Ilustrações:
ALDO BONADEI
(1906 - 1974. São Paulo / SP)
Meu Primeiro Conto,
1988.
Primeiro lugar no concurso
literário Cidade de Itabuna (Fundação Cultural do Estado da Bahia / Centro de
Cultura Adonias Filho)
Segundo lugar no Terceiro Concurso
de Contos de Franca (SP)
Publicado em “Pequenas
Histórias do Delírio Peculiar Humano” (2012)
Sob lua fértil avermelhada,
assombrando o coração angustiado, ela anseia contar casos sofridos, arrematando
que pios de corujões anunciam desgraças. Brusca, invade o Boteco do Inácio,
reparando num conhecido cachaceiro que toca modinha no violão, enquanto outros
clientes bebem lendas de cacau e morte. Fixa o olhar num estranho encostado em
um canto, alheio a tudo. Olha-o curiosa, desviando esse olhar desprovido para
os produtos expostos na prateleira suspensa por cordas de couro: carne-de-sol,
rapadura, pingas temperadas, farinha de mandioca, pacotes de velas, fumo-de-rolo,
papel de arroz – mercadoria de acordo com a cadência das necessidades básicas
do universo masculino. A luz das lâmpadas de querosene
atrai mariposas e besouros, e dá uma sugestão bizarra ao olhar malvado do
desconhecido. A mulher não decifra essa espécie de olhar, sentenciando-o como olhar
agourento de um homem de idade indefinida; ou talvez olhar que oculte
indiferenças e significâncias. “Faltam sete para as nove”, anuncia o anão
branquelo. Erguendo o copo rachado, ela se aproxima do
desconhecido, falando em voz muito baixa: “Pode guardar um segredo?”- e sem
esperar resposta, continuou – “Não vou poder esquecê-lo por culpa dos
seus olhos”. “O que pretende, dona? É uma vigarista?”. “Trabalhei a vida inteira”. “Está
querendo cigarro? Vamos, acenda um”. “Muito bem, aceito o cigarro”. “Agora me
deixe em paz, dona”. Ele se fecha, nada mais deixando escapar.
A mulher bebe demasiado, dançando
ao som de vozes confusas e palmas sem ritmo, enquanto dedos grossos apalpam
seus seios murchos. Sufocada pela incompreensão dos companheiros brutos, desata
a chorar, terminando por ser jogada num quartinho imundo. Dentro dele, ouve o
canto de algum pássaro noturno e, abafadas, risadas bêbadas. Sem querer aceitar
o sono repentino, fecha e abre os olhos diversas vezes, despertando de uma vez
ao vomitar um líquido verde, pastoso. Da janela, a noite quente se revela
inteira, num panorama misterioso. À beira da lua, a grande montanha de cacau; o
odor forte e bom das bananeiras, miados de onças no cio e pontos de
luzes de fifó em casebres perdidos, desenhando a enigmática beleza da
escuridão. Quem é essa mulher sem ninguém? O
que a deixa insatisfeita? O que espera do estranho que a esnobou? Decidida, limpa-se
num cobertor de retalhos e salta a janela. Caminha por uma estrada bordada por
atoleiros, enquanto o vento arrasta folhas secas. Através da fresta, espia os
homens na mesma algazarra, como se não sentissem a ausência dela. O
desconhecido já não está no seu canto. Inconformada por não vê-lo, desespera-se.
Enche o espírito de imagens do passado, recordando o seu drama, já que não tem
mais nada a perder – talvez seja essa a única lucidez da estranha mistura de
verdade e terror que a miséria absorve.
Inicia a confissão a partir do
amásio com um jagunço aposentado e por demais valente com mulheres inofensivas.
