junho 12, 2023

.............................. SETE POEMAS de LÚCIO CARDOSO




Ilustrações: GEORGES de LA TOUR
(1593 – 1652. Vic-sur-Seille / França)

 
 
Quando recordo LÚCIO CARDOSO (1912 – 1968. Curvelo / Minas Gerais) vem à mente o extraordinário romance “Crônica da Casa Assassinada” (1959), que já li três vezes. Conhecido por sua íntima amizade com Clarice Lispector e por sua “inquietude existencial”, como diria Nelly Novaes Coelho, ele foi fiel até o fim aos seus princípios e visão de mundo, ainda que à custa de isolamento e solidão. Seu diário traz testemunhos desse estranhamento, dessa rebeldia, dessa marginalidade.
 
Desaparecido há mais de meio século, permaneceu como um escritor de qualidade. A redescoberta da sua obra refinada deu-se no final da década de 1990, talvez pelo relançamento de seus romances. Artista multifacetado, com inúmeros recursos de expressão, trafegou do conto à novela, do romance à dramaturgia, do memorialismo ao cinema, do ensaio a tradução. Já a sua poesia, mesmo para o leitor mais voraz, é quase desconhecida.
 
Num eterno encantamento por sua escrita, leitor voraz dos seus “Diários”, selecionei sete poemas seus para este blogue, não antes sem destacar a consciência de LÚCIO CARDOSO a respeito do seu fazer poético, conforme anotação tirada ao “Diário”, onde diz: “Não se ama os poetas, grande engano – são seres solitários e destinados à morte. Morte sem perdão – porque não há perdão para os poetas”.
 
A poesia foi a sua primeira forma de expressão e, talvez, a última. Às vésperas do derrame que o furtou à arte da palavra, escreveu o poema “Retrato de Yêda”. Era o dia 11 de novembro de 1962. Exatamente em 07 de dezembro, sofreria o segundo derrame [cerebral], que o impediria definitivamente de escrever.
 
01

AMANHECER
A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sobre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.
E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a música das flores que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.
Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa
desaparecendo sugados pela treva.

02

POEMA do FERRO e do SANGUE
Esqueceram os campos revolvidos
onde vegetam perdidos
os ossos obscuros
calcinados
de dez milhões de mortos.
 
Esqueceram as cruzes improvisadas
erguendo para o alto
preces de galhos retorcidos.
 
E esqueceram o rumor das granadas
revolvendo a terra e os vivos
devorando os mortos
destruindo.

03

RECEITA de HOMEM
Depois deve ser alto,
sem lembrar o frio estilo da palmeira.
Moreno sem excesso para que se encontre
tons de sol de agosto em seus cabelos.
E nem louro demais para que, de repente
no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida.
E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos
e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto.
Pés grandes, também, por que não,
para que os regressos sejam breves
e haja resistência para as conjuntas caminhadas.
Os olhos falem, falem sempre, falem
de amor, de ciúme, de morte ou traição.
Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos
é como sepultura exposta ao sol do meio-dia.
E que o riso relembre um pouco da infância,
para que se tenha, no fervor do beijo,
uma memória de pitanga e amora esmagadas
Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil,
e escureça a penugem até o sexo velado.
(Mas não definitivamente.)
E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza,
e o seu rastro fale de perfume, sem perfume
e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos.
E que ele cante, sem cantar
por toda a sua humana contextura,
para que também em torno dele as coisas cantem,
quando, como o primeiro homem,
nu ele se erguer defronte ao mar.
 
04

A CASA do SOLTEIRO
A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia,
muros escorrem como verdes contornos
e colunas de mármore frio guardam seus limites.
Há quatro anjos sentados no teto solene e casto
e com luzes vermelhas, entre ciprestes,
sondam os anjos – guardiões – os fundamentos
que se apoiam com gemidos nos porões e adegas,
no rio escuro e na água morta
de correntes que foram vencidas – despedaçadas.
A casa do solteiro é cor de chama,
de silêncio aflito e aurora sem contemplação.
São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
são traves de cristais e de luxúria.
Há um descampado em torno: nostálgicos,
cemitérios se evaporam no crepúsculo
e ruínas de azul e ópio cintilam,
entre guitarras e navalhas abandonadas.
Há flores quentes e de carne, flores mesmas,
cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes
quentes de sofrimento e decomposição.
A casa do solteiro é o sol posto
quando perdemos a fé e o amor se foi,
o começo da noite quando não há horizonte,
a quilha partida e a lança sem gume.
A casa do solteiro se abre como a música,
é triste e macia, fechada como a do príncipe,
fechada, entre janelas longas de ferro,
enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.
Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,
tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,
os móveis andam, e nos olhares estranhos,
como róseos desmaios e garras de ultraje.
Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,
abraçando manequins de aço, corpos de rampas
em madrugadas de rompimento e viagens.
Esqueceriam as malas – e iriam muito altos,
olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.
E estão quietas: jogam as cartas verdes
e suspiram impossíveis paisagens de mar.
Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,
com quatro rosas voltadas para o mar,
a mais escura é que os guia. Rosas frias,
de pétalas aguçadas e de mortal traição.
A casa do solteiro é que eles elegeram,
ilha, jangada no silêncio do céu,
vasto navio abandonado e cheio de tormenta,
escândalo e aflição – a casa do solteiro flutua
50 e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,
chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,
tudo – neste silêncio único onde existe
como uma grande alma sozinha batendo
na infindável noite que não se acaba
e nem se acabará NUNCA,
A CASA DO SOLTEIRO.
 
05

NÃO se PODE LER
Não se pode ler o que
confiado ao tempo flui
e se esvai com ruptura
do sangue –
e o que dito sem aleive,
transforma-se em pedra,
sobre o coração leve – leve demais –
e o que orgulhoso, radica-se no baixo, sem
forças para morrer e
nem glória para subir –
NÃO SE PODE LER
o que não se pode pensar,
nem ler, nem escrever.
Não se pode ler o que não se pode.
 
06

O RIO
O imenso rio, como um tigre
fechado e seu âmbito de fome,
depois de devorar noturna selva
a própria espuma em si consome.
 
Fera desatada do aguadouro
a chorar os tempos de abastança
ácido cavalo em tons de louro
violando margens sitiadas…
 
…em teu ser ressurge minha infância
e pássaros reluzem na tua fronde.
Inquieto, também sem permanência
 
devasso tua alma sem receio;
e se assim me vejo em teu espelho,
rio, como ser sem ser o meio?
 
07

ÚNICO POEMA de AMOR
tudo tão calmo
a vida dormindo
como agora que tombasse sem murmúrio
na planície do meu pensamento ...
folhas mortas que não voam,
pássaros imóveis que não cantam,
água parada que não corre ...
 
e teu corpo como um lírio sobre a terra,
e a terra muda impregnada de perfume,
teus olhos grandes como flores noturnas,
flores que se abrem na doçura do silêncio
e minha sombra como uma nuvem perdida
debruçada sobre teus cabelos imóveis
que boiam na água da planície...