pablo picasso |
Aqui há um excesso de
cascatas; os rios amontoados
correm depressa demais em direção ao mar,
e são tantas nuvens a pressionar os cumes das montanhas
que elas transbordam
encosta abaixo em câmera lenta,
virando cachoeiras diante de nossos olhos.
ELIZABETH BISHOP
Questões de Viagem
Em
1951, a poeta norte-americana ELIZABETH BISHOP (1911 - 1979. Worcester, Massachusetts / EUA) resolveu visitar uma
amiga dos tempos de faculdade que estava morando no Brasil. Sua ideia inicial
era passar uma semana no Rio de Janeiro e depois seguir viagem para outros
países da América do Sul, mas acabou ficando por quase 15 anos. Seu motivo
tinha nome e sobrenome: Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, arquiteta autodidata
carioca, responsável pela construção do Parque do Flamengo, mais conhecida como
Lota, com quem se relacionou amorosamente dos 40 aos 55 anos. Ela chegou quando no Brasil se
esboçava o período que muitos consideram uma renascença tropical, época de
reinvenção nacional no romance, na poesia, no cinema, na arquitetura, no
teatro, na música popular. Sentiu-se em casa. Se não pelo próprio lugar, ao menos pelo romance apaixonado com Lota. Foi sempre ambivalente com relação ao nosso país, fascinada por muitos de seus aspectos mais calorosos, mas horrorizada com a pobreza, a injustiça e o atraso. Numa de suas cartas para o poeta Robert Lowell, em 1959, escreveu: “Estou vivendo no Brasil há quase oito anos, a maior parte do tempo nas montanhas, perto de Petrópolis. Volto a Nova Iorque quando posso, mas aqui é meu verdadeiro lar agora. Como você sabe, é um país estranho, uma mistura dos séculos XVIII e XIX com rápida industrialização, terrível pobreza, luxo, preto e branco, o avançado e o primitivo – ainda estou surpresa de me ver vivendo aqui, mas vou ficando”.
lota de macedo soares |
Aos 40 anos, embarca em Nova York num navio mercante para uma longa viagem a América do
Sul. Acolhida nos meios especializados como revelação promissora,
vivia da fortuna deixada pelo pai e enfrentava crises sucessivas de alcoolismo
e criação. De passagem pelo Rio, vai passar uns dias com a ex-colega de universidade, no sítio Samambaia, em Petrópolis, onde
conhece a brasileira Lota. Não pensa em demorar, mas come um caju, adoece, é
hospitalizada e o apoio de Lota vira amor – um caso que vai durar pelo menos quinze anos. Embora ELIZABETH BISHOP
tenha amado Lota e o país, a entrega foi reticente. Entretanto, a aversão é
ambígua; afinal, é no Brasil que vai recuperar a verve que andara lhe
faltando.
O
Brasil marcou sua vida como temática de numerosos poemas, contos e cartas. Traduziu
poemas dos principais expoentes do modernismo brasileiro e manteve relações
cordiais com vários desses artistas. Sua percepção das contradições brasileiras
é sutil e perspicaz, traduzida em poemas sobre a paisagem, na
evocação das chuvas tropicais, na sátira social explícita, no retrato dos
pobres. ELIZABETH
BISHOP e Lota viveram juntas a maior parte do tempo na casa modernista,
envidraçada e coberta de alumínio, que Lota e o arquiteto Sérgio Bernardes
fizeram na mata de uma escarpa, na região de
Petrópolis. Cercada de carinho, segurança e isolamento, a poeta viveu dias felizes, apesar do alcoolismo renitente. Pôde também cultivar o ócio -
requisito que ela destaca como imprescindível, numa das cartas, à consecução da
atividade artística, ainda que num sentido reverso: dedicação absoluta, no caso
do poeta, à feitura do poema. Gastava meses, por vezes anos, escrevendo um único poema, trabalhando para obter um sentido de espontaneidade.
lota de macedo soares |
Lota era culta, mandona e introduziu a companheira no núcleo das
vanguardas do Brasil moderno. O apartamento do casal, no Rio de Janeiro, foi durante
esses anos um bom lugar para conhecer a boemia dourada carioca. Móbiles de
Alexander Calder e quadros de Portinari adornavam o ático com vista para o mar, na praia do Leme. O imóvel magnífico, no número 5 da rua Antonio
Vieira, é um bom exemplo do art déco dos anos 1930. No entanto, ELIZABETH BISHOP nunca ficou à vontade no Rio: “Não é a cidade mais bela do mundo, apenas o
lugar mais belo do mundo para uma cidade”. Achava a classe alta provinciana e esnobe,
e a indiferença dela diante da corrupção e da desigualdade enorme provocava sua
repulsa.
