janeiro 23, 2017

........................................................................................... FÚRIA



Ilustrações:
ALDO BONADEI
(1906 - 1974. São Paulo / SP)

Meu Primeiro Conto, 1988.
Primeiro lugar no concurso literário Cidade de Itabuna (Fundação Cultural do Estado da Bahia / Centro de Cultura Adonias Filho)
Segundo lugar no Terceiro Concurso de Contos de Franca (SP)
Publicado em “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” (2012)


Sob lua fértil avermelhada, assombrando o coração angustiado, ela anseia contar casos sofridos, arrematando que pios de corujões anunciam desgraças. Brusca, invade o Boteco do Inácio, reparando num conhecido cachaceiro que toca modinha no violão, enquanto outros clientes bebem lendas de cacau e morte. Fixa o olhar num estranho encostado em um canto, alheio a tudo. Olha-o curiosa, desviando esse olhar desprovido para os produtos expostos na prateleira suspensa por cordas de couro: carne-de-sol, rapadura, pingas temperadas, farinha de mandioca, pacotes de velas, fumo-de-rolo, papel de arroz – mercadoria de acordo com a cadência das necessidades básicas do universo masculino. A luz das lâmpadas de querosene atrai mariposas e besouros, e dá uma sugestão bizarra ao olhar malvado do desconhecido. A mulher não decifra essa espécie de olhar, sentenciando-o como olhar agourento de um homem de idade indefinida; ou talvez olhar que oculte indiferenças e significâncias. “Faltam sete para as nove”, anuncia o anão branquelo. Erguendo o copo rachado, ela se aproxima do desconhecido, falando em voz muito baixa: “Pode guardar um segredo?”- e sem esperar resposta, continuou – “Não vou poder esquecê-lo por culpa dos seus olhos”. “O que pretende, dona? É uma vigarista?”. “Trabalhei a vida inteira. “Está querendo cigarro? Vamos, acenda um”. “Muito bem, aceito o cigarro”. “Agora me deixe em paz, dona. Ele se fecha, nada mais deixando escapar.


A mulher bebe demasiado, dançando ao som de vozes confusas e palmas sem ritmo, enquanto dedos grossos apalpam seus seios murchos. Sufocada pela incompreensão dos companheiros brutos, desata a chorar, terminando por ser jogada num quartinho imundo. Dentro dele, ouve o canto de algum pássaro noturno e, abafadas, risadas bêbadas. Sem querer aceitar o sono repentino, fecha e abre os olhos diversas vezes, despertando de uma vez ao vomitar um líquido verde, pastoso. Da janela, a noite quente se revela inteira, num panorama misterioso. À beira da lua, a grande montanha de cacau; o odor forte e bom das bananeiras, miados de onças no cio e pontos de luzes de fifó em casebres perdidos, desenhando a enigmática beleza da escuridão. Quem é essa mulher sem ninguém? O que a deixa insatisfeita? O que espera do estranho que a esnobou? Decidida, limpa-se num cobertor de retalhos e salta a janela. Caminha por uma estrada bordada por atoleiros, enquanto o vento arrasta folhas secas. Através da fresta, espia os homens na mesma algazarra, como se não sentissem a ausência dela. O desconhecido já não está no seu canto. Inconformada por não vê-lo, desespera-se. Enche o espírito de imagens do passado, recordando o seu drama, já que não tem mais nada a perder – talvez seja essa a única lucidez da estranha mistura de verdade e terror que a miséria absorve.


