Publicado no jornal Agora (BA)
Edição Especial do Centenário de Itabuna 2010.
Edição Especial do Centenário de Itabuna 2010.
Nas
Terras do Sem Fim qualquer pedaço de mata era cobiçado. Metade deus, metade
diabo, homens vindos de longe lutaram como bárbaros para fazer fortuna. Penso no sangue dos
CORONÉIS - os grandes proprietários de fazendas na época de
ouro do cacau, no sul da Bahia -, deles e de outros, dando cor à terra onde
nasceram os frutos mais da discórdia do que da concórdia. Embora bárbaros, tiveram o seu valor, construíram cidades que recebemos de herança. Eles tinham
poder de vida e morte sobre seus subordinados. Em “Tocaia
Grande” (1984), narrativa do filho ilustre Jorge Amado, conta-nos essa
história do ponto de vista do peão, do pobre desgraçado, do jagunço por força
da sorte.
Os
ricos produtores de cacau eram denominados coronéis sem que possuíssem de fato
o título militar. Na região sulbaiana, o título virou sinônimo de homem
próspero e influente. Segundo o historiador Adelindo Kfoury, os CORONÉIS do CACAU são uma mistura de lenda e realidade. Heróis ou sanguinários vilões, não
são unicamente frutos do imaginário engenhoso de Jorge Amado ou Adonias Filho.
Libertinos, audazes, violentos, desalmados, sagazes, impiedosos, ambiciosos,
emblemáticos e rudes, desbravaram o sul da Bahia, no final do século 19,
enfrentando desafios homéricos, lutando contra a natureza bruta, recebendo em
troca a fartura e fazendo história. Pela posse de terras selvagens, utilizaram
o trabalho árduo, dominação pela força, e regras acima das leis vigentes;
instigando caxixes e tocaias.
“Ao
fim das lutas pela conquista das matas, quando os caxixes substituíram as
tocaias nos recentes conflitos entre os coronéis do cacau pela posse das áreas
devolutas, sobraram jagunços pelas estradas indo e vindo sem rumo certo,
oferecendo-se para matar a módico pagamento, matando de graça para roubar”
JORGE
MADO
“Tocaia Grande”
No começo,
a riqueza natural das grandes áreas cercadas por Mata Atlântica. Dezenas de homens se embrenharam na
floresta hostil para desmatá-la. No seu interior construíram as roças e fazendas
de cacau. Começaram pobres, sem dinheiro e sem instrução, subindo na vida
pegando no facão, na espingarda papo amarelo, alimentando-se de carne seca,
farinha e rapadura. Viviam
em casebres, dormindo em redes ou esteira. Em “Terras do
Sem Fim” (1942) e “Tocaia Grande”, celebrados romances de Jorge Amado,
encontramos a descrição do processo de ocupação, luta pela terra, disputa
acirrada. Desse clima de contendas, em meio ao perigo, índios,
animais selvagens e doenças, surgiram os míticos e destemidos CORONÉIS.
Através
deles e de milhares de humilhados e massacrados, que não tiveram a mesma sorte,
vilas e cidades nasceram para a glória da região. Os CORONÉIS transformaram
as Terras do Sem Fim em palco para seu poder, fazendo-se obedecer, elegendo
representantes políticos, usurpando propriedades, manipulando autoridades e,
quando tudo isso não saciava a cobiça, mandavam jagunços assassinar os pequenos
cacauicultores em emboscadas, ou esses, acossados, acabavam por trabalhar para
o próprio algoz, e consequentemente perdiam suas roças. Muitas vezes, o
trabalhador bom de tiro complementava a mão de obra agrícola com a de jagunço
ou cabra (guarda-costa) do coronel.
Temidos
e admirados, os CORONÉIS eram ativos participantes da vida social
grapiúna(*), líderes legitimados pelo voto, quase sempre conquistado pela força
do dinheiro, das armas e controle das instâncias públicas – a justiça e a polícia.
Eles não tinham limite de gastos: bebiam champanhe francês como aperitivo,
perdiam fortunas na jogatina, acendiam charutos com notas de quinhentos mil
réis. Frequentavam bordeis de luxos, como o famoso Bataclan, habitado
por formosas prostitutas, muitas de origem
europeia, as famosas polacas, todas sob o comando de Antonia Machado, a “Maria
Machadão” da ficção de “Gabriela, Cravo e Canela” (1958). Mas existiam outros
cabarés, além de amantes espalhadas em fazendas e cidades vizinhas.
