expressa por meio de rimas, aliterações, onomatopéias e ritmo
cambiante. Também se revela uma fusão perfeita do erudito com o popular. Dois
contos, “A Hora e Vez de Augusto Matraga” e “O Duelo”, foram adaptados para o
cinema.
16
O TEMPO e o VENTO
(1949-1961)
de Érico Veríssimo
(Rio Grande do Sul. 1905 - 1975)
Série dividida em “O Continente” (1949), “O Retrato”
(1951) e “O Arquipélago” (1961). Conta parte da história do Brasil vista a
partir do Sul - da ocupação do Continente de São Pedro (1745) até 1945 (fim do
Estado Novo), através da saga das famílias Terra e Cambará.
Os personagens masculinos, principalmente em “O Continente”,
revelam a imagem que geralmente se faz do homem gaúcho, valente e machista. Mas
realmente fortes, principalmente no sofrimento, são as mulheres de
Érico, tipos antológicos como Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria. Estas três
constituem as matriarcas da família e suas qualidades fortes se mantêm ao longo
das gerações. Ganhou a primeira versão para a TV em 1967, com Carlos Zara no
papel de Rodrigo Cambará. Em 1985, uma minissérie. Por fim, em 2013, filme dirigido por Jayme Monjardim.
17
A VIDA COMO ELA É
(1951-1961)
de Nelson Rodrigues
(Pernambuco. 1912 – 1980)
De 1951 a 1961, Nelson publicou no jornal “A Última Hora”, de
Samuel Wainer, a coluna “A Vida Como Ela É...”, cujo título inicialmente seria “Atire a Primeira Pedra”, uma ficção inspirada em uma notícia do
caderno policial. O escritor mudou o título e criou seus próprios argumentos, que surgiam da observação dos subúrbios cariocas e de outros casos de que ouvira falar.
O universo teatral rodriguiano se faz presente nestes contos. O tema preponderante nas quase 2 mil histórias é o adultério, retratado
na sociedade carioca dos anos 1950. Os personagens são parte da pequena
burguesia, que em geral moram na Zona Norte, trabalham no Centro e, vez por
outra, frequentam a Zona Sul para corromper-se. Todos vivem em um estado
constante de tensão sexual, como se esse fosse o eixo condutor de suas
existências. Fez tanto sucesso
que foi transformada em radionovela, fotonovela, cinema e programa de televisão.
18
A MENINA MORTA
(1954)
de Cornélio Penna
(Rio de Janeiro. 1896 – 1958)
Caracterizado pelos capítulos curtos e criação de uma
atmosfera de estranheza, com diversos elementos de mistério, divide-se em duas
partes: na primeira, a memória da menina que morreu precocemente; na segunda, a falta preenchida por sua irmã, agora única herdeira. A narrativa
psicológica se passa em uma fazenda de café no Vale do Paraíba, São
Paulo, onde vivem cerca de trezentos escravos e diversos agregados.
A representação da criança seria o motivo da
reconciliação humana e da superação da diferença de classes. Com sua morte, este símbolo pune a todos, e
sua missão de inspirar perdão e bondade se perde. Mas a nostalgia
da menina perdura, sendo lembrada em seu retrato a óleo pendurado na
parede, numa busca frustrada pelo sentido da vida.
19
GRANDE SERTÃO: VEREDAS
(1956)
de Guimarães Rosa
Repleto de neologismos, linguagem coloquial
e regionalismo retrabalhado. Trata-se de uma revolução na arte de
contar “estória” (como Rosa gostava de grafar), que lhe rendeu inúmeros prêmios
e lugar como um dos cem livros mais importantes de todos os tempos, de acordo
com o prestigiado Círculo do Livro da Noruega.
Texto inteiriço, sem qualquer divisão de
capítulos, narra em primeira pessoa as aventuras de Riobaldo pelo
sertão mineiro. Ele conta sua vida a um “senhor”, cuja identidade permanece
oculta. E anseia por negar a existência do demônio, com quem fez um pacto para
derrotar o jagunço do bando rival, Hermógenes.
