O sorriso enigmático de HILDA HILST (1930 - 2004. Jaú / São Paulo) interrogava e respondia. Um sorriso invulgar que me ocorre tão nítido, tão límpido, tendo como cenário os jardins exuberantes da Casa do Sol, um sítio a 11 quilômetros de Campinas. Eu costumava visitá-la nos finais de semanas dos primeiros anos dos 90. A poeta habitava aquele claustro desde 1966, abrindo mão da intenso convívio social para se dedicar exclusivamente à literatura. Tal mudança foi influenciada pela leitura de “Carta a El Greco” (1956), do escritor grego Nikos Kazantzakis, que defende o isolamento para se aprofundar na complexidade da escrita. A Casa do Sol é uma residência enigmática, de inspiração andaluza, com pátio interno central. Rodeando a construção, uma variedade de árvores. Entre elas, uma figueira centenária, a preferida da escritora.
“Sou poeta”, confessei com pudor no nosso primeiro encontro. “Ser poeta não é fácil”, respondeu HILDA HILST rindo com extravagância. Desde então, nos tornamos íntimos. Enamorado por sua inteligência incomum e comportamento liberal, deixava-me embalar pela sua voz rouca de dicção perfeita lendo Ovídio, Petrarca, John Donne, Shakespeare, Jorge de Lima, Oscar Wilde e, por fim, Henri Michaux. À noite, víamos a telenovela do horário nobre global, acompanhados por um excitante uísque escocês e intermináveis gracejos de saudável loucura. Estive ao seu lado durante a feitura de “Do Desejo” (1992), numa movediça e fugaz satisfação. Nada esgotava o seu arsenal de palavras, num consciente delírio verbal que explodia todas as fronteiras do dizer.
“Sou poeta”, confessei com pudor no nosso primeiro encontro. “Ser poeta não é fácil”, respondeu HILDA HILST rindo com extravagância. Desde então, nos tornamos íntimos. Enamorado por sua inteligência incomum e comportamento liberal, deixava-me embalar pela sua voz rouca de dicção perfeita lendo Ovídio, Petrarca, John Donne, Shakespeare, Jorge de Lima, Oscar Wilde e, por fim, Henri Michaux. À noite, víamos a telenovela do horário nobre global, acompanhados por um excitante uísque escocês e intermináveis gracejos de saudável loucura. Estive ao seu lado durante a feitura de “Do Desejo” (1992), numa movediça e fugaz satisfação. Nada esgotava o seu arsenal de palavras, num consciente delírio verbal que explodia todas as fronteiras do dizer.
A dramaticidade da Casa do Sol (foto ao lado) se confundia com prospecções filosóficas sobre o tempo, a morte, o amor, Deus. As paredes intensas, rosadas, manchadas e úmidas, respiravam a solidão compartilhada e a grandeza literária, protegendo o fabuloso destino de sua moradora, uma das protagonistas fundamentais da paisagem intelectual brasileira do século 20. Fotografei Hilda dezenas de vezes em sua sozinhez, registrando a anatomia de um corpo idoso, flácido, de rugas em tom acobreado. Onde a formosura da juventude lembrando Ingrid Bergman ou Jeanne Moreau?
Avançada para a sua época, ela foi musa de artistas, poetas – Vinicius de Moraes se apaixonou por ela – e milionários. Uma mulher encantadora, livre, generosa, lúcida, sarcástica, queixosa, íntegra, culta, melancólica e apaixonada por cães. Embora tenha alcançado ampla notoriedade pessoal, mastigava o estigma de não se considerar popular, ambicionando ser lida, estudada, discutida. Numa estratégia escandalosa, chamou a atenção para a sua obra por meio de suposta adesão ao registro pornográfico. Filha de família rica do interior paulista, confessou-me episódios terríveis de sua trajetória em busca do inefável, passando por contínuos dissabores, afinal a sociedade burguesa exige o meio-termo, o disfarce, marginalizando quem milita contra a hipocrisia.
O deslumbre desconcertante do texto hilstiano mistura gêneros e linguagens. Babélico, refinado, irreverente, polifônico e múltiplo, numa busca literária mística. Resulta numa visão de angústia e, ao mesmo tempo, de êxtase. Com fervoroso amor pela originalidade, registra um intenso trabalho de linguagem e de musicalidade, um imaginário poético no qual questionamentos metafísicos se mesclam com fatos cotidianos. Sou leitor apaixonado de HILDA HILST, e jamais me esquecerei dos momentos rutilantes que passamos juntos.
