“Tudo é muito mais misterioso do que se
julga, e tudo isso aqui -
Deus, o universo e eu (Satã) - é apenas
um recanto mentiroso
da verdade inatingível.”
FERNANDO PESSOA
A Hora do Diabo
Ilustrações:
GUSTAVE DORÈ, LUCA SIGNORELLI
e WILLIAM BLAKE
Em Guimarães Rosa
transparece todo o misticismo do sertão, uma religiosidade quase medieval,
baseada apenas nos dois extremos e marcada pelo medo, pelo pavor, em que há até
mesmo a preocupação de não invocar o Demo, para que ele não “forme forma”, daí o Diabo ser tratado na linguagem rosiana por “o que não existe” ou “o
que não é, mas finge ser”
e expressões semelhantes. Relendo o mestre Rosa, nasceu a vontade de invocar
o Rabudo na história da literatura, apoiando-me nas palavras sábias de William
Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa
filosofia.”. Afinal, ser capaz de considerar afirmações metafísicas denota sabedoria, cautela e intuição. Eu, acredito e não
acredito no Senhor do Mal.
O protagonista deste ensaio se
chama, em hebraico, Satã, isto é, o Adversário, o Inimigo. Em grego, o Diabo -
o Acusador, o Caluniador. Ele é aquele que caiu do céu, como um raio, citado em
“Lucas 10:18”. Arrastou consigo uma legião de anjos celestes, descrito em
“Apocalipse 20:2”. As variadas denominações do Anjo Fulminante no meio popular
revelam sua natureza dissimulada e camuflada. Conhecido como Semi-hazad,
Azazel, Belial, Asmodeu (hebreus); o Eblis (muçulmano); The Old Man (Escócia);
o Macaco de Deus (Idade Média); o Maligno, o Maldito, o Inimigo, o Tentador, o
Maldito, o Pai da Mentira, o Príncipe das Trevas, o Cão, o Arrenegado, o
Beiçudo, o Azucrim, o Porco, o Sujo, o Tição, o Coxo, o Anhangá, o Rabudo, como
é chamado no Brasil.
Tão antigo quanto a própria literatura, Satã
é um velho personagem literário, e muitos foram aqueles que registraram os passos
claudicantes do Anjo Caído. Pode-se mesmo dizer que é nos tortuosos recônditos
da mente humana que Lúcifer (do latim, “o portador da luz”) encontra refúgio
após sua mítica expulsão das esferas celestiais. E, ao fazer do imaginário dos
homens seu pandemônio, passa a inquietá-los com sua enigmática figura,
inflamando-lhes o intelecto e, por conseguinte, tornando-se o cerne de
discussões travadas não somente em âmbito religioso, mas também filosófico,
literário e artístico.
Muitos não partilham da credulidade acerca da
existência, poderes e possibilidades do Maligno, conhecido como o primeiro
rebelde do cosmos - seguido por Eva, a segunda rebelde, e por Caim, o terceiro.
Como antagonista de Deus, foi e continua sendo um expressivo personagem
literário, cinematográfico, musical, teatral etc. Talvez seja sua maior estratégia,
converter-se em ficção e nos convencer de que não existe, e assim existir
eternamente, como afirmou Charles Baudelaire: “O melhor truque do Diabo é nos
persuadir que ele não existe”. Sobre o tema espinhoso, o poeta britânico C.S.
Lewis, definiu lucidamente: “Há dois erros idênticos e opostos nos quais nossa
espécie pode cair acerca dos demônios. Um é não acreditar em sua existência. O
outro e nutrir um interesse excessivo e doentio neles. Os próprios diabos ficam
igualmente satisfeitos com ambos os erros e saúdam o materialista ou o fanático
com o mesmo deleite.”.
Quando era muito jovem, antes dos vinte anos,
escrevi vários contos com a participação especial do Coisa Ruim, entre eles
“Fúria”, “Noites de Ninguém”, “Disse-me o Demônio”, “O Demônio Acossado” e “A
Mão do Diabo Está Sobre Mim”. Dois deles se perderam. Com o tempo, descobri que
o Maldito pode ser encontrado em centenas de volumes. Sua epopeia – ou odisseia
- diabólica foi inúmeras vezes revisitada na literatura. Como é bem típico de
escritores: creio, logo duvido; não creio, logo questiono. A grandeza tétrica e
a tristeza atroz do Diabo foram lembradas em divinos poemas, tragédias
vigorosas, romances requintados e peças de teatro de renome.
