Ilustrações: GEORGES de LA TOUR
(1593 – 1652. Vic-sur-Seille / França)
Quando recordo LÚCIO CARDOSO (1912 – 1968. Curvelo / Minas Gerais) vem à mente o extraordinário romance “Crônica da Casa Assassinada” (1959), que já li três vezes. Conhecido por sua íntima amizade com Clarice Lispector e por sua “inquietude existencial”, como diria Nelly Novaes Coelho, ele foi fiel até o fim aos seus princípios e visão de mundo, ainda que à custa de isolamento e solidão. Seu diário traz testemunhos desse estranhamento, dessa rebeldia, dessa marginalidade.
Desaparecido há mais de meio século, permaneceu como um escritor de qualidade. A redescoberta da sua obra refinada deu-se no final da década de 1990, talvez pelo relançamento de seus romances. Artista multifacetado, com inúmeros recursos de expressão, trafegou do conto à novela, do romance à dramaturgia, do memorialismo ao cinema, do ensaio a tradução. Já a sua poesia, mesmo para o leitor mais voraz, é quase desconhecida.
Num eterno
encantamento por sua escrita, leitor voraz dos seus “Diários”, selecionei sete
poemas seus para este blogue, não antes sem destacar a consciência de LÚCIO
CARDOSO a respeito do seu fazer poético, conforme anotação tirada ao “Diário”,
onde diz: “Não se ama os poetas, grande engano – são seres solitários e
destinados à morte. Morte sem perdão – porque não há perdão para os poetas”.
A poesia foi a sua primeira forma de expressão e, talvez, a última. Às vésperas do derrame que o furtou à arte da palavra, escreveu o poema “Retrato de Yêda”. Era o dia 11 de novembro de 1962. Exatamente em 07 de dezembro, sofreria o segundo derrame [cerebral], que o impediria definitivamente de escrever.
01
A poesia foi a sua primeira forma de expressão e, talvez, a última. Às vésperas do derrame que o furtou à arte da palavra, escreveu o poema “Retrato de Yêda”. Era o dia 11 de novembro de 1962. Exatamente em 07 de dezembro, sofreria o segundo derrame [cerebral], que o impediria definitivamente de escrever.
01
AMANHECER
A noite
está dentro de mim,girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sobre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.
E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a música das flores que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.
Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa
desaparecendo sugados pela treva.
02
POEMA do
FERRO e do SANGUE
Esqueceram
os campos revolvidos
onde vegetam perdidos
os ossos obscuros
calcinados
de dez milhões de mortos.
Esqueceram as cruzes improvisadas
erguendo para o alto
preces de galhos retorcidos.
E esqueceram o rumor das granadas
revolvendo a terra e os vivos
devorando os mortos
destruindo.
03
onde vegetam perdidos
os ossos obscuros
calcinados
de dez milhões de mortos.
Esqueceram as cruzes improvisadas
erguendo para o alto
preces de galhos retorcidos.
E esqueceram o rumor das granadas
revolvendo a terra e os vivos
devorando os mortos
destruindo.
03
RECEITA
de HOMEM
Depois
deve ser alto,sem lembrar o frio estilo da palmeira.
Moreno sem excesso para que se encontre
tons de sol de agosto em seus cabelos.
E nem louro demais para que, de repente
no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida.
E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos
e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto.
Pés grandes, também, por que não,
para que os regressos sejam breves
e haja resistência para as conjuntas caminhadas.
Os olhos falem, falem sempre, falem
de amor, de ciúme, de morte ou traição.
Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos
é como sepultura exposta ao sol do meio-dia.
E que o riso relembre um pouco da infância,
para que se tenha, no fervor do beijo,
uma memória de pitanga e amora esmagadas
Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil,
e escureça a penugem até o sexo velado.
(Mas não definitivamente.)
E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza,
e o seu rastro fale de perfume, sem perfume
e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos.
E que ele cante, sem cantar
por toda a sua humana contextura,
para que também em torno dele as coisas cantem,
quando, como o primeiro homem,
nu ele se erguer defronte ao mar.
04
A CASA do
SOLTEIRO
A casa do
solteiro é alta e de paredes de angústia,
muros escorrem como verdes contornos
e colunas de mármore frio guardam seus limites.
Há quatro anjos sentados no teto solene e casto
e com luzes vermelhas, entre ciprestes,
sondam os anjos – guardiões – os fundamentos
que se apoiam com gemidos nos porões e adegas,
no rio escuro e na água morta
de correntes que foram vencidas – despedaçadas.
A casa do solteiro é cor de chama,
de silêncio aflito e aurora sem contemplação.
São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
são traves de cristais e de luxúria.
Há um descampado em torno: nostálgicos,
cemitérios se evaporam no crepúsculo
e ruínas de azul e ópio cintilam,
entre guitarras e navalhas abandonadas.
Há flores quentes e de carne, flores mesmas,
cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes
quentes de sofrimento e decomposição.
A casa do solteiro é o sol posto
quando perdemos a fé e o amor se foi,
o começo da noite quando não há horizonte,
a quilha partida e a lança sem gume.
