De pés descalços e copo na mão, CESÁRIA ÉVORA passou boa parte da vida cantando para marinheiros gringos de passagem pela Ilha de São
Vicente, em Cabo Verde. Em troca, moedas e noitadas divertidas. Cansando da difícil vida fácil, passou dez anos sem cantar, enquanto enfrentava o
alcoolismo. Voltou a fazê-lo profissionalmente, no final dos anos 1980,
convidada por amigos para gravar um disco e mais adiante apresentar-se no parisiense
New Morning Club. Os franceses se enamoraram dela, produzindo seus primeiros
trabalhos: “La Diva aux Pieds Nus” (1988), “Mar Azul” (1991), “Miss Perfumado” (1992)
etc.
Com voz de quem muito sofreu, ela conquistou meio mundo. Nasceu
em Cabo Verde,
arquipélago árido e vulcânico, ex-colônia portuguesa. Filha de cozinheira de
mão cheia e músico que tocava cavaquinho. Aos 61 anos, apresenta-se na Europa, seguindo
para o Japão, América do Sul e do Norte. Uma vitória respeitável para uma pobre
garota negra que durante muito tempo cantou em casas particulares, navios e
bares, ganhando quase nada. Seu mais recente álbum musical, “São Vicente di
Longe” (2001),tem arranjos do nosso
Jacques Morelenbaum. Caetano Veloso canta numa das faixas.
A diva de pés descalços superou os homens e o álcool, restando o canto, mas promete também deixar de cantar em breve:“estou velha e
cansada, quero estar tranqüila na minha terra”. Fumando SG, cigarro português,
num bar sevilhano, conta sua história.
Começou a cantar influenciada por seu
pai, um músico?
Quando
criança costumava ver meu pai cantar com meu tio, um compositor, mas nem me
passava pela cabeça que seria cantora. Meu pai não me incentivou para a
carreira musical. Meu avô também foi um grande músico. Mas quando resolvi
cantar todos eles já estavam mortos.
Como foi o seu início musical?
Tinha dezesseis anos e um amigo chamado Iduardo tocava seu violão. Não sei por
que cantei, mas cantei muito baixinho. Ele disse:
“Canta mais alto, Cize”. Cize é como os meus amigos me chamam. Eu cantei mais
alto e daí em diante passei a cantar nos bares e navios de guerra. Os
marinheiros gostavam da minha voz, me ofereciam bebidas e moedas. Passei muitos
anos assim, com os meus sentimentos diante de várias raças.
Com
o fim da colonização, os navios
desapareceram e os bares ficaram vazios.
Foi aí que deixou de cantar?
Eu
não queria saber de política, fiquei em casa dez anos.
Nada de cantoria. Em 1985 gravei um disco em Lisboa e três
anos depois me apresentei em
Paris. Então comecei a ganhar dinheiro com a música.
A
senhora foi descoberta pelos franceses?
O
meu êxito internacional teve início na França. Foram os franceses que primeiro
apreciaram a minha voz e me convidaram para gravar. Eu sou muito grata a eles. Fui
bem recebida pelos imigrantes do meu país que vivem na França e também pelos
próprios franceses. Com “Miss Perfumado”,meu quarto disco, a imprensa falou muito do meu trabalho. Desse
reconhecimento passei a ser convidada para viajar.
Muitos
não entendem o que diz, já que canta em crioulo, mas mesmo assim se comovem com
sua voz.
As
pessoas percebem o sentimento, a força da música. Eu não entendo o português
perfeitamente, mas gosto de muitas músicas brasileiras. Música é música em
qualquer lugar do mundo.
Disse
que gosta da música brasileira...
Os
brasileiros e os cabo-verdianos se completam musicalmente. Ambos colocam
sentimentos no trabalho musical. E usamos o mesmo tipo de instrumentos.
Como
foi sua colaboração com Morelenbaum em “São Vicente di Longe”?
Ele
fez a maior parte dos arranjos. Gosto muito desse disco, tem uma grande
contribuição internacional. Foi quase todo gravado em Cuba, e faço duetos com
Compay Segundo. É parecido com outros trabalhos meus.
Declarou
numa entrevista que pensa em se aposentar em breve. É verdade?