O jesuíta Martins Terra, em sua obra “Existe o Diabo? Respondem os Teólogos” (1975), esclarece que a existência do Rabudo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé. “Se você não acredita em Deus, você é ateu, mas se não acredita no Diabo é igualmente ateu, já que a crença nele é um dogma de fé. Portanto, tínhamos os sem–Deus e agora temos o sem-Diabo. Não é sem razão que Jorge Luis Borges considerava a teologia como um gênero similar ao gênero fantástico”, opina a escritora brasileira Salma Ferraz.
O jesuíta Martins Terra, em sua obra “Existe o Diabo? Respondem os Teólogos” (1975), esclarece que a existência do Rabudo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé. “Se você não acredita em Deus, você é ateu, mas se não acredita no Diabo é igualmente ateu, já que a crença nele é um dogma de fé. Portanto, tínhamos os sem–Deus e agora temos o sem-Diabo. Não é sem razão que Jorge Luis Borges considerava a teologia como um gênero similar ao gênero fantástico”, opina a escritora brasileira Salma Ferraz.
No século III, o númida Lucius Caecilius
Firmianus, conhecido como Lactantius, na obra “Divinae Institutiones” (c. 311),
afirmou que Lúcifer teria sido nada menos, nada mais que o irmão do Logos, do
Verbo, isto é da Segunda Pessoa da Trindade. O “Inferno”, a primeira parte da “Divina Comédia” (1321) de Dante Alighieri, sendo as outras duas o “Purgatório” e o “Paraíso”, é descrito com nove círculos de sofrimento localizados dentro da Terra. Dividido em trinta e quatro cantos, a viagem de Dante é uma alegoria através do que é essencialmente o conceito medieval de inferno, guiada pelo poeta romano Virgílio. Pintores de todos os tempos reproduziam visualmente esta obra de viés épico e teológico, inclusive Sandro Boticelli e Salvador Dalí.
Em “Belfagor, o Arquidiabo que se Casou”
(1549), a prosa envolvente de Nicolau Maquiavel nos conta com humor as
desventuras de um Diabo que é mandado à terra para, como humano, verificar o
que é o matrimônio. Certa vez, o autor declarou que ao morrer preferia ir parar
no inferno, onde poderia se entreter com gente culta e engenhosa, a subir ao
temeroso reino dos beatos. Christopher Marlowe e William Shakespeare usaram o
Tentador como base para a representação estereotipada dos judeus em “A História
Trágica do Doutor Fausto” (1604) e “O Mercador de Veneza” (1597) e dos nativos
do Novo Mundo em “A Tempestade” (1611). O espanhol Calderón de la Barca colocou
o Tinhoso no seu “Mágico Prodigioso” (1637).
No fim do século XVIII, a reação ao
pensamento artístico neoclássico deu forma ao romance gótico fazendo do Diabo
um sedutor maléfico. Na França, Jacques Cazotte publicou “O Diabo Apaixonado”
(1772) enquanto que, na Inglaterra, M. G. Lewis lançou seu “The Monk” (1796). O
romântico Friedrich Schiller fez apologia ao Senhor do Mal em “Bandoleiros”
(1781). Alfred de Vigny e Mikhail Lérmontov, em 1840, fizeram de Satã herói de
famosos poemas; Goethe, no seu “Fausto” (1808), colocou Mefistófeles como um
dos protagonistas da sua história; Giosuè Carducci, agraciado com o prêmio
Nobel, escreveu sobre ele; Giacomo Leopardi lançou um “Hino a Ariman” (1835):
“Rei das coisas, autor do Mundo, arcana / Malvadez, sumo poder e suma /
Inteligência, eterno / Dador dos males e regulador do movimento”; Victor Hugo lhe
consagrou um livro inteiro, “O Fim de Satanás” (1886); Dostoievski o apresentou
no seu romance mais famoso, “Os Irmãos Karamazov” (1880); e Ibsen o evocou com
o nome de “Grande Curvo” no mais significativo de seus dramas, “Peer
Gynt” (1867).
Algumas obras, pelo seu conteúdo blasfemo,
poderiam ser reconhecidas como inspiradas pelo espírito satânico. Um desses
livros é certamente “Leviathan” (1651), de Thomas Hobbes. Ele conclui que a
vida consiste na “guerra de todos contra todos”. Em “Matrimônio do Céu e do
Inferno” (1790), de William Blake, os provérbios do inferno tem um
inconformismo irreverente. Assim como “O Assassínio como Uma das Belas Artes” (1827),
de Thomas De Quincey, ou noutro criminoso diabólico retratado em “Caneta, Lápis
e Veneno” (1891), de Oscar Wilde. A teoria do mal pelo mal foi exposta, com a
costumeira implacável agudeza, por Edgar Allan Poe na célebre narrativa “O
Demônio da Perversidade” (1845), no qual é descrita a atração do abismo.
