Ilustrações: LUÍS CLÁUDIO MORGILLI
e RICARDO ARDENTE
Não era uma
medalha, nem um escapulário, o que batia ali contra meu peito – era apenas a
chave do quarto onde Deus me havia tão cruelmente ferido. Decerto o problema
supremo é este, Deus e o homem, mas, por mais que faça, não posso imaginar Deus
afastado do amor, de qualquer amor que seja, mesmo o mais pecaminoso, porque
não posso imaginar o homem sem o amor, e nem o homem sem Deus.
Autor de um dos romances mais cultuados da literatura brasileira,
“Crônica da Casa Assassinada” (1959), o mineiro LÚCIO CARDOSO (1912 - 1968), nascido em Curvelo, inaugurou na literatura brasileira um mergulho no intimismo,
enfatizando os dramas, as dúvidas e os questionamentos existenciais. Sua escrita teria imenso impacto sobre a obra de Clarice Lispector, de quem foi
amigo e mentor. Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio -
brilhante e sedutor -, 28. Ela se apaixonou, mas era um amor impossível: o
escritor era um homossexual assumido. Esse amor não correspondido a empurrou
para a literatura. O amigo sugeriu o título de seu primeiro romance, “Perto do
Coração Selvagem” (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações
dispersas, que ela tomava às tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o
seu método.
Nos anos 1940, ele trabalhou incessantemente escrevendo peças de
teatro, fazendo traduções e colaborando com crônicas policiais nos jornais. Escreveu
diversos romances e roteiros para cinema, alguns filmados, como o clássico do
Cinema Novo “Porto das Caixas” (1962), de Paulo César Saraceni. LÚCIO CARDOSO foi,
no Brasil, uma das primeiras figuras conhecidas a assumir sua homossexualidade.
Deixou em seu “Diário” (1961), escrito entre os anos de 1949 a 1951, relato
bastante contundente sobre sua sexualidade, assim como as dúvidas e culpas
geradas por sua formação católica.
Era extremamente carismático e afetivo, e a gente percebe isso no
modo como a família sempre se referiu a ele — diz o também escritor Rafael
Cardoso, seu sobrinho. — Ultimamente a mídia tem mostrado grande interesse pela
sexualidade dele. É um assunto sobre o qual pouco se falava em família. Havia
preconceito, claro, como em toda a sociedade brasileira, aliás. Mas de modo
algum ele era rejeitado pela família. Ao contrário, era muito querido.
(Depoimento publicado no jornal “O Globo”).
Em 1962, LÚCIO CARDOSO teve um derrame cerebral, que paralisou o
lado direito do seu corpo, impedindo-o de escrever. Passou então a se dedicar à
pintura e chegou a realizar exposições em vida. Morreu aos 56 anos vitimado por
um segundo AVC. Seu talento foi reconhecido pela Academia Brasileira de Letras,
que lhe conferiu, em 1966, o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.
FEBRE, ANGÚSTIA e ULTRAJE
HÉLIO PÓLVORA
(1928 - 2015)
Publicado no jornal A Tarde / Cultural (BA)
É de 1934, publicado por Schmidt editor, o romance de estreia de LÚCIO
CARDOSO, “Maleita”. Nascido em Curvelo (MG), 1912, ele chegou ao Rio de Janeiro
para estudos, depois de passar por Belo Horizonte, e ali se fixou. Fez amizades
com intelectuais de nomeada, incluindo o poeta Augusto Frederico Schmidt, que
tinha uma editora e gostava de descobrir escritores novos. Foi assim com Jorge
Amado, de “O País do Carnaval”, 1931, a quem dedica carta-prefácio altamente
elogiosa. Ambos, Cardoso e Amado, foram precedidos literariamente por Rachel de
Queiroz, a menina de 19 anos que havia escrito “O Quinze”, e José Lins do Rego,
em 1932, com “Menino de Engenho”.
No caso especial de LÚCIO CARDOSO, um conterrâneo seu, Cornélio
Penna, também estrearia àquela altura com “Fronteira”, 1935. O romance “Caetés”,
de Graciliano Ramos, data de 1933. Nascia então o chamado romance de 1930, ou
romance da terra, ou romance do Nordeste, que tem em Rachel e José Américo de
Almeida, este com “A Bagaceira” (1928), os seus legítimos precursores, já que o
Jorge Amado de “O País do Carnaval” era mais um agitador de ideias, ainda em
busca de rumos, e a estreia de Graciliano Ramos traía leituras, estrutura e
tema à moda de Eça de Queiroz.