Estou velha e cansada, quero descansar na minha terra. Cabo Verde vive em paz e na seca. Como não temos diamantes nem outros recursos, somente vulcões, nos deixam viver calmamente.
NOTA
CESÁRIA ÉVORA morreu em 2011, aos 70 anos. Ainda não havia se aposentado.
prefiro acreditar na maior liberdade possível do Ser.
MORVANem entrevista ao Jornal
de Hoje (RN)
17 de maio de 2012
Fotos:
MORVAN
FRANÇA
Magnífico
fotógrafo, coração do bem, meu Amor. O que produziu e nos legou
é de uma delicadeza e densidade raras vezes vistas no Brasil em tal gênero artístico. Nasceu
em 22 de maio de 1987, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Geminiano irreverente, criativo e
teimoso. MORVAN FRANÇA
viveu um ano em Dublim, na Irlanda, outros tantos em São João del-Rei (MG) e Natal (RN). Imagens de sua autoria publicadas em blogues, revistas e jornais potiguares.
Diretor fotográfico na revista “Ícone – Turismo e Cultura no Nordeste”. Sua “A
Face Oculta” recebeu Troféu Cultura de Melhor Exposição de 2013/RN.Morreu no dia 07 de julho de 2016,
uma quinta-feira, em Galinhos, Rio Grande do Norte. Aos 29 anos. Partiu para nunca
mais voltar. Parou de se questionar, e, certamente, foi bem recebido pela
energia acolhedora do Universo. Nós vivemos juntos cinco anos. Ele
me fez rir, sonhar, preencheu-me com sua presença bonita e vasta sensibilidade.“A
arte tem o papel de nos elevar um pouquinho, por curto espaço de tempo, do
nosso próprio egoísmo”, disse-me na primeira conversa.
eu por morvan
Ao
conhecê-lo, estava há uma semana em Natal, vindo de Minas estudar biologia na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Sem relações na cidade. Apenas um
príncipe solitário. Um príncipe que citava o mestre Rosa: “Eu quase que nada
não sei. Mas desconfio de muita coisa.”. O meu coração disparou. E felizmente,
o dele também. É difícil não nos sentirmos incendiados num romance sem vilania
e ao mesmo tempo tranquilo, sossegado, onde coube a arte e o seu reverso, a
emoção, sem se estorvarem mutuamente. “A bolsa tem prazo de validade de seis meses,
logo voltarei”, avisou-me após o beijo que selou o encantamento. Louco de amor,
percebi estar diante do Rimbaud sonhado desde sempre. Iniciamos ali um eletrizante
encontro de sentimentos emblemáticos. Pura fatalidade. ENCONTRO MARCADO pelo
destino. Nunca
mais voltou de vez a sua estimada terra. E não gostava nem um tiquinho de Natal
ou da vivência universitária local, desiludido com a mediocridade de professores e colegas.
Saudoso de São João del-Rei, queixava-se. Ranzinza, dizia que no Brasil as
diversões idiotas tomaram o lugar da cultura. Com educação e firmeza, enfatizava o sublime vazio generalizado.
O
mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
GUIMARÃES ROSA
“Grande Sertão: Veredas”
morvan e eu em galinhos, 2015
Nos primeiros dias, deixou a república de estudantes, veio morar comigo,
inicialmente no bairro do Satélite. “Não namoro sério. Minhas histórias são sem
compromisso”, afirmou, desconfiado, continuando: “Não pretendo me casar”. Não
foi o que aconteceu. Durante anos grudamos. Contou-me seu passado familiar,
estudantil e amoroso. Recordações da infância na fazenda do tio. Revelei-me
através da arte. Sobre a vida real, 100% não dava, MORVAN ciumava brabo! Nossas
conversas resgatavam, seguramente, a excelência da vida, cujos assuntos transgrediam
a forma do debate comum, vislumbrando não só o relato dos acontecimentos
cotidianos, bem como da visão da literatura, das artes, passando pela dor do existir, pelas dificuldades
do escritor, incursões pelo cinema e teatro, e mesmo sobre as relações homoafetivas.
Contei
dos dias de aventureiro. Uma narrativa longa, prolixa, cheia de pormenores.