Reflexos satânicos podem ser encontrados ainda na obra de Petrus Borel, “Madame
Putiphar” (1939). Borel fundou em 1884 um jornal com o título de “Satã”.
O demônio que, sendo orgulho de poder é
também mediocridade satisfeita, como dizia Gogol, no livro “Testamento”
(publicado postumamente em 1762), do abade Jean Meslier, falecido em 1729, é
senhor de uma frase macabra que se tornou famosa na Revolução
Francesa: “É preciso estrangular o último padre com as tripas do último rei”. A
notoriedade do vigário se deve a um tratado filosófico ateu, descoberto após sua morte.
O primeiro escritor que enunciou a teoria da superioridade do Mal e a beleza da crueldade foi o Marquês de Sade. Talvez a verdadeira substância do sadismo seja o satanismo. Choderlos de Laclos elegeu para protagonista das suas “Ligações Perigosas” (1782), uma dama de têmpera demoníaca, a Marquesa de Marteuil. Também o Julian Sorel de “O Vermelho e o Negro” (1830), de Stendhal, tem reflexos diabólicos no seu sinistro maquiavelismo de ambicioso sem escrúpulos. Em Baudelaire, o satânico se destaca nas “Flores do Mal” (1857) e em cruéis apólogos de “Pequenos Poemas em Prosa” (1869).
O primeiro escritor que enunciou a teoria da superioridade do Mal e a beleza da crueldade foi o Marquês de Sade. Talvez a verdadeira substância do sadismo seja o satanismo. Choderlos de Laclos elegeu para protagonista das suas “Ligações Perigosas” (1782), uma dama de têmpera demoníaca, a Marquesa de Marteuil. Também o Julian Sorel de “O Vermelho e o Negro” (1830), de Stendhal, tem reflexos diabólicos no seu sinistro maquiavelismo de ambicioso sem escrúpulos. Em Baudelaire, o satânico se destaca nas “Flores do Mal” (1857) e em cruéis apólogos de “Pequenos Poemas em Prosa” (1869).
Por meio de escritores românticos,
o imaginário literário quebrou o monopólio teológico da explicação demonológica
para lançá-lo ao mundo onírico do fantástico, do grotesco e do maravilhoso. O
mal reaparece na criação de E. T. A. Hoffmann; no romance gótico “Melmoth, o
Errabundo” (1820), de Charles Maturin; nos “Cantos de Maldoror” (1869), do
poeta Conde de Lautréamont; nos “Contos Cruéis” (1883), de Villiers de L`Isle-Adam;
e no burlesco “Ubu Rei” (1896), de Alfred Jarry. No último poema de Arthur Rimbaud,
“Uma Estação no Inferno” (1873), ele dialoga sem temor com o Rei do Inferno. Na
trilha temática, “O Diabo e Tom Walker” (1824), conto de Washington Irving se
inspirou parcialmente no “Fausto”; e “O Diabo e Daniel Webster” (1936), de
Stephen Vincent Benét, fala de um fazendeiro azarado que vende sua alma ao
Diabo para tornar-se próspero. No devido tempo, a dívida é cobrada. Um eminente
advogado é chamado para defendê-lo, e por meio de uma habilidosa série de
argumentos, vence a causa contra o Diabo e seu cliente é salvo da perdição.
O italiano Giovanni Papini publicou “O Diabo”
em 1953. Inteligente e inusitado, expõe teorias e concepções bastante originais
sobre Lúcifer, investigando acerca da sua origem e natureza, da rebelião e seus
motivos, especula o “sofrimento” de Deus pela queda de seu anjo dileto, as
relações perigosas entre Deus e o Diabo. Segundo Papini, “A criação da obra de
arte exige e implica uma certa dose de sensualidade e uma certa dose de
orgulho, e envolve por isso uma tal ou qual cumplicidade, nem sempre apercebida,
com o Demônio. Um artista que não tenha qualquer familiaridade com o
Adversário, seja embora para se esquivar dele e dominá-lo, não pode ser um
verdadeiro artista”. Fecha seu livro com uma peça – em três atos –, “O Diabo
Tentado” (1950).