Aquele romance brasileiro nascente refletia uma claridade solar
forte, às vezes cegante. Estava-se em busca de assuntos brasileiros, faziam-se
denúncias de condições sociais aflitivas. Estaria LÚCIO CARDOSO nesse caso?
Apenas por imitação. Poeta antes de ser romancista, ou ambos a um só tempo, e
pintor que se revelaria após o derrame cerebral sofrido em 1962, seis anos
antes do seu falecimento, Lúcio Cardoso sempre primou pela frase ambígua, pela
introspecção e por um sombreamento decididamente noturnal. Seu romance
seguinte, “Salgueiro”, de 1935, ainda tem veleidades de representar a realidade
sem fantasia – mas, a partir de “A Luz no Subsolo” (1936), ele se afirma pela
introspecção, introjeção poética no eu profundo, gosto pelos mistérios da
personalidade e pelos temas de decadência. A exemplo de Cornélio Pena, Lúcio
Cardoso foi um penumbrista que ficou pouco abaixo da superfície (o título “A
Luz no Subsolo” lhe assenta bem), enquanto Cornélio Pena se empenhava em descer
mais, em diluir tudo o que houvesse de material no romance, dando-lhe uma
feição poemática, quase sem contornos físicos – uma vaga fronteira em que
poesia e prosa coexistiam e o factual, por mais que teimasse em vir à tona, era
contido.
Serviu-se Lúcio Cardoso, em “Maleita”, de dados biográficos do
pai, também chamado Joaquim (Joaquim Lúcio), um desbravador que, no final do
século XVIII, saíra de Curvelo para fundar, junto a choupanas miseráveis à
beira do rio São Francisco, a cidade de Pirapora, dela fazendo paragem de
navios-gaiola e entreposto comercial. Grassava na época uma epidemia de
maleita, que o romancista descreve por alto, em traços rápidos. Depois, quando
as primeiras casas e armazéns já surgiam em Pirapora, veio a bexiga, ou
varíola, trazida por um forasteiro. O lugar era bárbaro e resistiu ao toque
civilizador.
Homens
pescavam nus, mulheres nuas lavavam no rio. A noite era cortada por fogueiras e
batuques regados a cachaça, com mortes. Um mulato sinistro, tido como
feiticeiro, espalhava o terror – e, por se ter malquistado com Joaquim,
prejudicou-o de várias formas e acabou forçando-lhe a retirada. A maleita fez o
resto.
Neste romance, de fortes conotações sociais, de miséria explícita,
Lúcio Cardoso se comporta um tanto friamente. É como se fora um pintor que, de
pincelada em pincelada, pretendesse expor o desespero dos protagonistas. Numa
sucessão de quadros, o romance é montado, não havendo também da parte do
romancista o intento de dar-lhe densidade, seja pela força da escrita, seja
pelo mergulho nos episódios. E embora “Maleita”, na bibliografia de LÚCIO
CARDOSO, seja mais um marco histórico, um caminho quase plano para a mata
escura do seu ficcionismo posterior, percebe-se já a mão que maneja os pincéis,
que dá preferência às tintas mais escuras.
Um poeta está presente e cria frases que resvalam nos fatos para
projetar um supra-realismo de semblante fantástico. A linguagem narrativa
insiste em levantar-se do chão, na tentativa de buscar, no voo ainda curto e
rasante, significados menos aparentes e menos óbvios. Aos poucos, na obra de LÚCIO
CARDOSO, a realidade é por ele transfigurada. Depois de “Maleita” e “Salgueiro”,
vem “A Luz no Subsolo”, escrito na surpreendente idade de 23 anos. Enquanto o
romance de 1930 mantinha contato direto com a realidade imediata, mais física
do que psicológica (Lúcio Cardoso voltava a um simbolismo de exacerbação
místicas), nisso se aparentando com a tocante religiosidade de Cornélio Penna,
com a diferença de que o seu romance, de Lúcio Cardoso, embora também de
interiores, não está posto no círculo fechado do dogma. Em outras palavras, seu
ficcionismo não era o desdobramento por assim dizer natural de um temperamento
trabalhado pela crença – e sim obra de um cético que desejava crer, que
provavelmente acreditava; ou, como observou Adonias Filho, tinha “um
pressentimento de salvação”.
