conto de
NÉLIDA PIÑON
publicado
em “O Calor das Coisas” (1980)
Eu amo
meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto
da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes,
antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não
quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga
duas vezes por semana, especialmente no sábado.
Depois,
arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte
menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a
vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e
farto.
Ele diz
que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima
reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e
ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo
esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis.
A mim
também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e
mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem
que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os
objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos
objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama
que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão.
Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente
trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo
uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso
apartamento.
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antonio nahud e nélida piñon em paris, 1999 |
O que
mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo
que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir,
percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um
passado com regras ditadas no convívio comum.
Comecei a
ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este
tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu
o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o
passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro.
Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia
pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem
mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com
inscrições e datas.
Filho meu
tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E
mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia
pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o
primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa.
Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre
para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas
mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta
doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e
privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o
seu sal?
Olhei
meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que
reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei
meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por
revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque?
Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira
do rosto surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de
mistério para não me ter inteira?
De
repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para
casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe
enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa
cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir,
mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas
econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam
desdobrar um trabalho de escravo.
Eu lhe
disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe
daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer
a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma
sobremesa?
Ele
deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com
cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana
recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e
ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares
aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em
convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia
água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu
não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que
manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor,
enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito.
Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava
então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas.
Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando
as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das
heranças.
O marido,
com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me,
o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade,
enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal
se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta
palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o
teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha
condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar,
sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora
ainda há tempo de salvar-te?
Suas
crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro
com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no
nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio,
a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos
que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de
quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte.
Para
esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele
aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma
ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a
minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em
participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho,
jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua
capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal
direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar.
Ele não
precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe
bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu
era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa
sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando
seus excessos.
Durante
uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta
a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se
no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que
se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se
no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a
condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento
da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.
Já viu,
filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão
o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves,
ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao
não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria
biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude.
Só
envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a
vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para
sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um
escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um
estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu
logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me
que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal
cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher.
Sempre me
disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo
homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra
nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade
cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e
quentes.
Meu
coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam
prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos
do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal
generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas
em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé,
a história de uma família.
Ele é
único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de
atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe
traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as
palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do
homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que
assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu
casamento.
Assim fui
aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao
mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a
natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em
busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus
sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de
água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme
algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes,
e sorriremos juntos.
Ah,
quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não
é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como
se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra
pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me
treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei
mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas
familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os
seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.
Estes
meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido.
Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais
tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao
cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia
me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma.
Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho.
Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu
possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato.
Nunca
mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso
dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora,
pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem
justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse
algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou
para sempre mergulhada.
Não posso
reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e
ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas
com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É
gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu
esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é
que no fim do dia já não sei quantos anos tenho.
E também
evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos
de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente
apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do
outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em
floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos.
Sou grata
pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade
às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um
desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca,
seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me
alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem
reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos
declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.
Os LIVROS
de NÉLIDA PIÑON que LI
SALA de
ARMAS
(1973)
Um comentário:
Uma escritora importantíssima para a nossa identidade literária 🙏 Que descanse em paz
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