dezembro 09, 2018

................................... ALCEU PÓLVORA – A VIDA é um SOPRO




Fotos: 
FULVIO ROITER
(1926 - 2016. Meolo / Itália)


Meu amigo Alceu. Um artista plástico que faleceu jovem, no dia 22 de junho de 1989, aos 36 anos de idade, após longos dias em coma, resultado de um terrível acidente automobilístico, na BR 101, entre as cidades de Itabuna e Camacã. ALCEU PÓLVORA (1952 - 1989. Barro Preto / Bahia) nasceu na Fazenda Nova Esperança, no sul da Bahia, terras do sem fim do mestre Jorge Amado. Em 1955, sua família mudou-se para Itabuna. No final dos anos 60, ele foi para Salvador concluir os estudos, como era habitual na época. Em 1973 foi a vez da Europa, expondo em Genebra, na Suíça, e por lá ficando durante três anos. Na Suíça sua arte cresceu.

alceu pólvora
Pintava com sensibilidade privilegiada, mas tem uma obra pouco conhecida, que traduz um futurismo complexo, mutante e agressivo. Desenhista minucioso, sua trajetória entre o bico-de-pena, o realismo social, a ilustração de livros e o festivo na exploração da decoração carnavalesca - sem esquecer mulheres sofisticadas e sensuais em convites, ilustrações em revistas e publicidade -, pouco revelam o pintor talentoso, capaz de transitar entre a origem sul-baiana e o mundo.

Sua criação experimental, na utilização da matéria e da cor, tem paradeiro desconhecido, distante de uma retrospectiva espetacular, marcada algumas vezes e, por um motivo ou outro, adiada. Lembro-me de ter visto algumas de suas telas há anos. Que emoção! Na hora pensei no poeta Haroldo de Campos escrevendo sobre Hélio Oiticica: “O labirinto é o âmbito onde pairam, naturalmente, os seus ninhos sem pássaros, mas que pediam, pela ausência de pássaro, o voo que ele depois iria restituir a esses ninhos, através de Parangolé, onde o ausente pássaro passa a ter as asas com as quais desprende o seu voo.”. Estive cara a cara com os ninhos sem pássaros de ALCEU PÓLVORA, prontos para o voo. Vi anjos metálicos, mulheres estranhas, violência, existencialismo, o sensorial, o erótico, o profano, o medo, a voragem do cotidiano. Avistei também chispas do filme expressionista “Metrópoles” de Fritz Lang e da arte russa de Wassily Kandinsky e Piet Mondrian.

tela de alceu
Era leal e divertido. Fizemos planos: o artista ilustraria um livro meu de poesia, “Sangue Ruim”, e criaria o cenário da peça “Louco para Amar”, do norte-americano Sam Shepard, que eu tentei montar na Bahia com a atriz Eva Lima como protagonista. Os projetos não se realizaram. Eu estava envolvido com a TV Cabrália, ALCEU PÓLVORA trabalhando com decoração carnavalesca e publicidade. Resguardamos parte do fervor criativo em conversas deliciosas e afiadas na casa número 27 da rua Querubim de Oliveira, no bairro do Pontalzinho, em Itabuna. Entre questionamentos, papos sobre o barroquismo de Osmundo Teixeira, as marinhas de Valdirene Borges, o décor em concreto de Richard Wagner e o regionalismo sintético de Renart. Certa vez, contei-lhe um sonho em que eu estava na pele do emblemático Lord Byron, poeta inglês romântico do século XVII. Ele perguntou, rindo: “Será que você será consumido pelo desatino amoroso?”.

Ria muito, era uma figura alegre. Fazia parte do seu caráter jovial. Gostava da sensação de existir.  Quando eu fazia pose de anjo caído, insinuando dramático uma “alma sombria”, ele contava uma piada politicamente incorreta e as trevas iam embora imediatamente. ALCEU lia pouco, muito pouco. Certa vez, para minha surpresa, ofereceu-me “Rock Hudson – History”, biografia do ator hollywoodiano. Retribui o presente com “O Cemitério Marinho”, do poeta francês Paul Valéry, imaginando que poderia criar uma série de telas inspirada no livro genial. Mas não teve tempo. O querido amigo deixou esse mundo cedo. Décadas passadas, recordo seus olhos brilhantes, sorriso prateado, humor ácido e devaneios artísticos. Realmente a vida é um sopro.

alceu pólvora


tela de alceu pólvora

novembro 18, 2018

........................................................................... O JARDIM de CLARICE




Fotografias: 
ERIC SANDER
(Fort de l'Eau /Argélia)


“Naquele jardim do leste havia flores estranhas, dotadas de rara vitalidade: cravos agressivos, com um perfume de “algum modo mortal”; eram de cor vermelha que berravam uma “violenta beleza”, ou brancos que recordavam “o pequeno caixão de criança defunta”. Havia também violetas “introvertidas e profundas”, que se escondiam “para poder captar o próprio segredo” e à diferença dos cravos, não gritavam nunca seu perfume: “Violeta diz levezas que não se podem dizer.” Naquele jardim podia-se ver também margaridas alegres, “de graça infantil”, orquídeas “antipáticas”, jasmins “de mãos dadas” e crisântemos de “profunda alegria” que falavam através de sua cor e de seu despenteado” porque o crisântemo “é flor que descabeladamente controla a própria selvageria”. E havia também rosas cujo perfume é “mistério doido”, que “quando profundamente aspirado toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado.”

