O Sertão é o nervo e o osso do Nordeste
ARIANO
SUASSUNA
(1927 - 2914. João Pessoa / Paraíba)
Mais
um dia finda dando início a um espetáculo de cores no céu. De maneira dramática,
enxerga-se a beleza da terra sofrida. Ali está o Sertão reafirmando a cada dia,
a cada sol, a cada lua, seu valor. Ele continua seco, quente e
esperançoso. Sobrevive pela generosidade, dignidade e imaginação do seu povo. Continua sendo o eixo que norteia e reconduz o Brasil às suas
entranhas e à sua essência. Zonas de flora raquítica, fauna escassa, pouca
água. A única fartura é o sol ardente, devorando seus próprios filhos. O sol
está em todos os cantos. À noite, quando “morto o sol, a terra vai sonhar”,
assim bem dito por Ariano Suassuna, num dia de lua cheia e avermelhada, as
estrelas desenham no céu uma constelação de delírios. Terra
de Chicós, Quadernas e Joaõs Grilos. “Heróis infortunados, anônimos e altivos
de uma epopeia pobre; heróis que, em seu pauperismo descarnado, sofrem, lutam e
reagem, e que pelo simples fato de sobreviverem na dureza e na adversidade,
participam da epopeia brasileira que a nossa Arte deve perenizar”, dizia
Ariano. Dentro deste universo complexo e de incontável riqueza cultural, social
e geográfica, ergue-se arte e pensamento extensos e intensos. No imaginário
popular sertanejo, esta poderosa criatividade, brotando a identidade brasileira
através da arte, que está também nos causos fantásticos, nas rezas de
agradecimentos e clamor.
Os
vidrilhos e as lantejoulas dos sertanejos são valiosos, contem sonhos. Animal encantado, protegido por matas e sóis, sertões e montanhas das luas,
esta corajosa criação não vai além de seus domínios, e o
espírito de bonitos cantares fica à espera do toque de clarim dos homens de boa
vontade. Afinal, enfrenta a feiura e a cinzenta vida
injusta, abrindo as portas da grandeza para o seu sofrido povo – inclusive, destacando
a literatura de uma infinidade de escritores de excelência. Artistas afiados
como faca-de-ponta, música de viola ou de rebeca, xilogravuras retratando cajus
e mandacarus, folhetos cantando tramas de cangaceiros endemoniados. Metamorfose
e alegoria. Eles festejam quimeras. E a realidade trágica e esperançosa da
nação sertaneja. Entre
tanta gente de importância, recordo o cearense ROSEMBERG CARIRY (1953. Farias Brito / Ceará), que encontrou no Sertão sua inspiração e seu
rumo como poeta-cineasta. Estudioso do universo libertário e sanguinário
dos cangaceiros, de Jesuíno Brilhante a Lampião, assisti ao seu filme “Corisco e Dadá” (1996) pouco sabendo sobre sua equipe técnica. O longa é um susto de beleza.
Imediatamente procurei ver “Lua Cambará - nas Escadarias do Palácio” (2002), do
mesmo artista de olhar cuidadoso. São obras que mostram a luta
pela sobrevivência nos sertões do Nordeste, restituindo as raízes da cultura popular.
O indômito ROSEMBERG CARIRY desenvolve trabalho como poeta, tendo participação em movimentos artísticos e literários no Ceará. Publicou
quatro livros de poesia, “Despretencionismo” (1975), “Semeadouro” (1981), “S de
Seca SS” (1983) e “Inãron ou na Ponta da Língua Eu Trago Trezentos Mil
Desaforos” (1985); e um de contos, “A Lenda das Estrelinhas Magras” (1984). Sua
arte, entre o
erudito e o popular, é encantadora.
POEMAS de ROSEMBERG CARIRY
ESTRANGEIRO
Sou estrangeiro como o homem
Que, atravessando o espelho,
Encontrou-se no país das sombras
E na densa floresta se esqueceu
De que forma brilhava a sua luz.
Sou aquele que, ao voltar,
Entrou na própria casa
E descobriu que a casa não era sua;
Não mais conseguiu reconhecer
os livros, os discos, as fotografias
dos amigos e não mais falou o idioma
do novo mundo que inventou.
Sou estrangeiro, do outro lado da alma,
Perguntando: o que eu sou?
Sou Bosch e seus fantasmas?
Sou Goya em sua fase negra?
Sou Santo Antão e as tentações?
Sou Jó insistindo em crer num Deus
Que o sonha dentro de um sonho
Que um outro sonho inventou?
Ai, sou uma criança tuareg
Que no deserto está perdida
Quer falar mais está muda
E não entende os enigmas
da esfinge que grita:
Me devora ou te decifro.
Sou um estranho estrangeiro
Fora do lugar, fora da lei,
Tão fechado em seus segredos
Como os ideogramas Maias,
Como a linguagem das baleias
E os selos das catedrais.
Assim estrangeiro, nascido
de um sonho, vivo a sonhar
Com um país que me habita
E no qual estou exilado.
Por ser um país sonhado
É um país que não existe
A não ser como um deserto,
Onde o homem se procura
E, um dia, talvez possa,
No espelho do sagrado,
A sua alma encontrar.
1999
1999
A SEPARAÇÃO
As frágeis asas do amor estão partidas:
A floresta, o rio, o sol,
A janela, a ponte, a rua...
Tudo que foi forma, cor, perfume,
De repente, desencantou-se
Em silêncio e em matéria bruta.
Ai, é tão frágil a vida,
É tão fugaz o corpo
E tão pequeno o sonho
Para conter a dor profunda.
Os mistérios da morte
Já não revelam a vida
E qualquer toque na minha pele é dor:
As frágeis asas do amor estão partidas.
Na ausência da amada eu me habito
E os fantasmas dos desejos
Fazem estragos em minha alma.
Estou faminto, sem o pão da vida
Ofertado em comunhão;
Estou sedento, sem o vinho do encontro
Na embriagues dos olhos;
Estou sozinho no mundo,
Sem o lume da esperança
Para me guiar na noite escura.
Olho as estrelas no céu,
Penso-me pássaro, mas não posso voar:
as frágeis asas do amor estão partidas.
1999
1999
BIBLIOTECA de SELESTAT
As palavras... cada letra gravada
em fogo, na pele da memória.
As palavras... cada idéia marcada
em sangue, na pedra da história.
O segredo, pela escrita revelado,
abrindo-se flor-e-verbo sobre a página
vermelho-sangue da história.
O sagrado, pela escrita guardado,
abrindo-se flor-enigma sobre a árvore
na floresta da memória.
Quantos homens, antes de mim,
arderam no fogo-poesia
que se ilumina em palavras?
Quantos homens, depois de mim,
se iluminarão em poesia
dentro do fogo-palavras?
Quem, por acaso, sobre o túmulo
do poeta que se perdeu da memória,
depositará a flor-poesia
que, não gravada em palavras,
de ser livro se esqueceu
na floresta da história?
1998
1998