Falei de Tanger, de passeios a Baello Claudia. E das tardes no bosque La Selva, deitado na relva, dos banhos de mar. Histórias em que eu expurgara cuidadosamente o erotismo, evitando conflitos. Nas conversas
sem fim, varando madrugadas, lembrei que há cidades belas e cruéis, como Rio de
Janeiro. Ou elegantes e céticas, como Berlim. Ou densas e obsessivas, como São
Paulo. Recordei o ano passado em Londres. Céu cinzento e gente
indiferente. Não havia sentimentalismos, nem excessos
de paixão, nem verdades com maiúsculas.
Trocávamos
identificações artísticas. Um sugerindo ao outro fascínios
cinematográficos, literários, musicais, fotográficos. Ele não suportava shows. Eu
tinha visto todos os shows do mundo. Entretanto, muitas vezes, repentinamente, ele
fazia espetáculo para mim, em casa. Cantava, dançava, interpretava poemas. Eu
estava no paraíso das ilusões. Guardamos
os segredos ao lado de tudo o que não dizemos. Nesse grande sótão escuro há de
tudo, há aquilo que não dizemos porque temos medo, porque temos vergonha,
porque não somos capazes; há aquilo que não dizemos porque desconhecemos,
ignoramos mesmo, apesar de estar lá, em nós. Os segredos são assim. Eles estão
lá, podemos visitá-los, assistir a eles, sabemos as palavras exatas para
dizê-los e, muitas vezes, temos tanta vontade de contá-los. Mas escolhemos não
o fazer. Passávamos horas jogando Quest, vendo documentários, cozinhando. Ele cozinhava bem. Principalmente massas. Utilizava
receitas muito simples, mas o resultado era uma explosão de sabores. O seu
espaguete à carbonara era maravilhoso. Nos finais de semana de boa disposição,
arranjava os pequenos defeitos da casa, de descarga quebrada a pia entupida,
numa extraordinária habilidade manual.
Todas
essas Presenças em Ti: Estrelas, insetos, as árvores, a água, o fogo, o sangue, respirações, os Olhos, tudo isso vivendo, / como se
vivesse / Flor das mais estranhas. / E tu estás em todas, / e Todas / estão em
ti.
VICENTE FRANZ CECIM
“Canção da Criança Mais Alta”
Aprendia
violão dedilhando Bossa Nova, outras vezes utilizava a cozinha para treinar ágeis
passos de capoeira. Ele não sabia, mas a beleza desabrochava em cada uma de suas
provocações naturais. Eu alimentava suas excelentes vontades artísticas.
Pena que quase sempre ele perdia o interesse no meio do caminho. Incentivei o fotógrafo ao perceber o seu talento nato em retratos meus, e a satisfação que fluía dele ao fotografar (odiava ser fotografado!). Esboçamos um projeto para esse sonho vingar, desde a aquisição da boa máquina
fotográfica à exposição do lançamento oficial, “A Face Oculta”. Apresentei a MORVAN fotógrafos e pensadores, de Susan Sontag a Gilles Deleuze, de Pierre Verger a Miguel Rio Branco, de Henri Decae a Sven Nykvist. Ele tinha
dificuldade em absorver a rotina, prazos, horários, estabilidade. Acordava
tarde, estudava pouco. Ouvia com prazer Nina Simone, Beck, Uakti, Ednardo,
Mozart, Jim Morrison, Janis, Chet Baker, Amy, Zeca Baleiro, Cássia Eller, Miles.
Beijava-me inesperadamente, jogava-me no chão, rolava os nossos corpos como se
fosse menino.
luminária desenhada e executada por morvan
Praticamos
leituras domésticas de peças teatrais. “Romeu e Julieta”, “Branca Dias”, “Bodas
de Sangue”. Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Oscar Wilde, os meus textos. Ele
interpretava e dirigia, interrompendo a leitura para me criticar. Furioso, dizia
que eu não me concentrava, não mergulhava na alma da personagem. Era verdade. Às
vezes ele jogava o texto na parede, outras recomeçava do primeiro ato. De
expressivo talento dramático, poderia ter sido um ator de renome. Numa
noite, embriagados, ele se emocionou com a minha fala sobre Ítaca. Não fosse
a Ítaca de Homero, não fosse a vida. Um outro poeta grego, Konstantinos Kaváfis, abordaria este
caminho de volta, criando uma bela metáfora da jornada em busca de
nossos sonhos. Enquanto na “Odisséia” o drama se concentra nas
dificuldades de chegar, e no sofrimento da amada, Kaváfis pede o oposto a Ulisses: que aproveite o caminho, e viva tudo o
que precisar viver.
