Ilustrações:
HENRI MATISSE
HENRI MATISSE
Despertei interesse pela literatura de PAUL BOWLES (1910-1999) ao ver “O Céu que
nos Protege / The Sheltering Sky” (1990), de Bernardo Bertolucci. No filme,
o escritor tem participação especial como um misterioso idoso, em um café, que
diz não ser turista, mas viajante. Assim, aproximei-me de uma narrativa nada
convencional. Jovem ainda, ele publicou alguns poemas em revistas. Como muitos
da sua geração, embarcou para Paris, conhecendo Gertrude Stein, que o
aconselhou a viajar a Tânger, onde passou um verão, tocando Mozart. A música
era outra paixão. Ele compôs para peças de teatro, colaborando com cineastas e
dramaturgos como Orson Welles, Elia Kazan, William Saroyan e Tennessee
Williams. Artista
multifacetado, autor de romances, contos, poemas e livros de viagens, traduziu
autores marroquinos e transcrições de contos tradicionais do Marrocos
recolhidos oralmente.
truman capote, jane e paul bowles |
“Eu não escolhi morar em Tanger de forma permanente. Isso foi alheio a minha vontade. Minha estadia devia ser de curta duração, tinha a intenção de ir para outro lugar, ainda e sempre, sem jamais me fixar definitivamente. A preguiça me fez postergar a partida. Depois veio o dia em que tive que me render às evidências: o mundo não apenas estava muito mais cheio do que há apenas alguns anos, mas os hotéis estavam piores, as viagens menos agradáveis e a maioria dos lugares menos bela do que antes. A partir de então, cada vez que me encontrava em outro lugar, tinha imediatamente vontade de estar em Tanger. Se estou aqui até hoje, é apenas porque este é o lugar em que me encontrava quando compreendi que o mundo estava mais feio e que não tinha mais vontade de viajar”, disse-me.
PAUL BOWLES se casou em 1937 com Jane Auer, depois Bowles, também escritora, lésbica, autora da obra-prima “Duas Damas Bem Comportadas / Two Serious Ladies” (1943). A vida de Jane foi atormentada e marcada pela doença e a sua obra, escrita até aos trinta anos de idade, compõe-se apenas desse romance, da peça teatral “In the Summer House” (1953) e de sete contos que foram publicados sob o título “Plain Pleasures”. A turbulenta relação do casal é retratada no romance “O Céu Que nos Protege / The Sheltering Sky”, primeiro sucesso editorial de Bowles, publicado em 1949 e ocupando o primeiro lugar da lista de best-sellers do “New York Times”. Este romance, como de resto, toda a sua obra ficcional, reflete o absurdo do mundo moderno, a crueza, a corrupção. Aliás, nos romances e contos do escritor não há culpados, há uma hierarquia de valores, uma explicação do humano sem julgamentos.
O suave ambiente do Norte
da África, bem como a tolerância que então se vivia no que respeita a
experiências homossexuais e a utilização de drogas, parecem ter constituído atrativos
e a casa de PAUL BOWLES em Tanger
passaria a ser o centro de peregrinação da geração beat, incluindo Allen
Ginsberg, William S. Burroughs e Gregory Corso, e também de meio mundo gay das letras e das artes: Jean Genet (que
se apaixonou pelo Marrocos e exigiu ser enterrado lá), Truman Capote, Tennessee
Williams, Joseph Losey, Luchino Visconti, Salvador Dali, Francis Bacon, Gore
Vidal, Carson McCullers, John Cage, Cecil Beaton, Djuna Barnes, Henri Cartier-Bresson.
Enquanto Bowles deixava-se seduzir por
garotos árabes, sua esposa sofreu um derrame cerebral em 1957 e não se
recuperou até sua morte, em 1973.
paul bowles |
A primeira impressão que tive foi a de estar diante de um anjo muito velho, cansado da experiência terrestre. Os olhos azuis e penetrantes revelavam desamparo, como um animal maltratado. Quando apertei a sua mão, tive receio de ser demasiado rude diante de tamanha fragilidade. Ele riu, perguntando: “O que faz um brasileiro em Tanger?”. “Vim vê-lo, Mister Bowles”, respondi com voz tímida. “Há coisas mais interessantes por aqui”, continuou com o mesmo sorriso delicado, convidando-me a sentar, enquanto o criado nos servia chá de hortelã. A casa, de simplicidade franciscana, tinha encanto próprio e cada objeto possuía personalidade. Observei os livros - não muitos para um escritor -, papéis empilhados, o salão mal iluminado e a leve claridade de minúsculas janelas. Um pássaro estranho não parava de cantar, competindo com a bonita música instrumental vinda de outro compartimento. “O que mais gosto é música. Poderia ter sido compositor”, confessou melancólico. “O senhor é compositor”, afirmei, lembrando-me das peças compostas para orquestra, piano, bailado e voz. Ele nada respondeu, ficando em silêncio por algum tempo, os olhos gélidos perdidos no invisível.
Quando voltou a olhar-me,
perguntei sobre a passagem por Tanger de célebres amigos gays - Tennessee Williams, Allen
Ginsberg, Gavin Lambert, Truman Capote e Gore Vidal, entre eles. Respondeu-me
que estava cansado da sua história, do passado, de falar de gente e livros. Não
havia arrogância no tom de voz. “Não gosta de conversar sobre suas viagens?”,
insisti. “Uma pessoa está sempre mudando e nunca chega a parte nenhuma. Mas
chegar a algum lugar não é necessário. Morrer sim. Tudo o que é inevitável é
necessário”, afirmou com sabedoria. Após novo e curto silêncio, animou-se, convidando:
“Vamos caminhar pelas ruas de Tanger? Mas não posso demorar, receberei um
cineasta argentino (Edgardo Cozarinsky, que filmou “Fantômes de Tânger” com
Bowles como ator) ainda hoje”. E assim aconteceu. Caminhamos durante horas
pelas ruas de Tanger, enquanto um ou outro o cumprimentava e eu me sentia feliz
como passarinho. Nunca mais voltaria a ver
PAUL BOWLES, ele morreria no ano
seguinte, em l999, aos 89 anos. Fascinante, inconformista visceral, é um dos
grandes viajantes eruditos do século XX, e o seu legado – musical e literário –
evidencia, em toda a sua originalidade, sofisticação e versatilidade, a
aventura, o talento e a mestria que caracterizam a sua vida e obra – sempre
indissociáveis.
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