O romance “Maleita” ficou então banido nos barrancos do rio, o
romancista mineiro ardia com outras febres. A partir de “Maleita”, o interior
de Minas – Curvelo, Diamantina, Pirapora – se desvanece. Desincorporado, o
romancista reaparecerá no Rio de Janeiro, onde protagonistas como o de “O
Enfeitiçado”, tangidos como que por demônios, procuram inutilmente o rosto do
filho – e, por metáfora, sua própria juventude, menos impura.
Em “Maleita”, o rio São Francisco, escuro, sereno, morno, se impõe
como força da natureza. Em “A Luz no Subsolo” aparecem vagas construções do
passado, desgastadas e envelhecidas, que à luz do sol expõem a profundeza de
suas chagas. LÚCIO CARDOSO já insinua a decomposição familiar que se seguiu ao
desabamento da sociedade patriarcal brasileira e será o tema de sua obra-prima,
“Crônica da Casa Assassinada”. Ali, de espreita na zona de sombra, com a “carne
incendiada de pecado”, segundo disse José Lins do Rego, Lúcio Cardoso
surpreende suas criaturas em estado de tragédia absoluta. A tragédia não é consequência
de fatos que as envolveram, a tragédia lhes é inerente. Os desdobramentos do
romance a exacerbam e precipitam os desenlaces.
Antes de se enforcar, o homem de “O Enfeitiçado” estremece no
reconhecimento final de sua verdade: “Se somos fantasmas, é que procuramos
estabelecer uma realidade proibida”. As palavras finais de “O Anfiteatro” são
simbólicas: “E, à medida que caminhávamos, víamos o azul subir por trás da
linha suja das casas, como se alguém o soprasse do abismo”. Nas aflições dos
personagens predominam uma angústia e um ultraje – esse ultraje que, talvez
grafado com maiúscula, Ultraje, o romancista não quis ou não pôde desvendar por
inteiro nos seus “Diários”. O determinismo é levado às últimas possibilidades
de resistência (há, na Crônica, um, incesto praticado deliberadamente) e,
muitas vezes, se faz vencedor. Um traço romântico? Provavelmente. Mas também
uma metáfora da fé. É que, como disse Melchior de Vogüé sobre Dostoiévski,
esses místicos escrevem também para curar. Sobretudo, para se curarem.
O ensaísta e contista grapiúna HÉLIO PÓLVORA é autor de “Estranhos
e Assustados” (1966). Pertenceu à Academia de Letras da Bahia (ALB), Cadeira
29. Como jornalista e crítico literário, trabalhou em diversos veículos, como
“Jornal do Brasil”, “Veja”, “Correio Braziliense” e “A Tarde”. Editou o “Cacau
/ Letras”.
OBRA de LÚCIO CARDOSO
Primeiras Edições
ROMANCE
MALEITA (1934)
SALGUEIRO (1935)
A LUZ NO SUBSOLO (1936)
MÃOS VAZIAS (1938)
O DESCONHECIDO (1940)
CÉU ESCURO (1940)
DIAS PERDIDOS (1943)
INÁCIO (1944)
A PROFESSORA HILDA (1946)
O ANFITEATRO (1946)
O ENFEITIÇADO (1954)
CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA (1959)
O VIAJANTE (Inacabada, 1970)
BALTAZAR (Inacabada, inédito)
POESIA
POESIAS (1941)
NOVAS POESIAS (1944)
POEMAS INÉDITOS (1982)
MEMÓRIA
DIÁRIOS (De 1949 a 1951. 1961)
DIÁRIO COMPLETO (De 1949 a 1962. 1970)
INFANTIL
HISTÓRIAS DA LAGOA GRANDE (1939)
TEATRO
O REDUTO DOS DEUSES (1929)
O ESCRAVO (1945)
O FILHO PRÓDIGO (S.D.)
O CORAÇÃO DELATOR (S.D.)
ANGÉLICA (S.D.)
CINEMA
ALMAS ADVERSAS (1948)
A MULHER DE LONGE (1949)
DESPERTAR DE UM HORIZONTE (1950)
COM OS OLHOS NO CHÃO (1959)
PORTO DAS CAIXAS (1962)
CONTOS
CONTOS DA ILHA E DO CONTINENTE (2012)
O CRIME DO DIA (2013)
FRAGMENTOS dos “DIÁRIOS” de LÚCIO CARDOSO
“É que o prazer não me interessa. Sempre o que me interessou foi o
amor, e agora que vejo perder-se a possibilidade dele (ai de mim) sinto que não
me interesso por outra coisa, e que o prazer sozinho não vale nada e não tem
atrativos para mim.”