Quando
você partir, em direção a Ítaca,
que
sua jornada seja longa
repleta
de aventuras, plena de conhecimento.
Não
tema Laestrigones e Cíclopes
nem o
furioso Poseidon;
você
não irá encontrá-los durante o caminho,
se
você não carregá-los em sua alma,
se
sua alma não os colocar diante de seus passos.
Espero
que sua estrada seja longa.
Que
sejam muitas as manhãs de verão,
e que
o prazer de ver os primeiros portos
traga
uma alegria nunca vista.
Procura
visitar os empórios da Fenícia
e
recolha o que há de melhor.
Vá as
cidades do Egito,
e
aprenda com um povo que tem tanto a ensinar.
Não
perca Ítaca de vista,
pois
chegar lá é o seu destino.
Mas
não apresse os seus passos;
é
melhor que a jornada demore muitos anos
e seu
barco só ancore na ilha
quando
você já estiver enriquecido
com o
que conheceu no caminho.
Não
espere que Ítaca lhe dê mais riquezas.
Ítaca
já lhe deu uma bela viagem;
sem
Ítaca, você jamais teria partido.
Ela
já lhe deu tudo, e nada mais pode lhe dar.
Se,
no final, você achar que Ítaca é pobre,
não
pense que ela lhe enganou.
Porque
você tornou-se um sábio, e viveu uma vida intensa,
e
este é o significado de Ítaca.
eu, morvan, ana cláudia e juninho
Recebemos
visitas de seus pais amorosos, do irmão; e da melhor amiga, uma
belga, Véronique. Ele lembrava de ex-colegas mineiros. Não levava a sério nossos conhecidos. “Dissimulados, desejam nossa
separação”, criticava. Jantando com amigas, meio alto de vinho, contei detalhes pitorescos de um antigo
relacionamento com um norte-americano. Ele permaneceu em silêncio, sinistro. No
dia seguinte entregou-me uma folha seca. Nela, escrito em nanquim, fragmentos
de Clarice Lispector em “Água Viva”, um dos seus livros favoritos.Guardo essa relíquia:
Agora
sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da
solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima e silenciosa. Guardo
teu nome em segredo. Preciso de segredos para viver.
Renasci
com MORVAN. Deixei o mundo ordinário. Nada além dele me parecia cintilante. Seria capaz
de ir a lua juntos. Desejava passar os últimos anos de vida nos seus braços.
Conheci-o profundamente, talvez mais do que ninguém. Enxergava a melancolia, a dor e a
fragilidade mais secretas. Cuidei
dele com sincera ternura. Arquitetei felicidades, inclusive visitar lugares ermos formosos por natureza. A gente amava esses recantos silenciosos, e nos
metamorfoseávamos em peixes, pássaros, insetos e árvores que tomam vinho tinto, celebram a natureza e
copulam em qualquer lugar sem ninguém à vista.
Eu por Morvan
Ele,
eu, a máquina fotográfica e a beleza do mundo natural. Quase sempre de
motocicleta, desbravamos o Rio Grande do Norte e a Paraíba, conhecemos vistas preciosas em
boa parte do Nordeste, de cavernas ao Pico do Cabugi, de rios a matas. Sonhamos em
juntos investigar o Brasil profundo. Dezenas
de viagens minuciosas. Salvador, Lagoa Encantada, Lençóis, Chapada Diamantina,
Ilhéus, Maxaranguape, Boca do Rio, Galinhos, Gargalheira, Pedra da Boca,
Martins, Gostoso, Pipa, João Pessoa, Búzios, Extremoz, Una, Cunhaú, e muitas muitas
outras. Mil e uma aventuras lúdicas, sem traição, nem mesmo tentação.