Durante anos viveu uma morte esperada. “Não escondo, o círculo se fechou, matei
o meu homem com duas facadas no pescoço, enterrando seu corpo mulato num cocho
de frutos secos”, garante. Algumas horas antes de morrer, o ciumento amancebado
chegou tombando, ébrio, amarrando-a aos pés da mesa. Enquanto os filhos deles
choravam de medo, veio a acusação: “Sou honesto e procurei viver com uma mulher
decente, mas você não passa de uma rapariga”. “Pense o que quiser, pouco me
importa”. “Meus compadres falam que você não presta: recebe visitas de machos
na minha própria casa. Que desapontamento, sua puta. Agora sei que o seu
destino é parar em qualquer brega de beira de estrada”. Ao descobrirem o corpo turvo na
manhã seguinte, ela chorou em excesso, consolando-se com vizinhas tão infelizes
como ela: “O homem tinha muitos inimigos. Melhor a morte dele do que a de um
dos meninos”. Assim, iniciou-se na vida aventureira, partindo para o Sul de
luto fechado, depois de distribuir sem remorso seus quatro filhos magros e
feios, jurando recolhê-los logo que estivesse amparada - uma promessa nunca
cumprida. Procurou outras terras para recomeçar a vida, não queria se sujeitar
a uma luta diária sem saídas. Pensou com honestidade, nunca foi fútil ou
preguiçosa, tampouco jamais teve receio de tocaias no trajeto solitário –
herdou a impressionante energia das matas, gigantes, agarradas firmes à terra
negra e projetadas para a eternidade.
Trabalhou bastante tempo no
cacaueiro, combatendo pragas dessa planta sensível a moléstias e exigente em
calor e umidade. Bebeu acima do permitido, procurando esquecer a inutilidade do
trabalho árduo - nunca o conseguiu, por ter consciência da origem infame do
luxo dos coronéis, ricos graças a exploração de vermes como ela. Nos últimos
anos, enfrentou calamidades que a consumiram inteiramente: a própria idade, a
espera de um parceiro leal que nunca veio, a escravidão rural. A mata de cacau adormece protegida
por altas árvores, enquanto ela persegue um vulto de olhos bruxuleantes, em um
caminho iluminado por vaga-lumes, estrelas prateadas e a lua cheia. Após a
encruzilhada, avista-o na beira do córrego, debaixo de uma jaqueira. Imagina cobras
engolindo rãs nos brejos, morcegos-vampiros fugindo dos ninhos, um temporal
partindo troncos. “Sente-se atraído por mim?”, pensa em perguntar, contudo
termina por dizer: “Vamos nos deitar no capim e observar estrelas cadentes?
Estou doidinha por você. Vou enchê-lo de coisas boas. Olhe para mim, ainda sou
bonita”. “Sei que luta pelo que quer, mas não estou com vontade. Pelo menos,
não hoje”, diz, oferecendo fumo-de-corda sem qualquer gentileza, apenas por
obrigação: “Pegue o fumo e dê o fora. Deixe-me em paz”.
Consciente do seu mundo arruinado
por desilusões, ela arranca um espinho de limão-balão da anágua e,
insinuando-se, toca seus dedos calejados nas costas morenas dele. Rejeitando
nitidamente o aconchego, ele acende o candeeiro tirado do bocapiu, iluminando
os seus olhos mortos. “Prefere seguir o seu destino ou tomar uma surra de
facão?”, ameaça. “Esse é realmente um redemoinho tirano que chamamos vida”. Ela
odeia o seu próprio cheiro de pinga e fumo ou as trevas de sua existência,
porém não rezará para esquecê-las. Rezar ameaçaria a liberdade. Odeia ter certeza
de que não é ninguém, é uma rainha; não tem chão, porém têm coxas firmes, e é personagem
de um cordel ambíguo cantado com vivência. Rejeitando as derrotas, enfia de
uma só vez o espinho num dos olhos dele. O estranho cai para trás,
metamorfoseando-se em monstro pavoroso de olho vazado. Será o cão? A mulher
dispara mata adentro ao ouvir os berros de dor do bicho atacado. Entrando num
atalho, afasta cipós e corre pela plantação inchada de cocos amarelados. Quando
se dá conta do perfume do cacau, joga-se numa trilha que leva diretamente ao
centro da montanha, chorando saciada, esquecendo por instantes a mortalidade e
a insignificância de uma flor esmagada.