Narrado num português reinventado, atinge um clímax na relação ambígua de Riobaldo com Diadorim (“Diadorim é minha
neblina”, diz o enamorado). Travestido de jagunço, o companheiro é, na
verdade, uma mulher valente e impiedosa. Nesse universo quase mítico, a
dimensão única, poética e alquímica da linguagem, que desintegra as fronteiras
entre narrativa e lírica, é um convite à viagem pelas palavras.
Levado cinema em 1965, dirigido pelos irmãos Geraldo e
Renato Santos Pereira. Em 1985, uma minissérie, direção de Walter Avancini, com
Tony Ramos, Bruna Lombardi, Tarcísio Meira e José Dumont. Em 2013 foi a vez do
documentário “Sujeito Oculto: na Rota do Grande Sertão”, de Silvio Tendler.
20
CRÔNICA da CASA ASSASSINADA
(1959)
de Lúcio Cardoso
(Minas Gerais. 1912 – 1968)
Obra máxima de escritor mineiro, um dos mais densos e originais
ficcionistas da prosa brasileira. De extrema complexidade, composto de um
entrelaçamento de perspectivas e de recursos narrativos como trechos de
diários, anotações, confissões, flash-backs, além de modos de expressão que se
aproximam da mais pura poesia.
O enredo, porém, é simples. Trata da decadência dos Menezes, uma
família de fazendeiros das Minas Gerais. Movidos por fortes sentimentos de
inveja, incesto, desamor e ambição, eles devoram-se uns aos outros até a mais
completa desintegração financeira e moral. O que interessa ao autor não é
contar uma história nos moldes tradicionais, mas mergulhar na febre dos
sentimentos conflituosos, que faz par com a atmosfera de
morbidez que ronda a propriedade rural e o declínio da família. Em
1971, Paulo César Saraceni dirigiu uma elogiada adaptação para o cinema.
21
O PAGADOR de PROMESSAS
(1960)
de Dias Gomes
(Bahia. 1922 – 1999)
Sua consagração como um dos principais dramaturgos do teatro
brasileiro moderno se deu com esse texto, cujo potencial o crítico Sábato
Magaldi reconheceu antes mesmo da estreia nos palcos. Conta o caso trágico de
Zé do Burro, que viaja de sua vila no interior da Bahia até Salvador carregando
uma cruz.
O mundo da cidade, da capital, choca-se com as crenças e a visão
mítica do protagonista. E a miscigenação religiosa neste caso expõe o quanto
seus limites de tolerância são frágeis. A trama realista sintetiza as tensões
sociais e os desníveis culturais de um país. Em 1960, causou furor ao ser
montada no palco do Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, pelo diretor
Flávio Rangel. O filme de 1962, de Anselmo Duarte, ganhou a Palma de Ouro no
Festival de Cannes. Depois foi teleteatro, em 1974, e minissérie em 1988, direção de Tizuka Yamasaki.
22
A BARCA dos HOMENS
(1961)
de Autran Dourado
(Minas Gerais. 1926 – 2012)
Definido pelo autor como “uma história de caça e pesca”. A linha
condutora é a perseguição a um homem que teria roubado uma arma. Fortunato, o
fugitivo em questão, é um débil mental que vai mexer com a realidade e os sonhos,
o consciente e o inconsciente dos habitantes e veranistas de uma ilha do
litoral brasileiro, fazendo aflorar sentimentos e desejos ocultos.
É uma metáfora do ciclo da vida através de uma prosa refinada. A
escolha de uma ilha como cenário para este primeiro grande romance do autor,
reflete o cerceamento de todos os personagens, e não apenas de Fortunato, em
uma situação limite, detonadora de conflitos. A ação exibe ao leitor diversos pontos de
vista de um mesmo acontecimento.
23
CORPO VIVO
(1962)
de Adonias Filho
(Bahia. 1915 – 1990)
Ambientado na região cacaueira do Sul da Bahia, onde os conflitos
causados pela terra para o plantio de cacau eram comuns. Tem como protagonista Cajango, um homem-fera treinado para matar e fazer justiça contra os jagunços e envolvidos
com a morte da sua família. O sobrevivente do massacre foi criado nas montanhas por um tio índio e se prepara para a vingança final. Ao se tornar adulto ele cria um bando de
justiceiros, aterrorizando por onde passa e se revelando um monstro. Suas vítimas não morrem rápido, há sempre crueldade.