Sinônimo de prosperidade, seus palacetes eram sobrados faustosos mobiliados com requinte europeu. Eles viviam no mais elevado estilo. Os trabalhadores sergipanos, mergulhados na exuberância da natureza, eram oprimidos no salário que mal recebiam, nos preços extorsivos dos gêneros de primeira necessidade (geralmente vendidos pelo próprio dono da fazenda), nas jornadas excessivas de trabalho e na ausência de serviços básicos, como educação e saúde. Com a ajuda fundamental deles, os municípios de Ilhéus e Itabuna, no sul da Bahia, viveram uma época de prosperidade econômica em consequência da grande produção de cacau da região, que alcançou altos preços no mercado internacional. A fama de Ilhéus e Itabuna correu mundo. Junto com ela chegaram imigrantes estrangeiros, principalmente comerciantes sírio/libaneses, então chamados de “turcos”. Eles sobreviviam como mascates, indo de fazenda em fazenda vendendo de tudo um pouco, e imprimindo a culinária árabe como uma das características da região cacaueira baiana. Os navios aportavam trazendo aventureiros em busca de riqueza fácil.
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palacete berbert de castro, ilhéus, 1910 |
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coronéis do cacau de ilhéus |
Sinônimo de prosperidade, seus palacetes eram sobrados faustosos mobiliados com requinte europeu. Eles viviam no mais elevado estilo. Os trabalhadores sergipanos, mergulhados na exuberância da natureza, eram oprimidos no salário que mal recebiam, nos preços extorsivos dos gêneros de primeira necessidade (geralmente vendidos pelo próprio dono da fazenda), nas jornadas excessivas de trabalho e na ausência de serviços básicos, como educação e saúde. Com a ajuda fundamental deles, os municípios de Ilhéus e Itabuna, no sul da Bahia, viveram uma época de prosperidade econômica em consequência da grande produção de cacau da região, que alcançou altos preços no mercado internacional. A fama de Ilhéus e Itabuna correu mundo. Junto com ela chegaram imigrantes estrangeiros, principalmente comerciantes sírio/libaneses, então chamados de “turcos”. Eles sobreviviam como mascates, indo de fazenda em fazenda vendendo de tudo um pouco, e imprimindo a culinária árabe como uma das características da região cacaueira baiana. Os navios aportavam trazendo aventureiros em busca de riqueza fácil.
Buxixos
envolvendo os CORONÉIS do CACAU sempre foram populares entre os grapiúnas, muitas
vezes ganhando dimensão bem distantes da realidade. Sabe-se que graças a eles,
no auge da lavoura do cacau, o sul da Bahia chegou a ser responsável por 40% da
atividade financeira do Estado. Hoje, são relíquias do passado, e o
cultivo do cacau passou da opulência à decadência. Mas a saga dos plantadores
de cacau dificilmente será esquecida. Os romances do itabunense Jorge
Amado não permitirão, reacendendo riquezas fundadas em episódios sangrentos,
atentados e arruaças. Em Ilhéus, Misael Tavares foi o mais poderoso dos coronéis. Em Itabuna, ficaram na história José Firmino Alves, Henrique
Alves dos Reis e Paulino Vieira.
Na
trajetória da humanidade há um repertório sem fim de eventos como esses
acontecidos no sul da Bahia. Tudo o que houve foi tanto para o bem como para o
mal. O mais importante é a volta que a vida dá em torno desses eventos,
e nós todos dentro deles, evoluindo para construir novos mundos sem a bandeira
do sangue. Nas cidades
de Itabuna e Ilhéus o fausto antigo se perdeu, prédios de época se
arruinaram ou foram derrubados (como o adorável Castelinho, em Itabuna).
Os herdeiros esbanjaram a
fortuna dos pais, praticando todo tipo de extravagância. Apareceram doenças nas árvores e nos frutos. Endividados, os herdeiros dos CORONÉIS viraram as costas para a região. Na
memória, a opulência do passado.
(*)
Chame-se grapiúna aquele que nasce no sul da Bahia. A designação tem origem
tupi, sendo corruptela de igarapé-una (igarapé, pequeno rio; una, preta) ou de
igaraúna (igara, canoa; una, preta) com a queda da vogal e a contração das
sílabas gara.
FONTES
“Au Brésil. Deux regions de Bahia (1896-1937)” (1992), de Antônio Fernando Guerreiro de Freitas;
“Os Coronéis do Cacau” (1995), de Gustavo Falcón;
“Gabriela, Cravo e Canela” (1958), de Jorge Amado;
“Tensões do Tempo: A Saga do Cacau na Ficção de Jorge Amado” (2001), de Antonio Pereira Souza;
“Terras do Sem Fim” (1942), de Jorge Amado;
“Tocaia Grande” (1984), de Jorge Amado.
“Tocaia Grande” (1984), de Jorge Amado.