As memórias, até mesmo as mais preciosas, desvanecem-se com uma
rapidez surpreendente. Mas eu não quero deixar isso acontecer. Não quero ver as
memórias que eu mais valorizo desaparecerem.
KAZUO ISHIGURO
Ilustrações: THOMAS GIRTIN
(1775 - 1802. Southwark, Reino Unido)
ANTONIO NAHUD entrevistou o nipo-britânico NOBEL de LITERATURA
2017 em Barcelona, Espanha, 2001. Entrevista publicada no “Diário de Notícias”
(Portugal), jornal “A Tarde” (BA) e no livro “ArtePalavra – Conversas no Velho
Mundo” (2003).
Sua criação é excêntrica e arriscada. Considerado um dos autores
vivos mais importantes, KAZUO ISHIGURO teve sua obra traduzida em mais de 28 países. Nascido no Japão, em Nagasaki, em 1954 – nove
anos depois da explosão da bomba atômica -, reside desde os seis anos de idade na
Inglaterra, onde se graduou em Inglês e Filosofia na Universidade de Kent, em
Canterbury.
Obteve o consagrado Brooker Prize com seu terceiro romance,
“Os Vestígios do Dia” (1989), que vendeu mais de um milhão de exemplares em língua
inglesa e foi adaptado ao cinema por James Ivory, com Anthony Hopkins fazendo o
protagonista, o mordomo Stevens. Irritado com a projeção excessiva gerada pelo
filme, escreveu poucos depois “O Inconsolável” (1995), rompendo com seu estilo
conhecido até então e recebendo em troca críticas negativas. A trama se passa
em um país imaginário, onde um pianista famoso enfrenta incertezas econômicas,
políticas e sociais.
Os dois primeiros livros do escritor, “Uma Pálida Visão dos
Montes” (1982) e “Um Artista do Mundo Flutuante” (1986), foram campeões de
vendas no Reino Unido, assim como todos os outros. Aos 48 anos, a fama parece
não tê-lo afetado, passando sinceridade, tranquilidade e inteligência admirável.
Em Barcelona, Espanha, para o lançamento de “Quando Éramos Órfãos” (2000),
KAZUO ISHIGURO falou sobre literatura, britânicos e o sucesso.
O seu mais novo romance narra as aventuras de um detetive inglês,
nascido em Shangai, angustiado com as recordações do desaparecimento dos seus
pais, sequestrados há um quarto de século. Ele volta a sua cidade natal para
localizá-los, encontrando um país invadido pelo Japão, às vésperas da Segunda
Guerra Mundial. Como toda criação de KAZUO ISHIGURO, vai além de uma inquietante
aventura literária.
O QUE PASSA NA MENTE DO SEU PROTAGONISTA?
O detetive da minha história, Christopher Banks,
acredita que todos os problemas do mundo podem se resolver solucionando um único
crime, o sequestro de seus pais quando ele era menino. Acha que o mal está
ligado a esse fato e uma vez resolvido o mistério, o universo se harmonizará. Sabemos
que a vida não é assim. Tampouco escrevi uma novela policial no estilo Agatha Christie.
PERCEBO QUE ESTE ROMANCE REAFIRMA O VALOR DA MEMÓRIA, OU SEJA, DO
PASSADO. É UMA QUESTÃO FUNDAMENTAL PARA VOCÊ?
A memória é um dos meus temas preferidos. É um filtro muito
interessante do nebuloso. Normalmente as pessoas negam o passado ou têm leituras
muito particulares dele. É impressionante como se mente para si mesmo. Com os
meus personagens procuro desvendar o conflito com o passado. Examinando recordações
alheias percebemos o que querem esconder, o que os deixam mais orgulhosos, o que são e o que gostariam de ter sido. Penso que grande parte do que aconteceu na infância permanece em nossos corações para sempre. Escrevi este romance
interessado no passado como algo que permanece dentro de nós e nos aprisiona.
CREIO
QUE EXISTEM FATORES ALÉM DA NOSSA COMPREENSÃO QUE VETAM O PASSADO EM SUA TOTALIDADE.
Exato. Principalmente quando o passado foi sofrido, duro. Muita
gente não consegue analisar completamente a sua própria história e outros ficam
na dúvida se vale a pena ou não enfrentá-la, recordando apenas certos momentos.