24
ÓPERA dos MORTOS
(1967)
de Autran Dourado
Obra-prima do autor mineiro renovador do romance nacional, trata
dos embates entre morte e vida, permanência e mudança. Normalmente associado à
linha do regionalismo introspectivo. Incluído pela Unesco na “Coleção
de Obras Representativas da Literatura Universal”, conta a saga de Rosalina
Honório Cota. Última remanescente de sua família, ela vive praticamente sozinha
na companhia de Quiquina, empregada muda. As duas habitam um sobrado velho e
decadente, construído pelos antepassados de Rosalina.
Para o professor Massaud Moisés, “a tensão romanesca é sufocante,
as personagens, loucas ou tangidas por forças indiscerníveis, exterminadoras,
diabólicas, parecem arquétipos vivos; o tom, porém, é dum realismo simbólico,
em que se defrontam o Mito e a História”. A linguagem, de recursos barrocos,
contribui para criar uma narrativa labiríntica. A atmosfera negativa vem do
embate entre o antigo e o novo, o obsoleto e o moderno, os mortos e os vivos, a
permanência e a mudança dos valores.
25
ROMANCE D’A PEDRA do REINO e o PRÍNCIPE do SANGUE do VAI-E-VOLTA
(1971)
de Ariano Suassuna
(Paraíba. 1927 – 2014)
Obra extensa, complexa, híbrida, que não cabe em classificações
limitadoras. Para Suassuna, é um romance picaresco. Ao longo da narrativa há
poesia, romance de cavalaria, memorial e mais outras formas que implicam
“lembrança, tradição e vivência na integração do popular ao erudito, com toque
pessoal de originalidade e improvisação”, segundo definiu Raquel de
Queiroz.
Epopeia áspera, sertaneja e mestiça. O escritor tinha se lançado a
proposta de criar uma trilogia, que não vingou - a segunda parte, “História d’O
Rei Degolado”, foi publicada em 1977. Por outro lado, conseguiu que se
criasse uma festa popular inspirada no livro e pelo Movimento Armorial. Todo
ano, no último fim de semana de maio, uma cavalgada em São José de Belmonte celebra
o escritor e sua obra. Em 2007, uma microssérie foi dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
26
SARGENTO GETÚLIO
(1971)
de João Ubaldo Ribeiro
(Bahia. 1941 – 2014)
Considerado a obra-prima do autor e traduzido em várias línguas,
narra a história de Getúlio, um sargento nordestino da Polícia Militar. De família pobre, ele trabalha como feirante e
engraxate para sobreviver, tornando-se depois soldado. Tendo assassinado a
mulher, que o traíra com outro, busca a proteção de um chefe político, ao qual
passa a servir como capanga.
Mesmo pretendendo aposentar-se, aceita nova missão, a de prender,
no interior, um adversário político do chefe. Segundo João Ubaldo: “é um romance engajado — persegui
esta espécie de autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância. É, de
certa forma, um retorno à minha infância, ao universo de Sergipe, com sua
brutalidade, seu primitivismo ao qual dei uma dimensão mais ampla — ética e
política.” Em 1983, Hermanno Penna dirigiu um filme com Lima Duarte no
papel central.
27
ÁGUA VIVA
(1973)
de Clarice Lispector
(Ucrânia. 1920 - 1977)
Longo texto em forma de monólogo. Nele, Clarice leva a extremos a desestruturação da forma romancesca, criando um gênero híbrido, marcado pela fluidez, pela aparência inacabada e inconclusa, produto da liberdade. Definido como “um denso e fluente poema em prosa” que amaldiçoa, reprime e expande a vida.
Não existe enredo, prevalecendo a repetição dos temas e o desfile de imagens multifacetadas. A circularidade está presente no livro: não há começo, meio ou fim. Trata-se de um texto para ser mais vivido do que lido, no qual a sensibilidade aflora constantemente, em um fluir de experiências vivenciadas de forma intensa.
Clarice rompe com o sistema, virando-o pelo avesso, revelando o indizível. Estabelece uma relação entre a pintura e a literatura: a personagem é uma pintora que escreve a alguém e fala de pintura, fazendo com que a respiração de um traço ou de uma pincelada estejam na obra. Há um cansaço em relação à palavra, essa palavra que nunca a satisfaz.