O que
não podia suportar era aquele estado vulgar das coisas, aquela sufocante apatia
que lhes dava um ar de seres que se consomem num lento aniquilamento. Por
momentos, parecia esquecer-se de tudo. Mas eis que de repente, a um golpe ou a
um ruído, a angústia voltava a obsedar-lhe a alma. Ele não tinha sentidos senão
para sofrer e desejar inutilmente. Cansado das suas lutas estéreis, recostara a
cabeça e, cerrando os olhos, procurava sufocar o tumultuoso transbordamento do
coração.
LÚCIO CARDOSO
eu e morvan em 2010
Bastava
andar por aí. Não ter pressa. Cada lugar era um filão. Estar sentado num bar
humilde, bebendo água de coco, e depois seguir o fio da meada que podia começar
numa palavra, num encontro, no amigo do amigo de uma pessoa com quem acabamos de nos encontrar, e o lugar mais insípido, mais insignificante, transformava-se
num espelho do mundo, numa janela aberta para a vida, num teatro da humanidade
diante do qual poderíamos deter-nos sem necessidade de ir a mais lugar nenhum.
Bastava abrir os olhos. Em
2011, meu aniversário, 13 de junho, deu-me uma fotografia emoldurada.
Impressionante composição de búzios, líquens, folhas mortas, raízes, sementes,
água-viva. Entre a imagem e o vidro de proteção, grãos de areia e conchas do
mar, soltos. Belíssimo. O meu romantismo
típico se assanhou de êxtase, o coração disparou. No fundo do quadro, ele escreveu em
grafite:
Que
deste silente objeto
Surjam
leves asas
E que
estas voem em ti
A
poesia que quis
Mas
não tive.
Com
carinho.
Morvan
Em
parceria, lançamos livros, exposições e a revista “Ícone - Turismo e Cultura no Nordeste”. “A Face Oculta” (dedicada pra mim), “Pequenas Histórias
do Delírio Peculiar Humano” (dedicado a ele), “Orbitarium”, “O Livro das
Revelações”. Arte planejada, discutida, consagrada em pleno sexo. Recitais
poéticos-musicais e festas temáticas. Focado na experimentação, entre 2010 e
2014 o artista registrou em suas lentes imagens intimistas, destacando a majestade
e a fragilidade do homem e da natureza.
“orbitarium”, instalação de morvan-nahud
Lutamos
por um projeto que não se realizou, a exposição fotográfica “Solipsismos”, representada
através de 35 fotografias, instalações e vídeo. De constituição afetiva, objetivava despertar uma
reflexão crítica acerca da sua temporada potiguar. Harmônico e impactante. Na
instalação “Orbitorium”, 9 fotografias suspensas equilibravam meus poemas,
raízes, folhas secas, pedras. MORVAN anotava
versos em pedaços de papel, colocando-os sigilosamente em objetos que eu
costumava utilizar. Ao calçar um sapato, encontrei um mimo do poeta mato-grossense Manoel de Barros:
“As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas querem ser
olhadas de azul”. Eu me desmanchei. Ele sorriu.
Ao perceber que ele transformava realidades vivas em
nulidades moribundas, prudente, dispensava uma hora ou duas, vez em quando, para
analisá-lo. Coletei num baú imaginário seus medos e traumas. Guardo dezenas de fotos. Guardo páginas de filosofia clandestina. Conheço-o pelo avesso, observador além do visível, estudei o amado microscopicamente. Honrado em ter sido seu modelo oficial em centenas de fotografias. Nunca recusei seus convites. Completamente disponível a
participar da inquietação fotográfica de MORVAN. Debaixo d`água, desnudo, mafioso, série noir, homenagem a poeta Sylvia
Plath, mar, rede, chuva, sol escaldante, madrugada, árabe, aurora, árvores, morto, mascarado, intelectual, clássico, cinematográfico. Autor dos meus melhores retratos. Também seu assistente, eu o
ajudava nos cortes e seleção de imagens.
Numa
noite, colou páginas de um velho livro no meu corpo inteiro. A face de fora, o resto colado.
