dezembro 08, 2024

.................................................. O DESTINO que DEUS me DEU

castelo de vide, da sacada da minha casa
 

Solidão é independência,
com ela eu sempre sonhara
e a obtive afinal após tantos anos.
HERMANN HESSE
(1877 – 1962. Cawl / Alemanha)
O Lobo da Estepe (1927)
 
vídeo
PÁSSARO no FIO
(Bird On The Wire, 1969)
  LEONARD COHEN
(1934 – 2016. Montreal / Canadá)
 
para Gonçalo Rio Novo,
um pescador açoriano
 
Imagens:
ANTONIO NAHUD
e anônimos

 
 
Quando eu era jovem e não sabia que era feliz, tudo era cheio de vida, e a vida era magistral. Percorri cidades lendárias como Barcelona, Paris, Londres, Roma, Berlim, com o coração na mão. Naquele tempo, achava muitas pessoas belas, mas agora muito raramente considero alguém belo. Tenho uma história, várias histórias, e pretendo continuar a tê-las. Até quando? Aprendi que está tudo dentro de nós, o bem e o mal, a alegria e a tristeza. O mundo, como resultado das escolhas mais íntimas, pode ser bom e luminoso como o coração de Deus, ou sombrio e triste. Mas além da escuridão, remorsos e ingratidão, esta crônica pulsa nostalgia e beleza, e o amor queima em memórias avulsas. Não são palavras de martírio, e sim de êxtase. Eu nunca evitei excentricidades, como a atração pela solidão e pelo passado. Naturalmente me aceito como sou. Aprecio a solidão, a contemplação e recordações sem culpas. É melhor ter poucos amigos do que muitos. Eu não tenho intriga com ninguém. Nem no trabalho nem com vizinhos. Sou um aventureiro cordial. Respeito os outros e procuro viver distante do movimento social que acontece atualmente. Não odeio ninguém, tampouco confio em humanos. Cachorros são confiáveis, mas as pessoas não são confiáveis. Os cães são bons e leais, como as pessoas não conseguem ser. Nunca sabemos o que elas conspiram e o que são capazes de fazer. Ao longo dos anos fui sabotado pela traição e inveja. Sobrevivi, e sou grato a Deus por estar em paz.
 
Desejo passar os últimos anos de existência terrestre no campo, numa praia esquecida ou em uma cidadezinha arborizada histórica. Talvez seja um sonho impossível, tornei-me um senhor, cinquentão, e não tenho renda suficiente para me alojar longe do insensato mundo. Sentindo falta do silêncio e da solidão, procurei morar numa casa espaçosa, com jardim, quintal, vários quartos, banheiros e salas, fortemente protegida. É uma espécie de ilha de Monte Cristo ou de castelo literário. Fico um bom tempo no jardim com Puck, tenho um harmonioso relacionamento com as plantas e com o meu cão. Não amo o sol, e essa cidade é ensolarada o ano inteiro. Aprecio o frio e o tempo chuvoso, mas raramente chove por aqui. Espero sempre a chuva que nunca vem, e sigo sem me queixar, afinal existem tantas coisas boas, do presente e do tempo que passou. Páginas de livro dobradas e esquecidas. Eu aprendi que ser amado não é nada, mas amar é tudo. Fui amado inúmeras vezes, parti corações, e raramente amei de verdade, talvez duas ou três vezes. O que torna a existência valiosa são os nossos sentimentos e a nossa sensibilidade. O dinheiro não é nada, nem o poder. Vi muitos que tinham ambos e estavam infelizes. A beleza também não é nada, conheci homens e mulheres lindos, que apesar de toda a beleza eram ridículos e em poucos anos se deformaram fisicamente. Felicidade é amor e nada mais. Quem é capaz de amar é abençoado. Morei em dezenas de cidades e amei profundamente duas delas.
 