casa samambaia |
A
casa que se converteu em seu lar, em símbolo e personagem de seus poemas, foi a de Samambaia, em Petrópolis, a uma hora de
carro do Rio. Estava em construção quando elas se conheceram e acabou
sendo uma das obras-primas da arquitetura do século XX. Os famosos arquitetos Walter
Gropius e Alvar Aalto a elogiaram, o também arquiteto Richard Neutra a visitou e as revistas
internacionais a fotografaram. Como gesto de amor, Lota acrescentou ao projeto um pequeno estúdio independente, para a poeta escrever olhando as
cachoeiras e os morros da serra. Foi um reino secreto nas alturas, onde ela
encontrou calma e inspiração. Com seus grandes painéis de vidro, ainda hoje está
bem conservada, sobrevivendo como uma pousada modesta, sem luxos, mas cheia de sabor. Conserva a capela, varanda, grandes salões e pisos de madeira nobre. Com
os anos, a relação com a formidável Lota tornou-se opressiva demais, e
ELIZABETH BISHOP se refugiou em Ouro Preto, a joia do barroco brasileiro no
coração de Minas Gerais. Também esta bela casa, a Mariana, continua
intacta, um casarão colonial que ela comprou e
restaurou, com vista fabulosa do centro antigo. O nome dela é uma
homenagem à Marianne Moore, mentora e amiga.
O pai
de Lota, José Eduardo de Macedo Soares, oposicionista na República Velha,
depois adversário histórico de Getúlio Vargas, era dono do periódico mais
influente em meados do século passado, o Diário Carioca. Lota nasceu em
1910, em Paris, onde o pai se achava exilado. Mulher culta, estudou no ateliê do pintor Cândido Portinari, amiga de escritores e artistas.
Sem ter frequentado universidade, foi reconhecida como arquiteta e
paisagista emérita. Tinha uma personalidade prática, impaciente.
Deixou sua marca na paisagem e na história do Rio quando Carlos Lacerda, seu amigo e
primeiro governador (1960-4) da Guanabara, deu-lhe a missão de criar o Parque
do Flamengo.
parque do flamengo |
Enquanto finalizava o Parque do Flamengo, a saúde
de Lota deteriorou, conforme ela se debatia nas escaramuças burocráticas,
prestes a romper com o próprio Lacerda, cuja estrela política, depois do golpe
de 1964, declinava depressa. Recebeu diagnósticos de arteriosclerose e
depressão. Numa atitude drástica, contrária ao conselho médico, viajou para
Nova York a fim de conversar com a amada, tentando salvar o relacionamento. Na
manhã seguinte, 20 de setembro de 1967, a arquiteta se mataria de
uma overdose de tranquilizantes. Já quase inconsciente quando socorrida por ELIZABETH
BISHOP, que se recriminaria por ter dormido demais, ela foi hospitalizada e
entrou em coma. Morreu de falência cardíaca uma semana depois, aos 57 anos. Elizabeth
nunca se recuperou do choque provocado por mais uma perda. Embora a maioria dos
amigos de Lota no Rio tenha se voltado contra ela, continuou mantendo laços com
o Brasil, sobretudo com Ouro Preto, até o início dos anos 1970.
miranda otto e glória pires em “flores raras” |
Em sua
opinião, Gilberto Freyre é “legível”, embora faça ressalva a sua
condescendência para com a escravidão. É entusiástica quanto
a “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que considera o melhor na literatura
local depois de Machado de Assis. Ficou tão encantada com “Minha Vida de Menina”,
o diário de Helena Morley sobre
sua infância em Diamantina, que o traduziu e publicou em inglês. Escreve que
João Cabral de Melo Neto é dos poucos poetas brasileiros que de fato aprecia -
os outros seriam Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Desanima de suas tentativas para introduzir as amigas Clarice Lispector e Rachel de Queiroz nos
Estados Unidos. Critica os poemas concretos, que “parecem experiências pré-1914
com uma pitada de Cummings”.
casa mariana |
A
crítica é unânime em ressaltar, entre as qualidades literárias de ELIZABETH
BISHOP, a precisão verbal e a profundidade descritiva. Tinha, além disso, o
olho treinado de uma turista quase profissional, tomada pelo demônio geográfico
que a fez viajar como nômade pela vida afora. Apaixonada pela exatidão, recriou os
mundos do Canadá, EUA, Europa e Brasil. Não admitia ter pena de si mesma, mas
seus poemas mal escondem suas dificuldades como lésbica, órfã,
viajante, asmática, depressiva e alcoólatra.
CHEGADA em SANTOS
Eis uma costa; eis um porto;
após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:
morros de formas tão práticas, cheios - quem sabe? de autocomiseração,
tristes e agrestes sob a frívola folhagem,
uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,
alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,
e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turistas,
então é isso que este país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada menos
que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato
e definitivo entendimento de ambos
após dezoito dias de hiato?
Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,
uma estranha e antiga embarcação,
com um trapo estranho e colorido ao vento.
A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão
de que não havia bandeira, mas tinha que haver,
tal como cédulas e moedas - claro que sim.
E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,
eu e uma outra passageira, Miss Breen,
num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam
um carregamento de café que não tem mais fim.
Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!
não é que ele fisgou a saia de Miss Breen,
coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,
um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem
simpática. É tenente de polícia aposentada.
Quando não está viajando, mora em Glens
Falls, estado de Nova York. Bom. Conseguimos.
Na alfândega deve haver quem fale inglês e não
implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.
Os portos são necessários, como os selos e o sabão,
e nem ligam para a impressão que causam.
Daí as cores morta dos sabonetes e selos -
aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam
de nossos cartões-postais antes que possam lê-los
nossos destinatários, ou porque a cola daqui
é muito ordinária, ou então por causa do calor.
Partimos de Santos imediatamente;
vamos de carro para o interior.
(Tradução de Paulo Henriques Britto)
IDA à PADARIA
Esta noite a lua contempla
a avenida Copacabana
em vez de olhar para o mar,
e as coisas mais cotidianas
são novas pra ela. Debruça-se
sobre os fios frouxos dos bondes.
Lá embaixo, os trilhos se esgueiram
até se fundirem ao longe
(entre carros estacionados
que lembram balões coloridos
já murchos e moribundos);
os fios, pela lua atraídos,
somem numa nebulosa
longínqua. A padaria
está imersa na meia-luz –
estamos racionando energia.
Os bolos, de olhar esgazeado,
parecem que vão desmaiar,
As tortas, gosmentas, vermelhas,
doem. O que devo comprar?
Misturam milho à farinha
e as bisnagas ficam doentias –
pacientes de febre amarela
amontoados na enfermaria.
O padeiro, doente, sugere
“pães de leite” em vez de bolo.
Eu compro, e é como levar
um bebezinho no colo.
Sob falsa amendoeira
uma puta ainda menina
dança um chá-chá-chá, girando
como um átomo na esquina.
À sombra negra do meu prédio
um negro levanta a camisa
pra mostra um curativo
cobrindo negra ferida.
Com um bafo de cachaça
potente feito uma bazuca
aponta a bandagem branca
e me diz coisas malucas.
Dou-lhe dinheiro e boa-noite,
por força do hábito. Ah!
Não haveria uma palavra
mais relevante pra lhe dar?
(Tradução de Paulo Henriques Britto)
Uma ARTE
A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.
(Tradução de Paulo Henriques Britto)
BANHO de XAMPU
Os
líquens – silenciosas explosões
Nas
pedras – crescem e engordam,
Concêntricas,
cinzentas concussões.
Têm
um encontro marcado
Com
os halos ao redor da lua, embora
Até o
momento nada tenha mudado.
E
como o céu há de nos dar guarida
Enquanto
isso não se der,
Você
há de convir, amiga,
Que
se precipitou;
E eis
no que dá. Porque o Tempo é,
mais
que tudo, contemporizador.
No
teu cabelo brilham estrelas
Cadentes,
arredias.
Para
onde irão elas
Tão
cedo, resolutas?
-
Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada
e brilhante como a lua.
(Tradução de Paulo Henriques Britto)
30 comentários:
Linda história! E ainda rendeu um belo filme!...
Assisti o filme, Glória Pires arrasa no papel de lota.
Que bela história! Amei!
"A arte de perder não é nenhum mistério; Tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério..."
Maravilhaa!!
Vi o filme um dia desses.
Adorável!
Conheço a história e algumas de suas poesias. Tocante!
Maravilha! Muito obrigada!
Tenho o filme que conta a história amorosa de Elisabeth Bishop com Lota uma bela interpretação de Glória Pires como Lota. O título é algo como As flores raras.
Maravilha
Sou muito fã de toda a obra dela. Ela nasceu aqui em Massachusetts, em Worcester e confesso q quando soube da aventura dela no Brasil, pensei em um filme sobre este evento..nao deu outra virou filme, mas, eu nao o vi ainda.
Assisti ao Flores Raras. .Glória Pires estava divina no papel de Lota de Macedo Soares.
Legal! Gosto da história dela.
Assisti o filme e gostei da história de duas mulheres marcantes e corajosas
extraordinária Bishop
Assisti Flores Raras. Muito bom!
Maravilhaa!!
Bem lembrado, Nahud!
Eu, também, a conheci atraves do cinema em casa.
Maravilha
Perfeito.
por isso q amooo essa pagina
q lindoo
Me comove sempre
Metáforas maravilhosas!
Amo!!!!
O QUE É BOM SE MISTURA COM O QUE É BOM !!!
Gosto demais desta poeta!
Nascer o sonho, desenhando-o pela escrita.
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