A seguir, horas de fotos. Gentilmente, sem que eu pedisse, fotografou minhas
manifestações artísticas, de lançamentos de livros ao Título de Cidadão
Natalense. Em 2013 ganhamos prêmios, Troféu Cultura RN de Melhor Livro do Ano e
Melhor Exposição do Ano. Ficamos bastante felizes. Passamos semanas comemorando a dois. Possivelmente foi o clímax da nossa cumplicidade. Circulamos
por várias cidades nordestinas, de Aracaju a Fortaleza. Nossa arte generosamente
divulgada em jornais e blogs, programas de tevê, inclusive em Portugal. Sobre o seu trabalho escrevi “A Alquimia Fotográfica de Morvan”, uma das postagens mais
populares deste blog.Perdemos um grande artista! Um olhar arrebatador! Um mestre
da luz! Ele
marcou-me com amor e arte. Dois meses realizando uma serpente de
tampinhas no jardim da nossa casa. Pintou a parede da sala de delicados
arabescos cor de abóbora. Colou pedras coloridas no banheiro etc.
eu, josé inácio vieira de melo e morvan frança
A paisagem
era clariciana. Os dois amantes lendo, relendo, matutando. Segundo a moça exata no seu mundo fragmentado: “Foi o apesar de que me deu uma
angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de
que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E
desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o
corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal
que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.” Mundo impregnado com as impressões digitais de algum deus
desaparecido. Mundo excêntrico, parecido ao imaginário alucinado de Hieronymus Bosch. Isso vislumbrei
num sonho. Tomei essa imagem de empréstimo tão logo acordei e senti certo alento existencialista vindo do lugar abençoado onde a arte se
recolhia. Do naipe de Rilke, Beckett ou Camus.
MORVAN gostava de me dar presentes. Ganhei uma exótica luminária, versos,
raízes, flores secas, pulseiras, desenhos, pedras semipreciosas, fotografias, livros, filmes, discos
etc. Levavam sua assinatura, sua criatividade, seu jeito excêntrico de ser. E afeição sincera, suave, discreta. Plantou um maracujazeiro no jardim. Ele cresceu, imenso, dando frutos
e flores. Subimos em um aerogerador no Parque Eólico Rei dos Ventos, em Galinhos, onde
ele morreria meses mais adiante. 90 metros de altura, num ritual ao sol e ao mar. Uma arriscada peripécia. Essas
máquinas, dependentes do vento, transformam energia eólica
em elétrica.
morvan recitando poemas meus
Não
media palavras para falar de sentimentos e visões, entregando ao
amado, de forma aberta, meu pensamento e leitura do mundo. Entre nós, horas de sexo todos os
dias. Anos a fio. Às vezes pela manhã e à noite. No chuveiro ou no quintal, na
chuva, no sofá, no chão. Não me recordo de brigas ou discussões. Raros desentendimentos.
Havia respeito, querer bem. Ele sentia inesperadas dores de estômago ou de cabeça, feria-se, queimava-se. Eu o tratava com chás, massagens, boa
alimentação.
Neste capricho apaixonado, descobri sua incapacidade para
distinguir claramente entre a aparência e a substância, falta de aptidão
para o trabalho cotidiano, egoísmo, atitudes infantis e torpor mental (descartando o bom senso). Numa
montanha alta, em cima árvores, rochas, ventos e nuvens
cheias de imagens, eu e ele, e sobre a planície as nuvens
dissolviam-se e não se via mais do que um mar de céu e de terra desolada que se
estreitavam num abraço apaixonado. O
infinito dentro de mim. Ele colaborou profundamente no despertar do meu mais íntimo. Viveu comigo muito tempo. Vivemos no infinito misterioso habitado por Deus… Esse sem fim é o lugar onde tiro força e
esperança.
Só se
pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a
gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na
loucura.
GUIMARÃES ROSA
“Grande Sertão: Veredas”
Nunca
deixamos de nos amar. Numa de suas mensagens, bastante recente, revelou-se: “Escrevo
do fim do mundo. É preciso que o saiba. Será que a vida na terra poderia
prosseguir sem o nosso amor? Ou será preciso que tudo trema sempre, sempre?”.
Profundamente emocionado, não respondi. Desconheço a resposta. A vida prosaica insiste que é a mais forte; aliás, a vida
prosaica é o norte nessa bússola que nos guia pelos sete mares.