Hildinha, em um dia infeliz, deixou de falar comigo por ciumadas, conspirações, calúnias, coisas tolas de parasitas. Sofri, mas desconfiava que tinha que ser assim, já havia acontecido com outros frequentadores da Casa do Sol. Ao morrer, não me espantei, pois a sua morte estava anunciada há décadas. Essa grande poeta morria a cada instante desde muito antes de conhecê-la. Portanto, apenas saiu do corpo ao encantamento, rumo ao enigma. Mudou-se para Marduk, o planeta reservado aos poetas, como acreditava. Mas o embevecimento diante da sua criação cresce à medida que as novas gerações percebem a transgressão da sua linguagem complexa, tentadora e relevante. Ave, poeta!
hilda e o namorado cássio reis,
paris, 1957
29 comentários:
Caro Antonio
Seu texto é um retrato perfeito, uma síntese impressionante, como se exprimisse minha própria experiência com a Hilda. (Morei dois anos na Casa do Sol.) Você colocou tudo: o estranhamento inicial, as tertúlias, o ritual diário da telenovela, o uísque, o background hilstiano que nos alcançava aos poucos e, quem diria, até mesmo uma referência às intrigas e conspirações das quais também eu, em certa medida, fui vítima. Enfim, quero parabenizá-lo pelo retrato e pedir permissão para publicá-lo, com os devidos créditos e referências (quais links?), em meu blog
http://blogdo.yurivieira.com/
e no blog do Digestivo Cultural
http://www.digestivocultural.com/
E obrigado por me ajudar a resgatar tão fortes lembranças.
Grande abraço
Yuri
Grande texto, Nahud. Eu tb viajo na literatura hilstiana!
Brevemente faremos uma homenagem a Hilda na nossa Revista Cultural, que está na praça a 11 anos e já no nº 86, e se possível, gostaria de uma colaboração sua, vc que a conheceu tão bem, a ponto de frequentar o Sítio da Casa do Sol.
Mais uma vez: Parabéns pelo belo texto.
Carlos Alberto Barreto - poeta/editor
MOVIMENTO CULTURAL ARTPOESIA - Salvador-Ba.
Antonio,
Agora, sim, estou sorrindo de uma orelha a outra (se isso é possível, mas dizem que é). Interessante, ontem eu estava lendo Hilda Hilst.
E você vem com um artigo desses, de deixar qualquer historiador louco de ciúmes com seu lado do convívio pessoal.
Só você mesmo para sentir no ar o que gosto, o que preciso para me acompanhar nessa trajetória: você. Como senti sua falta!
Beijos,
Irene
Querido e amável Antônio,
Você consegue transformar um mesmo texto em um conto, um poema, uma novela e também em filme.
Hoje ao ler seu texto, o primeiro sentimento era que estava lendo um conto, mas a frente um poema, quando passei do texto para fotos senti que estava presenciando uma novela e ao ver Hilda Hilst com o namorado veio um breve sentimento que estaria assintindo a um filme em preto branco.
Você não escreve simplesmente, você entra na alma de cada um de nós.
Beijos,
Ana Cláudia Barros
Belo texto dedicado a queridíssima Hilda de quem jamais nos esqueceremos. Obrigada pelo envio. Abraço grande . Giselda
Olá,
Achei maravilhoso!
Obrigado.
Grata Antonio, por esta bela matéria! Felicidades, Alba Liberato
Caro poeta, Antonio Nahud Júnior,
Saudações!! Ao ler seu texto a respeito de Hilda Hilst, fui convidado a uma travessia pelas veredas da "Casa do Sol"!! Ao longo desse percurso mito-poético, os versos da escritora pareciam, como música primaz, ecoar numa proliferação de ritmos e tons. Num jogo sinestésico, visualizei o rosto, o olhar e as mãos da poeta numa regência de palavras e silêncios! Aproveito o ensejo para parabenizá-lo pela convivência com, escuta e admiração pela obra e pelo ser Hilda Hilst, inquilina de Marduk!
Abraços de Adriano Eysen
também sou Hilda, e minha morada é a solidão, onde ninguém pode haver.
see you...
gosto imensamente do teu texto e é um prazer relê-lo, antonio.
hilst é incomparável!
grande abraço!
"Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo."
Meu querido AJr.
Acima um verso da Hilda que é exatamente compatível com a descrição que você faz. Já tive a oportunidade de ouvi-lo, sempre "olhando-a de novo".
Não conheci a Hilda pessoalmente, mas, através da sua fala, é como se eu tivesse dentro de mim um pedaço da Casa do Sol...
Gosto do seu texto.
Abraço você!
Neuzamaria
www.neuzamariakerner.blogspot.com
Excelente texto. Parabéns!
e... completando...
"Se te pareço noturna
e inperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim,
como se tu me olhasses
E era como se a água
Desejasse..."
Hilda Hilst
Não aguentei. Ela é maravilhosa.
"Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?
Amar o perecível,
o nada,
o pó,
é sempre despedir-se."
Hilda Hilst
Beijão
Ana Amelia
Bom texto!
Belo texto, aliás, como os seus demais textos. Torno-me seu leitor, como já o sou, fiel, de outro visitador de Hilda Hilst, veja lá:
www.armonte.wordpress.com
Diogo Álvares
Que experiencia magnifica deve ter sido essa!