eu em castelo de vide
Fui muito feliz. Havia bosques, céu estrelado, casarões antigos e pouca gente. A Vila de Santa Cruz de Graciosa, na Ilha de Graciosa, nos Açores, e Castelo de Vide, na região do Alentejo, em Portugal. Nunca me adaptei a cidades sem fim, a multidões de desconhecidos. Me sentia oprimido em São Paulo, em Paris e até em Londres. São Paulo talvez tenha sido o lugar mais desconfortável que morei. Não me enxergava mais humano, me via como uma barata entre baratas. E morei em bairros elegantes, com bons empregos e companhia de escritores. Recordo que às vezes na Avenida Paulista, saindo do MASP, parava por segundos, petrificado, assustado com o vai e vem das criaturas insólitas. Parecia um hospício. Pedia a Deus para me livrar de São Paulo, se ficasse mais tempo iria morrer subitamente de desgosto. Nos Açores habitei o paraíso. Com pouco mais de quatro mil habitantes em toda a ilha, apresentava uma tonalidade esbranquiçada, que associada ao casario branco das povoações resultou no codinome Ilha Branca, atribuído por Raul Brandão na obra “As Ilhas Desconhecidas” (1926). Um caráter vulcânico, o farol da Ponta da Barca, campos férteis que produzem milho, hortícolas, fruta, vinho e onde se cria gado. No majestoso vulcão central (Maciço da Caldeira), situa-se a Furna do Enxofre, uma cavidade que contém no seu interior uma lagoa sinistra e assustadoras covas de lavas em ebulição. Às vezes não via ninguém durante dias. Caminhava suavemente e sem destino.

 
Bosques e rochas, lebres e narcisos acompanhavam meu caminho, e o Oceano Atlântico corria junto. Passava horas à beira mar ou em uma floresta encantada dentro do vulcão. Jogava dominó com um idoso guarda-florestal, ingênuo e divertido, que nunca havia saído da ilha em toda a sua vida, outras vezes eu ia para o alto mar com o pescador Gonçalo Rio Novo, que tinha a face de Cristo tatuada nas costas. Aos 28 anos, penetrantes olhos azuis, cabelos negros, branco, ele falava quase nada, murmurava vez ou outra, e me tratava com gentileza, cuidando para que eu não sofresse moléstia no mar furioso. Vigorosamente o barco azul deslizava rápido pelas águas transparentes. Eu o ajudava na entrega de pescado aos seus clientes nas freguesias da ilha: Vila de Santa Cruz da Graciosa, São Mateus, Guadalupe e Luz. Ganhava peixes e mariscos. Seu olhar repousou sobre mim pela primeira vez numa feira popular, tranquilo e com uma certa bondade triste, e seus olhos azuis estavam cheios da dor e da beleza do mundo. Ele me sorriu, e então achei nele um coração. Durante um ano nos tornamos inseparáveis. Ele era pescador por vocação e sentimento. Até suas assombrações eram marítimas. Por onde andará Gonçalo? Ainda vive? Nunca escrevi, nunca voltei. Costumo partir e não mais dar notícias. Ele morava numa casa de pedra, entulhada de artefatos de pesca, na boca do mar. Juntos, cozinhávamos, bebíamos vinho e em silêncio contemplávamos a dança das ondas.
 
Nunca investiguei sobre sua vida privada, percebia que era um moço recatado. Na nossa única conversa mais densa, ele perguntou: “Por que sempre está lendo?”. No alvo de uma resposta simples e honesta, disse: “Sou jornalista, escritor, para escrever preciso ler, é o que paga as contas”. Ele olhou para mim com uma espécie de compaixão, e concluiu: “Não aprendi a ler. Não preciso. Tenho o mar”. No dia em que parti para Londres, horas antes me despedi, ele colocou suas grandes e formosas mãos nos meus ombros e me encarou em silêncio absoluto. Pareceu uma eternidade. Sem uma palavra, subiu no barco e deu partida para o alto mar. Foi o adeus. Se passaram mais de vinte anos, e nunca regressei à Ilha Branca. Em Castelo de Vide era como estar no fim do mundo. Um mundo romântico, paisagem de jardins, abundância de vegetação, clima ameno. Fincada no alto de um monte, com uma praça de sobrados antigos, talvez três mil habitantes. E a vida ia passando. Sempre igual a cada dia. Quando a noite caía, depois que as cigarras cantavam, os vaga-lumes e mariposas tomavam as ruas apertadas. Na época, o único bar da cidade se abria para os mesmos fregueses, talvez uns vinte alentejanos. A máquina de música tocava fados e valsas que faziam maior a saudade dos mais velhos. Morei num casarão que José Maria, um rico e irreverente amigo português, herdou e deixava lacrado. Era um prédio monumental e decadente. Parecia o clássico “O Leopardo”, filme de Luchino Visconti.
 