Eu, com minhas velas abertas para ventos que não sei bem de onde vem e para
onde me levam; ele, com seus remos afundados e seu sorriso irônico, à espera do
enigma que, talvez, possa ser um caminho para esse lugar nenhum onde seu deus
descansa depois da criação. Por trás de cada palavra esconde-se a alma, o hálito de ágeis movimentos e
o arremate arredio dos olhos que acompanham as linhas na telinha. O mundo se torna
um sonho nesses devaneios. Sonho que não sonho, mas que me leva adiante, a um
mar sem ondas onde um dia erramos o lugar de nossa fábula-encontro. O que era
uma bússola a guiar sonhos, hoje é apenas uma delicada concha talismã, e olhos
incômodos em enleios poéticos nesse mar azulado de saudade.
euzner telles, roberta reis, eu e morvan frança em ilhéus, bahia
Ele morreu
em Galinhos, noite (assim acredito, não sei ao certo) de 07 de julho de 2016. Por livre e espontânea decisão maluca. O
sepultamento do corpo aconteceu no domingo, 10, no Cemitério Público Nova
Esperança, Conjunto Pirangi de Dentro, em Parnamirim (RN), às 10h00 da manhã. Visitarei sua última moradia em vida. Quero conhecer a casa em que
morreu, mergulhar no mar, caminhar descalço na praia em que ele caminhou. À
noite, farei fogueira e interpretarei poemas. Será o ritual de
despedida, depois da dor que quase mata.
Como
dizer a ele que já não havia tempo para nossas
coisas densas e preciosas? Eu podia ter dito que o (a)mar ainda é grande, e que talvez eu
não conseguisse me livrar da falta de ventos e, sem eles, jamais atravessaria mares simbólicos. E cada palavra se fazia
mais abstrata, e nenhum sopro lírico parecia dar conta das frases, e todos os
olhos carregavam olhares suplicantes. Por que insisti em não lhe dizer que
ainda o amava? Não penso mais em respostas e, tão logo termine de escrever o que logo
será público, volto a abençoar a velha solidão, uma velha saudade, o velho
mundo, o único em que ainda posso traçar, em palpitações ternas, sem mágoas,
perdoando, um destino de floresta e palavras em flor. Foi
lindo conhecê-lo,MORVAN
FRANÇA. Gratidão.Descanse
em paz, amado, vá ser estrela no firmamento. Valeu 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015. Obrigado por tudo e desculpa por tudo: das bondades às saudades. Não é
novidade pra ninguém que toda escolha é, de alguma maneira, uma troca. É
preciso deixar alguma coisa para poder conquistar outra.
Seu
“eu é um outro” ainda brilha aqui e acolá em mim. De nada valem as letras que
tentam ignorar fantasmas. Talvez aqui espere pela próxima lufada de vento,
talvez aqui sejam despertas novas palavras com as quais inventar um novo
mundo. Tudo
isso são conjecturas, como as sensações das palavras-passarinhos de Clarice: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com
achados e perdidos”. Só resta dizer... Eu te amo, MORVAN. Sinto pela partida inesperada e brutal. E
fim.Do seu remetente
clariciado. Antonio.
morvan em foto minha (ele amava essa foto!)
Se MORVAN FOSSE...
Um LIVRO
“O Lobo da Estepe”
(Der Steppenwolf, 1927)
de Hermann Hesse
Um FILME
“Na Natureza Selvagem”
(Into the Wild, 2007)
de Sean Penn
ou
“Lavoura Arcaica”
(2001)
de Luiz Fernando Carvalho
Um CINEASTA
Andrei Tarkovski
Um ATOR
João Miguel
Uma CANÇÃO
“Aquarius”, do musical “Hair” (1979)
Um CANTOR
Ednardo
Uma CANTORA
Nina Simone
Uma BANDA
Morphine
Uma CIDADE
São João del-Rei (MG)
Um PAÍS
Irlanda
Um ESCRITOR
Clarice Lispector
Um POETA
Fernando Pessoa
Um PERSONAGEM
Hamlet
Um PINTOR
Francis Bacon
Um ARTISTA
AndyGoldsworthy
Uma COR
Cinza
morvan na chapada diamantina (foto minha)
Um FOTÓGRAFO
Pierre Verger
Um PÁSSARO
Colibri
Um INSETO
Libélula
Um ANIMAL
Dinossauro herbívoro
Uma FLOR
Flor de Maracujá
Uma ÁRVORE
Gameleira
POETIZANDO MORVAN sob o OLHAR
de HENRI MICHAUX
01
O coração é algodão e silêncio, disse-me Henri Michaux.