CLARICE LISPECTOR 
“Água Viva” (1973)




outubro 14, 2018

.................. MARCELINO FREIRE: “O NOSSO TEMPO é DOENTE”




Ilustrações: DAVID TANNER
(Richmond, Virginia / EUA)

Entrevistei MARCELINO FREIRE 
para os jornais A Tarde e Tribuna do Norte 
2006


Nascido em 1967, no alto sertão de Pernambuco, Marcelino Freire vive em São Paulo desde 1991. Faz parte da nova geração de escritores brasileiros, designada “Geração 90”. Publicou “Angu de Sangue” (contos, 2000), “eraOdito” (aforismos, 1998/2002), “BaléRalé” (contos, 2003) e “Contos Negreiros” (contos, 2005), vencedor do Prêmio Jabuti. Editou a “Coleção 5 Minutinhos” e organizou “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século”. Atualmente prepara, em parceria com o escritor Santiago Nazarian, a antologia “Contos para Ler Fora do Armário”, e escreve seu primeiro romance. Tealizou o “Balada Literária”, projeto de 2006 que reuniu dezenas de escritores pelas ruas de São Paulo. Agora se apresenta no I Encontro Natalense de Escritores (ENE).

Quais são suas primeiras lembranças em relação à literatura? Como essa arte conquistou você?

Lembro sempre do Manuel Bandeira. É ele minha memória mais antiga. Lá pelos meus nove anos, li um poema do Bandeira chamado “O Bicho”. A partir dali quis ser um poeta. Um tuberculoso. Um doente. Bandeira me doutrinou a ser doente. Quando descobri que Bandeira era pernambucano igual a mim, senti uma chance. Eu poderia fazer o que ele fazia. Bandeira foi a minha porta de incêndio para a literatura. Por causa dele conheci Drummond, João Cabral, Cecília. Ah! No mesmo período, comecei a fazer teatro. Comecei escrevendo para teatro. Em resumo: a poesia e o teatro me salvaram. Ou melhor: arruinaram-me de vez. Estou doente até hoje. Tomado, entende?

Bancou do próprio bolso o seu primeiro livro, você. Como foi isso?

Banquei os meus primeiros livros. Comecei pelo “AcRústico”, em 1995. Um livro de contos muito ruim. Mas que foi importante para que eu exorcizasse aqueles textos da gaveta. Não tem coisa pior: do que conto olhando para você. Querendo sair à rua. Eu já estava morando em São Paulo quando fiz o meu primeiro livro. Não aguentava só ficar trabalhando em São Paulo. E eu queria ser escritor. Então resolvi, em vez de reclamar, ir à labuta. Paguei a impressão em suaves e humilhantes prestações. Depois veio meu livro “eraOdito”, de 98.

Recebeu palavras de incentivo de colegas?

A gente encontra gente muito generosa pela frente. A gente nunca está sozinho. Digo assim, na redoma. Conheci o João Alexandre Barbosa (crítico literário pernambucano que morreu recentemente) em São Paulo. Ele ouviu uma leitura de um conto meu, feita por mim, e me indicou à Ateliê Editorial. Grande incentivo ele me deu. Ele me apadrinhou. Além da indicação para publicação, escreveu o prefácio para o meu livro “Angu de Sangue” (em 2000) e o publicou na revista Cult. E por aí tudo foi caminhando. Mas foi preciso eu ter feito o “AcRústico”, o “eraOdito”, ter penado muito, enfim, assado. Ninguém aparece, assim, vapt, de uma varinha-de-condão. Longe disso. Tudo faz parte de uma trajetória, de uma história, de um ziguezague qualquer, sei lá. A estrada é longa, longa...

Como reage diante da crítica que resmunga sobre a violência na sua literatura?

Costumo dizer que eu não escrevo “sobre” violência. Escrevo “sob” violência. Dizem sempre que meus contos são violentos, meus personagens são todos doentes. Doentes estamos todos, ou não? O nosso tempo é doente, violentamente. Eu sou um escritor deste meu tempo, do aqui e do agora. Quem quiser “felicidade”, “conforto”, não vá ler os meus livros. Vá atrás de autores de auto-ajuda. E mais: dizem idem que eu só escrevo sobre gente mal-sucedida. Eu respondo: eu não estou preocupado com gente bem-sucedida. Meus livros não são empresariais. Eu faço é literatura, entende?