28
O GRITO da PERDIZ
(1982)
de Hélio Pólvora
(Bahia. 1928 – 2007)
Com um gênero discursivo simples, presente na fala das
personagens, o prosador cria um
clima de suspense e desafia a imaginação do leitor. Divide-se em
quatro soberbos contos. No último deles, com o mesmo título do livro, narra a
história de dois homens que vão, com o auxílio de um cão, à caça de perdizes. Uma série de acontecimentos estranhos, tais como disparos de
espingardas eventuais, diálogos ambíguos e ataque de animais
peçonhentos servem de elo para outros caminhos dentro da própria trama. No decorrer da leitura, fica
implícito que o tema central é o ciúme.
29
MORANGOS MOFADOS
(1982)
de Caio Fernando Abreu
(Rio Grande do Sul. 1948 – 1996)
Nesta coletânea de contos, destacam-se
personagens socialmente excluídos ou marginalizados por seu comportamento.
Divide-se em duas partes. A primeira, “O Mofo”, é constituída de
nove histórias que contemplam a ditadura militar e a repressão à liberdade e ao
direito de opinião, escarafunchando sentimentos rejeitados pela sociedade e
reprimidos nos indivíduos.
A segunda parte, “Morangos”, em oito contos, revela um
fio de esperança aos personagens, que encontram um sentido para viver. Caio
Fernando conta, num período de censura, o que faziam e o que sentiam os loucos,
os homossexuais e a própria juventude brasileira diante do preconceito da
sociedade e da repressão a seus ideais.
30
MEMORIAL de MARIA MOURA
(1992)
de Rachel de Queiróz
(Ceará. 1910 - 2003)
Imenso painel sem retoque de relações sociais, culturais, morais e
afetivas entre personagens sábia e comovidamente delineadas. Fez sucesso na sua
adaptação para a televisão como minissérie em 1994, com Glória Pires. Situa-se
em meados de 1850, no sertão. Misturam-se na narrativa as forças e fraquezas,
as virtudes e defeitos da condição humana, desde o amor ao ódio, desde o crime
ao remorso. Nele são retomados alguns dos temas básicos da escritora: o
Nordeste problemático, a preocupação social, a força como criadora de figuras
femininas singulares.
Escrito em primeira pessoa. Assim, a estória é contada por quem a
viveu, e o leitor se delicia com a mudança constante de ponto de vista: ora
fala a personagem Marialva, ora o Beato Romano, e, no mais das vezes, a própria
Moura conversa com o leitor. É quase possível vê-la, sentada no batente da
fazenda, dentro de suas calças de homem, lembrando os “causos” de sua vida. .
7 comentários:
Mais um texto perfeito. Esse então foi bem mais intenso para mim.
Amo seus textos ❤essas INFORMAÇÕES PRECIOSAS 🙏 quanto mais o tempo passa.... mais só sei que nada sei❤Sócrates ❤
Antonio Nahud II, dos 30 livros citados, somente não li A vida como ela é e O grito da Perdiz. Muitos, li ainda na adolescência. Sou fã de "carteirinha" dos mineiros Autran Dourado (amei Ópera dos mortos, com também Os sinos da agonia e o Risco do bordado) e Guimarães Rosa (Tutameia li várias vezes e Fita verde no cabelo já contei e dramatizei em escolas), além de Clarice Lispector (Água viva e Um sopro de vida são livros de "cabeceira". Acredito que já li todos os livros ou quase todos destes autores). Salvei "A cara do Brasil em 30 livros", pois é uma ótima sugestão para eu repassar aos meus amigos amantes da boa leitura. Obrigada. Curto demais "Cinzas e Diamantes". Um abraço.
Gostei muito dessa sua matéria hoje. Eu sou uma de suas leitoras..ou seja..sua Pokémon. Kkkkkkk.
..tudo de Bom pra vc ...muitas inspirações para felizes futuras postagens ! Bjos
Sucesso sempre! Que nunca te faltem as palavras, pois você sabe usá-las como ninguém!!!!!!!!!!!!! Sou fã
Nossa, ual. Que texto maravilhoso!
Aplausos. Sensacional!!
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