pedra da baleia, em graciosa
O pomar tomado por videiras, oliveiras, laranjeiras e flores, muitas flores, principalmente lírios brancos e roseiras. Eu escolhi o primeiro andar, o quarto da frente, onde uma sacada dava para uma praça com uma fonte romana milenar. Fechei os outros quartos a chave. Usava apenas esse dormitório imenso, um salão no térreo com lustres de cristal, a cozinha-copa e o banheiro rústico. Praticamente só havia habitantes idosos na pequena cidade, não se via crianças e os jovens se contavam nos dedos.
Um cinema humilde exibia filmes antigos, alguns mudos. Depois das vinte e uma horas Castelo de Vide ficava completamente deserta. No bar que fechava às dez da noite, senhores sisudos jogavam damas ou cartas e jovens bebiam uma aguardente licorosa. Fiz amizade com dois deles e vez ou outra apareciam na calada da noite. Tocavam violão, eu servia vinho, perguntavam sobre o futebol brasileiro. Não lembro seus nomes, tinham por volta de vinte anos e planejavam imigrar no ano seguinte. As nossas reuniões não passavam de conversas tolas e brincadeiras libidinosas de embriagados. Tudo à luz de fifós e candeeiros, a energia elétrica estava cortada. Sem rádio e televisão, eu tirava fotografias da fauna e da flora, de pedaços da arquitetura bonita, caminhava na mata, comia porco e cordeiro no restaurante caseiro da atraente viúva Dona Manuela Romão. Era terra de desconfiados. Eu um estranho sem referências.
 
Os dois conhecidos somente se apresentavam – e discretamente - quando a cidade dormia. Na noite mais memorável, no auge do verão, ébrios, tomamos banho em um tanque de concreto no pomar, coberto por videiras. Desnudos, dando risadas, lutando, sob uma impressionante lua cheia. A gente se tocava, se beijava de língua, passava a mão no rabo mais próximo, o pau nas coxas, mas era um erotismo inocente, incompleto, para ser esquecido na manhã seguinte. Todas essas histórias fazem parte de outra vida. E como nenhum caminho volta atrás, continuo seguindo o destino que Deus me deu. Assim, a Ilha Branca e Castelo de Vide foram apagadas do mapa da minha trajetória. Mas quem poderá apagá-las das páginas do meu coração? Ou da memória literária? O passado nunca se apagará na saudade daqueles que se lembram. Do barco azul de Gonçalo Rio Novo apitando na imensidão do oceano. Dos sábados de feira vendendo peixe fresco. Do perfume de mar do pescador numa rede dividida a dois. Não podia desaparecer sem dizer a Gonçalo que morri na Vila de Santa Cruz de Graciosa, me enterraram ali, onde o seu barco está amarrado à oliveira, sempre estarei ali. Lembro-me também do canto desafinado do filho do ferreiro, que passava o dia martelando em sua bigorna, um rapaz ao violão que imitava Leonard Cohen. Do seu amigo que pretendia morar na Alemanha e enriquecer. Morenos bonitos, rudes, virgens, pouco sabiam da civilização indiferente, cruel e devassa.
 
O meu amor na eternidade iluminada de duas cidades que habitam em mim. Nelas moram a solidão e a felicidade. Sei que a vida de cada homem é um caminho em direção a si mesmo, o ensaio de um rumo. Toda existência é uma trilha que deve ser percorrida sem medo. Ninguém pode fazer isso por nós, porque o caminho não está marcado no mapa, nós o construímos pouco a pouco, com nossas decisões e ações. Na juventude, em épocas distintas, o caminho me levou à Castelo de Vide e à Ilha Branca. Realmente fenomenal, enriquecedor. Eu parti depois de meses, e não parti. Eu parti, e não devia ter partido. O mundo moderno não importa, mas eu não sabia, não correspondi ao olhar amoroso de um rapaz que pescava. E fui embora, coroado pelo mundano. Hoje me resta o sol inclemente, vidas vazias e quiçá um castelo inventado.
 
o bosque e a neblina dentro do vulcão ainda vivo
A CHAMA
 
Nunca penso No Passado
mas às vezes
O Passado pensa em mim
e se senta
sempre com muita suavidade em minha cara.
 
LEONARD COHEN
 
VILA de SANTA CRUZ de GRACIOSA

CASTELO de VIDE