Eu acho que pouco importam os nossos fracassos, sempre há dignidade em
encontrar força para enfrentar nossos próprios fantasmas. O detetive deste
romance pensa assim.
COMPARADO A KAFKA EM SEU ROMANCE ANTERIOR, DISCORDOU DURAMENTE.
NÃO GOSTA DO ESCRITOR CHECO?
Não é isso. Sou admirador de Kafka, parece-me interessante, mas não
o entendo perfeitamente. Não vejo sua literatura com claridade. Sendo assim,
como um romance meu pode ter estilo kafkaniano? Talvez tenha a ver com o espaço
onde situo a narrativa, um mundo onírico. Acredito não ter os antecedentes nem
a tradição de Kafka. Meus sentimentos não são kafkanianos. Nos primeiros trabalhos
fui comparado a escritores japoneses por escrever sobre o Japão. A seguir a
alguns ingleses por escrever sobre a sociedade inglesa. São comparações sem
consistência.
ADMIRA ESPECIALMENTE ALGUM ESCRITOR?
Sinto-me emocionalmente muito próximo a Nabokov.
FICA FERIDO OU ACEITA SEM PROBLEMA CRÍTICAS NEGATIVAS?
Sem problema. Inclusive, prefiro que as críticas não sejam unânimes. Assim vejo meus erros. Sinto pena dos
escritores acostumados a críticas generosas. Em consequência, são prisioneiros
de elogios.
COMO SENTIU A ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE “VESTÍGIOS DO DIA”?
Gostei, e muito. Quando pediram para filmá-lo, aconselhei que
fizessem o melhor possível e conservassem o título original, mas tive dúvidas
em relação ao resultado. Pensava que não se podia levar as telas o mundo
interior dos meus personagens. Anthony Hopkins conseguiu. Já não sei o que
dizer. O filme é bastante fiel ao romance. De inconveniente, a popularidade
inesperada, mesmo passando a vender muito mais.
QUEIXA-SE DA POPULARIDADE ALCANÇADA E RELATOU O
PESADELO DO SUCESSO EM “O INCONSOLÁVEL”. É DIFÍCIL PARA VOCÊ CONVIVER COM A
FAMA?
Se gasta um tempo excessivo com a fama, um tempo que poderia ser
utilizado escrevendo. São dezenas de entrevistas e viagens para
promover a obra. Exatamente isto que estou fazendo ao conversar com você neste
momento. Nos Estados Unidos é quase uma obsessão. Alguns escritores passam
quatro meses fazendo este tipo de propaganda. Por exemplo, a escritora Amy Tan
me disse que seu editor a enviou para uma série de viagens publicitárias
durante seis meses. Ela passou a escrever aos pedaços, em seu minguado tempo
livre. Uma loucura. Não quero fazer parte deste círculo vicioso. Mesmo com o
grande sucesso de “Os Vestígios do Dia”, não me deixo levar pelos editores que
insistem em uma nova obra a cada ano mais meses de dedicação publicitária. Pretendo
continuar escrevendo com tranquilidade e profundidade, sem ganância ou
superficialidade.
FAZ QUESTÃO DE INOVAR DE UM LIVRO PARA OUTRO?
As coisas mudam a medida que envelhecemos. Não quero ter a sensação
de estar utilizando o que funcionou noutros livros, principalmente porque os
anos passam, me levando a ser uma pessoa diferente que quer dizer algo diferente. Não
pretendo me tornar um escritor folgado que utiliza as mesmas mágicas.
A LITERATURA INGLESA ATUAL TEM NOMES EXPRESSIVOS COMO MARTIN AMIS,
HANIF KUREISHI, ENTRE OUTROS. O QUE PENSA DELA?
Sinto-me orgulhoso deste panorama de bons autores,
mas garanto que nada temos em comum. Os ingleses pensam que a Inglaterra é o centro do
universo literário. Até certo ponto concordo que já foi, mas hoje é diferente,
muito diferente, e a principal influência intelectual da Inglaterra vem de
escritores de fora, de Gunter Grass a Gabriel García Márquez.
FAZ PARTE DO GRUPO DE ESCRITORES QUE ACREDITA QUE O LIVRO VIVE SEU
MOMENTO TERMINAL?