O convívio com pessoas que somam é tão importante nas nossas vidas e nos abrem caminhos tão novos e excitantes que completam a nossa educação e abre para nós as asas da liberdade de expressão que é a essencia do escritor.
Gostei tanto da visita que voltarei.
Um grande abraço
Antonio, gostei muito das suas impressões sobre a Hilda. Parabéns... Nota 10... Uma bela semana e abraço sempre
Beleza de texto autobiográfico e, ao mesmo tempo, capaz de revelar facetas de Hilda Hilst, a poetisa mítica da contemporaineidade.
Vc. foi um felizardo, Naud, ao ter convivência com uma pessoa de tanto espectro poético e existencial.
Parabéns pelo blog.
Abraço.
Ricardo Mainieri
Arrepiante teu texto, Antônio. Grande abraço.
Muito boas! Nao sabia que voces conviveram. O blog esta otimo. Sempre visito-o. Parabens! Bj.
a Hilda é dessas pessoas que nunca se vão é literatura de sempre e para sempre
Antônio, o que dizer? Fico imaginando, antes pelo Yuri, e agora por você, o que deve ter sido conviver com Hilda, em uma casa cujo nome já aventa a possibilidade da existência real de Marduk.
Se eu tivesse a encontrado a tempo com vida, diria à ela que deixasse a busca da popularidade pra lá; que os populares geralmente são pobres de impopularidade; que a impopularidade é mais significante, afinal, me diz, que vai se atrever a estudar uma obra da do porte de Hilda diante dela?
Para mim ela é grande. Das poetas, talvez a maior, a mais ousada, e, o que tanto me agrada, filosófica na medida, fato que aliás, impele à impopularidade, porque tudo o que não se quer fazer hoje em dia - infelizmente - é pensar.
Mas o que temos com isso? Nada.
E o que ganhamos com isso? Tudo.
Fica aqui um registro de afeto no desconhecimento da pessoa dela. Gosto de Hilda como pessoa sem nunca a ter conhecido pessoalmente.
E isso é mais que poesia, ou talvez a própria poesia da vida, essa alquimia que poucos compreendem, poucos se interessam, porque de fato, os poetas de verdade são poucos, muito poucos.
Antônio,
Li o seu texto e me senti mais próxima do universo de Hilda, por isso agradeço. A ruptura da amizade de vocês sempre me deixou apavorada porque sou completamente apaixona por ela, pela sua ousadia e maestria com as palavras. George Pellegrini me deu "Sobre a Tua Grande Face" em 1994, desde então sou amante dos seus versos. Na verdade, sempre pensei que você pudesse, de alguma forma, se aproveitar do contato com ela para divulgar a sua intimidade compartilhada tão amiúde na Casa do Sol, confesso. Concomitantemente ao pensamento, sempre soube da sua própria grandeza e da capacidade que você tem de ser cronista dos autores, dos entrevistados ou não, cronista da literatura. Uma síntese de poeta e jornalista capaz de me arrebatar de encantamento e admiração com as notícias que mandava da Espanha, dos artistas mais raros. Você é um paradoxo: doce e ácido. Vivo nestas bifurcações da alma com relação aos dois, mas saio deste texto mais feliz, mais plena na certeza de que você contribui com o seu olhar para a nossa aproximação (de leitores apaixonados) possível com a vida e os mistérios da Poeta que me dilacera inteira e soberbamente. Um abraço, meu querido amigo e parabéns pelo texto.
Antonio, amigo. Não há como não segui-lo! hoje descobri o teu blog e agradeço vc escritor, poeta e jornalista, se debruçar sobre tantas coisas belas de se contar e pensar... o que pensar então do que conta aqui sobre tal mulher, que passou por Contos de Escarnio... e infinitas brigas com editores. Minha mãe disse: como pode gostar dessa pornografia... anos antes de nos deixar já tinha quase todos os livros dela rsss.... Abraços amigo, e estarei por aqui lendo teus posts, com muito prazer!
Parabéns pelo post!Poucos poetas foram como Hilda, provocante sensual e sofisticada!
Belíssimo blog, Antônio! Estudei a poesia de HH, especialmente o livro "Do Desejo", no Mestrado. Foi muito mágico. Quando puder, dê uma olhada no meu blog: http://poiesis13.blogspot.com/
Antonio,
Você está de parabéns pelo novo blog!
Deliciaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Gostei de ler o que você disse de HH, pois ando buscando conhecê-la. Imagina que fosse bonita, mas não pensei que fosse tanto... Estou lendo o livro "Do Desejo" desde ontem... Tenho mais uns quatro para ler. Acho cedo, ainda, para comentar sua poesia, mas achei interessante ela dizer que gostaria de saber que o leitor foi atingindo por um poema seu. Eu sou leitora que me deixo atingir com socos, flexadas, chamas ou seja lá como o poema me fira... Se HH ainda vivesse, gostaria, imensamente, de lhe dizer o que ela pede "Fui atingida, Hilda!
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