A casa do solteiro se abre como a música,
é triste e macia, fechada como a do príncipe,
fechada, entre janelas longas de ferro,
enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.
Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,
tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,
os móveis andam, e nos olhares estranhos,
como róseos desmaios e garras de ultraje.
Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,
abraçando manequins de aço, corpos de rampas
em madrugadas de rompimento e viagens.
Esqueceriam as malas – e iriam muito altos,
olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.
E estão quietas: jogam as cartas verdes
e suspiram impossíveis paisagens de mar.
Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,
com quatro rosas voltadas para o mar,
a mais escura é que os guia. Rosas frias,
de pétalas aguçadas e de mortal traição.
A casa do solteiro é que eles elegeram,
ilha, jangada no silêncio do céu,
vasto navio abandonado e cheio de tormenta,
escândalo e aflição – a casa do solteiro flutua
50 e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,
chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,
tudo – neste silêncio único onde existe
como uma grande alma sozinha batendo
na infindável noite que não se acaba
e nem se acabará NUNCA,
A CASA DO SOLTEIRO.
05
muros escorrem como verdes contornos
e colunas de mármore frio guardam seus limites.
Há quatro anjos sentados no teto solene e casto
e com luzes vermelhas, entre ciprestes,
sondam os anjos – guardiões – os fundamentos
que se apoiam com gemidos nos porões e adegas,
no rio escuro e na água morta
de correntes que foram vencidas – despedaçadas.
A casa do solteiro é cor de chama,
de silêncio aflito e aurora sem contemplação.
São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
são traves de cristais e de luxúria.
Há um descampado em torno: nostálgicos,
cemitérios se evaporam no crepúsculo
e ruínas de azul e ópio cintilam,
entre guitarras e navalhas abandonadas.
Há flores quentes e de carne, flores mesmas,
cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes
quentes de sofrimento e decomposição.
A casa do solteiro é o sol posto
quando perdemos a fé e o amor se foi,
o começo da noite quando não há horizonte,
a quilha partida e a lança sem gume.
A casa do solteiro se abre como a música,
é triste e macia, fechada como a do príncipe,
fechada, entre janelas longas de ferro,
enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.
Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,
tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,
os móveis andam, e nos olhares estranhos,
como róseos desmaios e garras de ultraje.
Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,
abraçando manequins de aço, corpos de rampas
em madrugadas de rompimento e viagens.
Esqueceriam as malas – e iriam muito altos,
olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.
E estão quietas: jogam as cartas verdes
e suspiram impossíveis paisagens de mar.
Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,
com quatro rosas voltadas para o mar,
a mais escura é que os guia. Rosas frias,
de pétalas aguçadas e de mortal traição.
A casa do solteiro é que eles elegeram,
ilha, jangada no silêncio do céu,
vasto navio abandonado e cheio de tormenta,
escândalo e aflição – a casa do solteiro flutua
50 e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,
chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,
tudo – neste silêncio único onde existe
como uma grande alma sozinha batendo
na infindável noite que não se acaba
e nem se acabará NUNCA,
A CASA DO SOLTEIRO.
05
NÃO se
PODE LER
Não se
pode ler o queconfiado ao tempo flui
e se esvai com ruptura
do sangue –
e o que dito sem aleive,
transforma-se em pedra,
sobre o coração leve – leve demais –
e o que orgulhoso, radica-se no baixo, sem
forças para morrer e
nem glória para subir –
NÃO SE PODE LER
o que não se pode pensar,
nem ler, nem escrever.
Não se pode ler o que não se pode.
06
O RIO
O imenso
rio, como um tigre
fechado e seu âmbito de fome,
depois de devorar noturna selva
a própria espuma em si consome.
Fera desatada do aguadouro
a chorar os tempos de abastança
ácido cavalo em tons de louro
violando margens sitiadas…
…em teu ser ressurge minha infância
e pássaros reluzem na tua fronde.
Inquieto, também sem permanência
devasso tua alma sem receio;
e se assim me vejo em teu espelho,
rio, como ser sem ser o meio?
07
fechado e seu âmbito de fome,
depois de devorar noturna selva
a própria espuma em si consome.
Fera desatada do aguadouro
a chorar os tempos de abastança
ácido cavalo em tons de louro
violando margens sitiadas…
…em teu ser ressurge minha infância
e pássaros reluzem na tua fronde.
Inquieto, também sem permanência
devasso tua alma sem receio;
e se assim me vejo em teu espelho,
rio, como ser sem ser o meio?
07
ÚNICO
POEMA de AMOR
tudo tão
calmoa vida dormindo
como agora que tombasse sem murmúrio
na planície do meu pensamento ...
folhas mortas que não voam,
pássaros imóveis que não cantam,
água parada que não corre ...
e teu corpo como um lírio sobre a terra,
e a terra muda impregnada de perfume,
teus olhos grandes como flores noturnas,
flores que se abrem na doçura do silêncio
e minha sombra como uma nuvem perdida
debruçada sobre teus cabelos imóveis
que boiam na água da planície...