Nem pensar, muito pelo contrário. Existem livrarias em quase todos
os lugares do mundo, ou seja, existem compradores de livros. Essa história de
que as pessoas estão deixando de ler e só se interessam por vídeo ou internet não
é verdade. O número de leitores de livros é imenso. Um livro influencia muita
gente.
OBRA COMPLETA de ISHIGURO
UMA PÁLIDA VISÃO dos MONTES
(A Pale View of Hills, 1982)
Seu primeiro romance conta a vida de uma sobrevivente da tragédia
nuclear de Nagasaki. No exílio inglês, a velha Etsuko, viúva duas vezes, agora
em companhia da única filha que lhe resta após o suicídio da outra, revê a
terra natal no pós-guerra e medita sobre tudo o que significou a hecatombe para
o ser solitário a que ela hoje se resume.
UMA CEIA em FAMÍLIA
(A Family Supper, 1982)
UM ARTISTA do MUNDO FLUTUANTE
(An Artist of the Floating World,1986)
A história de um homem e as mudanças que ocorrem em seu país,
o Japão, depois da guerra. Masuji Ono, pintor famoso caído em desgraça, venera
o passado guerreiro de sua nação e é rechaçado pelo caos e pela desintegração
do presente - o “mundo flutuante” de bares e casas de gueixas. Com estilo elegante
e preciso, o autor envolve o leitor nesse mundo com uma prosa límpida que capta
com realismo e beleza as nuances da vida japonesa.
OS VESTÍGIOS do DIA
(The Remains of the Day, 1989)
O narrador-protagonista reflete sobre o papel dos mordomos na história
da Inglaterra. Depois de trabalhar durante anos na mansão de um lord, ele sai
em viagem relembrando momentos da trajetória do ex-patrão, que simpatizava com
o nazismo, e rememora suas próprias paixões.
O INCONSOLÁVEL
(The Unconsoled, 1995)
Um pianista aparenta ter perdido parte da memória e considera o
local onde realizará um concerto um tanto quanto surreal.
QUANDO ÉRAMOS ÓRFÃOS
(When We were Orphans, 2000)
Usando um humor fino, narra a história de um detetive inglês
nascido em Shangai à procura de respostas para o sumiço dos pais, que
desapareceram quando ele tinha nove anos. Em uma China que vive uma guerra
sangrenta com o Japão, ele acaba perseguindo também uma ordem para o mundo em
que vive.
NÃO me ABANDONE JAMAIS
(Never Let me Go, 2005)
Nesta ficção científica sutil e melancólica, garota relembra os
anos em que viveu em um orfanato no qual todos os “alunos” eram clones,
produzidos para servir como peças de reposição. Em 2010, a obra ganhou uma
adaptação homônima para o cinema, que conta com Carey Mulligan e Andrew Garfield.
NOTURNOS - HISTÓRIAS de MÚSICA e ANOITECER
(Nocturnes, 2009)
Nesta coleção de contos, o autor se rende a narrativas leves e bem
humoradas sobre instrumentistas e amantes da música, de diversas partes do
mundo. E traduz histórias tocantes como a do saxofonista que decide fazer uma
plástica para ganhar mais reconhecimento.
O GIGANTE ENTERRADO
(The Burried Giant, 2015)
Enveredando pela fantasia e se aproximando de autores como Tolkien,
neste romance os personagens precisam lidar com as indefinições do amor e uma
misteriosa névoa do esquecimento.
ROTEIROS
A MÚSICA MAIS TRISTE do MUNDO
(The Saddest Music in the World, 2003)
direção de Guy Maddin
A CONDESSA BRANCA
(The White Countess, 2005)
direção de James Ivory
O AUTOR
Vencedor do Nobel de Literatura 2017. Segundo a Academia
Sueca, ele recebeu o prêmio porque “Em seus romances de
grande força emocional, revelou o abismo sob nossa sensação ilusória de conexão
com o mundo”.
A
secretária-permanente da Academia Sueca, Sara Danius, afirmou: “Ele é um pouco
como uma mistura de Marcel Proust, Jane Austen, comédia de costumes e Franz
Kafka. Se você misturar isso um pouco, não muito, você tem a essência de
Ishiguro”.