abril 29, 2023

................................................................................... O AMOR ACABA


Ilustrações:
JULIE MERRIGAN
 

 
A crônica tem força genuína e trajetória gloriosa na literatura brasileira. Nosso elenco de gigantes cronistas, mestres em devaneios existenciais, conta com nomes imortais como Otto Lara Rezende, Nelson Rodrigues, Antônio Maria, João do Rio, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Rachel de Queiróz, Fernando Sabino, Hélio Pólvora, Carlos Drummond de Andrade, PAULO MENDES CAMPOS, Rubem Braga, Sérgio Augusto, Paulo Francis. Entre transcendências e trivialidades, fizeram história.
 
A crônica de PAULO MENDES CAMPOS (1922 - 1991. Dom Silvério, Minas Gerais) conseguiu um lugar singular.  Ela encontra a poesia. Peças curtas de intenso teor poético.  Segundo o refinado escritor, num aparente pouco caso, “Crônica são duas laudas de papel em branco. É a azeitona do pastel cultural. Age como tempero da massa noticiosa.”. Ele escreveu crônicas em ritmo por vezes diário, para jornais como “Correio da Manhã”, “Jornal do Brasil” e “Diário Carioca”, e para revistas como “Manchete”.

Claro, refinado e sem nada de solene, é autor de uma das mais belas crônicas da língua portuguesa, que tem o título de O AMOR ACABA. Certeiro e comovente, inventário de rupturas, o texto enaltece a fragilidade e a efemeridade do amor. Publicado inicialmente na revista “Manchete”, em 16 de maio de 1964, o sucesso foi imediato. Os leitores que já viveram a desilusão do amor leram a sua própria história. O cronista dá pistas sobre a dissolução do sentimento e nas entrelinhas diz que o final do amor começa com o hábito da rotina enfadonha. 

 
A faceta lírica e a destreza de PAULO MENDES CAMPOS conquistam o leitor. O cronista não economiza em seu louvor à sensibilidade, numa busca frenética pelo instante precioso, pela frase iluminadora. Ele talvez não imaginasse a repercussão que teria seu melancólico ensaio, cujas palavras atravessam os tempos. Confira abaixo.

 

O AMOR ACABA


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Revista Manchete, 16 de maio de 1964

fernando sabino, paulo mendes campos, hélio pellegrino e otto lara rezende

TODA LITERATURA de PAULO MENDES CAMPOS

 
POESIAS
A Palavra Escrita (1951)
Forma e Expressão do Soneto, antologia (1952)
Infância
O Domingo Azul do Mar (1958)
Testamento do Brasil e Domingo Azul do Mar (1966)
Transumanas (1977)
Poemas (1979)
Diário da Tarde (poesia e prosa) (1981)
Trinca de Copas (poesia e prosa) (1984)
 


CRÔNICAS
O Cego de Ipanema (1960)
Homenzinho na Ventania (1962)
O Colunista do Morro (1965)
Antologia Brasileira de Humorismo (1965)
Hora do Recreio (1967)
O Anjo Bêbado (1969)
Rir é o Único Jeito: Supermercado (1976) (reedição de “Hora do Recreio”)
Os Bares Morrem numa Quarta-feira (1980)
O Amor Acaba - Crônicas Líricas e Existenciais (1999)
Brasil Brasileiro - Crônicas do País, das Cidades e do Povo (2000)
Alhos e Bugalhos (2000)
Cisne de Feltro - Crônicas (2000)
Murais de Vinícius e Outros Perfis (2000)
O Gol é Necessário - Crônicas Esportivas (2000)
Artigo Indefinido (2000)
De um Caderno Cinzento - Apanhadas no Chão (2000)
Balé do Pato e Outras Crônicas (2003)
Quatro Histórias de Ladrão (2005)
 
INFANTO-JUVENIL
A Arte de ser Neta (1985)

 
 

10 comentários:

Maria Augusta Louback disse...


Eu acho que nunca amei de verdade! Fui mais amadA do q amei!
Por isso não acabou,...eu larguei pra lá!

Arthur Cardenes disse...


E viva o amor!!!

Marília Menezes disse...


Crônica emocionante. Ele era pessimista, mas um grande escritor.

Tica Simões disse...


A crônica é boa! Mas não, nem sempre o amor acaba. Se é cuidado a cada dia, ele não acaba!

Ricardo Mainieri disse...


Cronista maravilhoso e também ótimo poeta.

Tati Bueno disse...


O amor é com o bem definiu Vinicius :” E eterno enquanto dura”’

Ana Lúcia Vasconcelos disse...


Muito bom ele...

Miriam Senna disse...


Sim, o amor acaba..nada é para sempre

Bethy S. Fabry disse...


O amor verdadeiro jamais acaba mesmo distando

Unknown disse...

AMOR

Pétala do poeta, a borboleta pousa na rosa em botão. Germinando como a lua, flor que enamora, da rosa brotou raízes em forma de coração.

BL