“Aproveito todas as aquisições da idade: afasto-me da carne pura e
simples, sentindo que nela não há prazer e nem enriquecimento, mas somente
melancolia e pobreza. Ah, existe um momento em que ser casto não é difícil — e
a ele eu me atiro com todas as forças do ser. Não, não se pode imaginar a
necessidade que eu tenho de pureza e de tranquilidade — minha impressão é a de
que recomeço a viver.”
“Não sei se há em mim um vício central da natureza, sei apenas que
é nela, nessa paixão voraz e sem remédio, que encontro afinidade para as minhas
cordas mais íntimas.”
“Não é perder que me aflige – porque perdemos tudo, e seria inútil
lutar. É perder dessa maneira, sem uma palavra, como uma flor viva que
atirássemos ao fundo de uma sepultura. Ai, como eu me enganava, como eu me
engano a meu próprio respeito! Julgo-me muito mais frio do que sou, e na
verdade a ausência das pessoas me causa uma profunda perturbação. (Sei que
despisto, que não me refiro exatamente ao que devo – porque ao certo, era de X,
era da sua ausência que devia falar…)”
“Rompendo ontem com X, atingi o final de um movimento que vem
caminhando há muito tempo. Pensando hoje nos detalhes, imagino que talvez tenha
sido injusto mas, ainda assim, não é mais tempo para recuar, já que no futuro a
única coisa que me espera é o longo trabalho que tenho a fazer. Pensando em
certos detalhes da vida de X, sua pobreza, suas dificuldades, o escuro porão em
que mora, sua timidez feita de orgulho e em geral suas dificuldades na vida
prática, sinto uma enorme pena. É uma coisa triste não poder auxiliar as
pessoas como seria necessário; mas também não posso me sacrificar mais e, tudo
o que foi vivido, vai para este poço fundo onde guardamos as lembranças,
algumas delas, como esta, das melhores de nossa vida.”
“Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos.”
POEMAS de LÚCIO CARDOSO
A UMA ESTRELA
Meu domínio é o do sonho,
minha alegria é a do céu que a tormenta obscurece,
meu futuro é aquele que amanhece à luz do desespero.
Só tu saberás o segredo da minha predestinação.
Só tu saberás a extensão de tantas caminhadas,
só tu conhecerás a casa humilde em que morei.
Quem saberia romper o sortilégio que me cerca,
ó sol vermelho, aurora dos agonizantes.
Mas não reflitas nunca o gesto que condena.
Ai, este país é o da eterna aridez!
Se da altura a estrela não baixar o olhar ao pântano,
maior será a sua impiedade que o seu esplendor.
E só tu Vésper, só tu aplacarás o meu desejo,
só tu poderás depositar, nesta carne crispada,
o beijo que nas trevas dá ao sono a serenidade do repouso.
“Novas
Poesias”, 1944
AMANHECER
A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca,
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sôbre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.
E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a musica das fiôres que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.
Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo côr-de-rosa
desaparecendo sugados pela treva.
“Poesias”,
1941
VELHA FORTALEZA
Vejo-te dormindo no silêncio antigo e forte.
Ouço as ondas que roçam tuas ilhargas de granito,
e o vento que desenlaça no espaço frio
a memória guerreira dos teus dias idos.
Sinto renovar-se em mim
o desejo desta vida que sonhei.
Ouço a voz das madrugadas sôbre as rochas
e o mar remoto que soluça
junto ao aço morto dos canhões...
E vejo, ó fria sentinela,
o teu vulto crescer na linha do horizonte,
como um estranho navio que ancorasse
junto à cidade descuidada,
vazia de heroísmo e mocidade!
“Poesias”,
1941
3 comentários:
Lindo post!
Muito bom saber mais sobre Lúcio Cardoso.
Parabéns pela análise e pela bibliografia e cinematografia que desvenda títulos que muitos desconhecem.
Na cinematografia cardosiana há mais recentemente ainda:
O desconhecido - Ruy Santos
Mãos vazias - Luiz Carlos Lacerda
Introdução à música do sangue - Luiz Carlos Lacerda
O enfeitiçado - Luiz Carlos Lacerda (neste Lúcio aparece pintando e mostrando suas pinturas)
salvo engano Luiz Carlos Lacerda fez ainda mais alguma coisa sobre Lúcio
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