Literatura marginal, maldita... São clichês?

Podem chamar a minha literatura de “marginal”, de “maldita”, de “homossexual”, de “panssexual”, sei lá. Só nunca irão chamar de literatura “comportadada”, “tradicional”, literatura “que-não-fede-nem-cheira”. Podem me acusar, rotular de tudo, menos que eu tenho uma literatura “frígida”. Essa nunca! O que eu escrevo pode até não prestar, mas é coisa assim, urgente, viva. É assim, em resumo: eu escrevo para me vingar.

Como anda o romance “Gonza-H”? De que se trata?

Está em banho-maria. Andei lendo e detestando. Estou escrevendo um outro, chamado “Urubu Come Carniça e Voa”. Essa é uma frase, trecho de um poema do poeta pernambucano Miró. Conhece? Grande figura! Li recentemente esse poema e achei que dava para ser o título de uma coisa que eu estou escrevendo, além do “Gonza-H”. Não sei se vou conseguir terminar um desses romances. Ave! Meu fôlego é curto. E romance é um inferno. Eu termino um primeiro capítulo e vou dormir com o segundo capítulo. Putz! E eu quero é dormir. Eu prefiro dormir a escrever. Meu sono, esse sim, é sagrado!

A temática homossexual de alguns de seus cantos causou polêmica. Vê nisso alguma importância? Crê na literatura gay como gênero literário?

Não sei se causaram polêmica. Meus contos são o que são. E estão aí para serem os mais verdadeiros. Digo assim: “pau a pau” com o que eu quero escrever. Dizer, gritar. Alguma coisa me agonia, eu quero me livrar, entende? Urrar isso, passar adiante. Passo o vexame adiante escrevendo. É isso. Sempre tenho um conto de temática gay, desde o “AcRústico”. Mas é só a temática. O conto não é gay, digo assim, como gênero. É apenas um conto como outro qualquer. E até nem chamo os meus contos de “contos”. Chamo de “cantos”. O que eu escrevo é música. E música não tem sexo, não é?

Recentemente li um artigo sobre “Monstro que Chora (Dramas Homossexuais)” (1957), do carioca Jorge Jaime.  Diz-se que é um romance ousado e pessimamente escrito. Conhece? Existe uma literatura homossexual nacional? Quem é o nosso Christopher Isherwood? Caio Fernando Abreu, Trevisan, Cassandra Rios?

Eta danado! Não conheço esse “Monstro”. Fiquei curioso, enfim. O bofe é bonito? Olha: eu não saberia dizer se há uma literatura homossexual brasileira. Tenho preguiça até de pensar. Sei que gosto deveras dos textos do Caio Fernando, do João Silvério. Do estilo da Cassandra. Admiro mesmo. Aproveito até para dizer que eu e o escritor Santiago Nazarian estamos organizando uma antologia chamada “Contos para Ler Fora do Armário”. Sai no ano que vem. Mas não é uma antologia de autores homossexuais. Reúne alguns contos com essa temática e só. Tem lá o Caio, o João Silvério, o Mário de Andrade, o Rubem Fonseca, o Marçal Aquino, o Paulo Henriques Brito... Inclusive, não teremos apenas contos no livro. Vão entrar ensaio, reportagem... E até fotos.
                         
Quais são as suas regras de sobrevivência no meio literário?

Escrever, escrever, escrever. Só temos essa arma: escrever.

Qual o papel da mídia hoje dentro do mercado literário nacional?

Não podemos nos descuidar dela. Aliás, creio que foi sempre assim: desde o Machado de Assis. Escrever e aparecer e publicar nos jornais e ser resenhado, creio. O fato é que hoje a disputa é maior. Não sejamos inocentes. Uma vez a Rosa Montero, escritora espanhola, falou que antes ela escrevia porque não sabia falar. Hoje ela disse que precisa falar para continuar escrevendo. O escritor virou uma estrela popular, de alguma forma. Além de escrever, ele precisa falar, viajar, divulgar o seu rebento. Não vejo mal nisso. Desde que o peixe não seja podre, o negócio é gritar. Sempre foi assim. No gogó. É preciso dizer, ressaltar: escritor não é santo. Nunca foi. Luto contra isso: essa imagem solene do escritor. É preciso descer do pedestal. Enfim. E ir à briga. Movimente-se!

O que espera do I Encontro Natalense de Escritores?

Tomar muita cerveja. E rever o meu irmão, que mora por aí. E estender a discussão. E ser feliz. Apesar de tudo, e da literatura: ser feliz. É isso. Valeu e abração.

marcelino freire