Inicia a confissão a partir do amásio com um jagunço aposentado e por demais valente com mulheres inofensivas. Durante anos viveu uma morte esperada. “Não escondo, o círculo se fechou, matei o meu homem com duas facadas no pescoço, enterrando seu corpo mulato num cocho de frutos secos”, garante. Algumas horas antes de morrer, o ciumento amancebado chegou tombando, ébrio, amarrando-a aos pés da mesa. Enquanto os filhos deles choravam de medo, veio a acusação: “Sou honesto e procurei viver com uma mulher decente, mas você não passa de uma rapariga. “Pense o que quiser, pouco me importa”. “Meus compadres falam que você não presta: recebe visitas de machos na minha própria casa. Que desapontamento, sua puta. Agora sei que o seu destino é parar em qualquer brega de beira de estrada”. Ao descobrirem o corpo turvo na manhã seguinte, ela chorou em excesso, consolando-se com vizinhas tão infelizes como ela: “O homem tinha muitos inimigos. Melhor a morte dele do que a de um dos meninos”. Assim, iniciou-se na vida aventureira, partindo para o Sul de luto fechado, depois de distribuir sem remorso seus quatro filhos magros e feios, jurando recolhê-los logo que estivesse amparada - uma promessa nunca cumprida. Procurou outras terras para recomeçar a vida, não queria se sujeitar a uma luta diária sem saídas. Pensou com honestidade, nunca foi fútil ou preguiçosa, tampouco jamais teve receio de tocaias no trajeto solitário – herdou a impressionante energia das matas, gigantes, agarradas firmes à terra negra e projetadas para a eternidade.


Trabalhou bastante tempo no cacaueiro, combatendo pragas dessa planta sensível a moléstias e exigente em calor e umidade. Bebeu acima do permitido, procurando esquecer a inutilidade do trabalho árduo - nunca o conseguiu, por ter consciência da origem infame do luxo dos coronéis, ricos graças a exploração de vermes como ela. Nos últimos anos, enfrentou calamidades que a consumiram inteiramente: a própria idade, a espera de um parceiro leal que nunca veio, a escravidão rural. A mata de cacau adormece protegida por altas árvores, enquanto ela persegue um vulto de olhos bruxuleantes, em um caminho iluminado por vaga-lumes, estrelas prateadas e a lua cheia. Após a encruzilhada, avista-o na beira do córrego, debaixo de uma jaqueira. Imagina cobras engolindo rãs nos brejos, morcegos-vampiros fugindo dos ninhos, um temporal partindo troncos. “Sente-se atraído por mim?”, pensa em perguntar, contudo termina por dizer: “Vamos nos deitar no capim e observar estrelas cadentes? Estou doidinha por você. Vou enchê-lo de coisas boas. Olhe para mim, ainda sou bonita”. “Sei que luta pelo que quer, mas não estou com vontade. Pelo menos, não hoje”, diz, oferecendo fumo-de-corda sem qualquer gentileza, apenas por obrigação: “Pegue o fumo e dê o fora. Deixe-me em paz”.


Consciente do seu mundo arruinado por desilusões, ela arranca um espinho de limão-balão da anágua e, insinuando-se, toca seus dedos calejados nas costas morenas dele. Rejeitando nitidamente o aconchego, ele acende o candeeiro tirado do bocapiu, iluminando os seus olhos mortos. “Prefere seguir o seu destino ou tomar uma surra de facão?”, ameaça. “Esse é realmente um redemoinho tirano que chamamos vida”. Ela odeia o seu próprio cheiro de pinga e fumo ou as trevas de sua existência, porém não rezará para esquecê-las. Rezar ameaçaria a liberdade. Odeia ter certeza de que não é ninguém, é uma rainha; não tem chão, porém têm coxas firmes, e é personagem de um cordel ambíguo cantado com vivência. Rejeitando as derrotas, enfia de uma só vez o espinho num dos olhos dele. O estranho cai para trás, metamorfoseando-se em monstro pavoroso de olho vazado. Será o cão? A mulher dispara mata adentro ao ouvir os berros de dor do bicho atacado. Entrando num atalho, afasta cipós e corre pela plantação inchada de cocos amarelados. Quando se dá conta do perfume do cacau, joga-se numa trilha que leva diretamente ao centro da montanha, chorando saciada, esquecendo por instantes a mortalidade e a insignificância de uma flor esmagada.


Um comentário:

Mardone França disse...

Li completo no blog. Muito bom, cortante e contaminante como faca cega e enferrujada em bananeira..