Silêncio que tudo imobiliza.
Silêncio de estrelas.
02
Posso dizer que o êxtase da viagem
ou da beleza ou da arte em cada esquina
me faz bem e os amo Amo as coisas
Amo a história o mistério e o olhar inspirado
03
Que faço eu aqui?
Chamo.
Chamo.
Chamo.
Não sei quem chamo.
Quem chamo não sabe.
Chamo alguém longe,
Alguém perdido longe,
Alguém de outro mundo.
O chamamento espanta-me.
Chamo ainda que seja tarde.
eu e morvan frança em 2014
04
Amor na cidade golpeada pela história
amor encantamento
na ponte de pedra
no sino de bronze, no trem, no gótico
nos personagens que cantam em praças
no rio gordo de mistérios
amor de fio de seda
amor metafísico
amor nostálgico que faz sorrir
amor de larva eletrizada vindo morder à superfície
amor no charme discreto de Lampião
amor em falta pronto para avalanches
05
Aos filmes, aos filmes, aos filmes,
Semelhante à ilusão,
Semelhante ao sonho,
À lágrima vertida, à lua nova
À uma tarde de chuva
À invenções de Oshima e Truffaut
Ao cinema, em qualquer língua,
Sempre.
06
A terra fria é das carícias
do famoso e do ingrato
dos piratas e amantes
com dor ou dinheiro
tudo passa
tantos mortos levam consigo
livro que nunca escreveram
um amor sufocado
e num recanto de pedra
a solidão eterna
no momento em que morvan soube que o meu livro era dedicado a ele
07
Preciso de arte, e beleza, é a minha saúde.
Preciso de uma cidade inventada,
com bosques de Sintra, luz de Barcelona,
intensidade de Paris e o céu de Natal.
Preciso dos passos ao vento, de um rio fogoso.
Preciso do consumo do silêncio.
A ignorância é sempre dura.
A violência é sempre dura.
A solidão é sempre dura.
Este é o reverso da medalha.
E não há nada a fazer.
08
Aqueles que são o farol-poesia
em torno
desova, isso,
isso desliza, vai, funde
refaz-se
a esperança
09
Rebenta pelos poros.
Em sensações, lâminas, cristal,
em jatos de saudade.
Cheio de floresta.
Cheio de ondulações.
Cheio de borboletas.
Cheio de chuva.
Acalentando o próprio coração.
10
Como se no meio da cidade
Na velocidade
Na saudade
Na maldade à toa
Nessa claridade, tanta coisa boa se desmancha
feito picolé ao sol
E feito picolé ao sol eu quero estar agora
Pra esquecer do mal que tá lá fora
Me esperando pra cobrar a taxa
11
Esta é a vida, a vida inspirada na beleza.
Se ela desaparece, procuro-me.
12
Aquele que meu coração ama
não encontra em lado algum
o incenso que de meus olhos rompe
ensinando a enxergar o indócil bem-querer
sabe que para todas as distâncias
há aves enlouquecendo de nostalgia
e a emoção entre os seus dedos ausentes
é a espada que os reis ungiam
enfrentando a ameaça das noites
em que tudo acorda
13
Vai sem mim, vida minha, vai.
Caminha invisível,
Até o outro lado da chuva.
E eu danço à beleza.
E assim digo adeus.
Nunca o persegui.
Não vejo bem o que existe em dádivas.
O pouco que desejo, nunca me traz.
Por causa desta falta aspirei a tanto.
A tantas coisas, ao infinito quase.
Por causa deste pouco que falta,
do pouco que nunca foi capaz de trazer.
14
Há, quase sempre,
uma voz a murmurar
por detrás
de outra voz
Há a realidade prateada
um berro dentro de mim
saudade medonha
um viver-desvivendo
Lá fora, constelações íntimas,
a luz solar, o sem nome
a palavra-passarinho
fagulhas no texto
Esta tarde reparei
o tempo no corpo
esperando e recordando
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morvan em foto minha
LUCIANA OLIVEIRA entrevista MORVAN FRANÇA e EU no PROGRAMA VIRTUALL
ÚLTIMA FOTOGRAFIA de MORVAN Galinhos (RN), junho de 2016