O católico George Bernanos, que se celebrizou
com “Sob o Sol de Satã” (1926), tem sua obra marcada por incubos e laços diabólicos. Satã brilha no existencialismo de “O Diabo e o Bom Deus”
(1951), de Jean-Paul Sartre. Em “Meu Fausto” (1946), além de Mefistófeles, Paul
Valéry introduz três repugnantes demônios: Belial, Astaroth e Gungune. O alemão
Thomas Mann, autor de “Doutor Fausto” (1947), causou polêmica ao dizer: “Que
campo do humano, mesmo supondo que se trate do mais puro, do mais
dignificantemente generoso, ficará totalmente inacessível ao influxo de forças
infernais? Sim, cumpre até acrescentar: qual deles não necessitará nunca do
fecundador contato com elas?”. Mais recentemente, o Arrenegado foi best-seller em “O Bebê de Rosemary”
(1967), de Ira Levin.
Na Literatura Portuguesa, Eça de Queirós
começa o conto “O Senhor Diabo” (1877) dizendo: “O Diabo é a figura mais
dramática da História da Alma”. Ele acredita que o Cão tem nostalgia do céu. Fernando
Pessoa escreveu em inglês o enigmático “A Hora do Diabo” (1910), dizendo: “Mas
essas chamas lançam, não luz, mas sim treva visível.”. José Saramago teve consagração
mundial com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1992). Na literatura brasileira,
o Cabrunco foi lembrado na peça teatral “Macário” (1852), de Álvares de
Azevedo; no Machado de Assis dos contos “A Igreja do Diabo” (1884) e “O Anjo
Rafael” (1869); Monteiro Lobato em “Bocatorta” (1921); na peça “O Auto da Compadecida” (1957), de Ariano Suassuna; no romance “As Pelejas de Ojuara” (1985), do
potiguar Nei Leandro de Castro; e principalmente em “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa, onde o demônio não tem corpo, não aparece, não fala.
E tanto se faz mais forte quanto o seu silêncio e a sua ausência são presenças
persistentes ao longo da narrativa. O escritor mineiro, por meio de Riobaldo,
nosso Fausto sertanejo, afirma que “Deus é definitivamente; o demo é o
contrário Dele”.
Nos contos folclóricos brasileiros, a presença do diabo é uma constante. Entre eles, “Toca
por Pauta”, recolhido por Luís da Câmara Cascudo. Abundantes ainda são os
exemplos em Literatura de Cordel, como “A Mulher que Enganou o Diabo” (1985),
de Manoel D'Almeida Filho, em que a esposa, mais astuta que o demônio, consegue
libertar o marido do pacto que este havia feito. Ser de muitas faces,
“O-Que-Nunca-Ri”, nas palavras de Riobaldo, tem acompanhado a humanidade desde
os primórdios, incorporando ao longo dos séculos a tradição católica, além das
crenças e divindades de outros povos.
Aquele cujo nome muitos preferem não
pronunciar foi lembrado por William Shakespeare em “Rei Lear”: “O Príncipe das
Trevas é um cavalheiro”. E, que os crentes em Deus não se enganem, ele precisa
ser um cavalheiro. Afinal, que méritos haveria se seu adversário, a essência do mal, fosse um
mero idiota com chifres e rabo? Sem alardes, Satã é reconhecido como criação literária e como um dos protagonistas da vida real. Nas últimas décadas, a evolução da sua figura mítica deparou-se
com a apropriação de suas características pela indústria do entretenimento. O
Diabo atual é uma sombra ofuscada daquela figura terrível e devotada do
imaginário popular de outros tempos. Desconfio que seja somente mais um
disfarce. Sem dúvidas, o Azucrim continua comprando almas e mandando/desmandando
no mundo.
FONTES
“Cartas do Diabo ao Seu Aprendiz” (1942)
de
C. S. Lewis
“O Diabo” (1953)
de Giovanni Papini
“Dicionário do Folclore Brasileiro” (1954)
de Luís da Câmara Cascudo
“Grande Sertão: Veredas” (1956)
de Guimarães Rosa
“O Diabo – As Percepções do Mal
de Guimarães Rosa
“O Diabo – As Percepções do Mal
da
Antiguidade ao Cristianismo Primitivo” (1991)
de Jeffrey Burton Russell
“Dicionário
de Símbolos” (1997)
de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant
“Lúcifer – O Diabo na Idade Média” (2003)
de Jeffrey Burton Russell
“Anjos Caídos” (2008)
de Harold Bloom
de Harold Bloom