“Na vida,
se alguém quer entender, entender verdadeiramente como são as coisas neste
mundo, deve morrer pelo menos uma vez. Então, já que a lei é essa, melhor
morrer quando jovem, quando se tem muito tempo pela frente, para se erguer e
ressuscitar...”
GIORGIO BASSANI
“Il Giardino dei Finzi Contini” (1962)
Ilustrações: WASSILY KANDINSKY
(1866 – 1944. Moscou / Rússia)
A nitidez do fim da tarde impressiona. O campo por inteiro, em matizes de cores lavadas por recente aguaceiro; a vastidão do horizonte sombrio, quase azul-marinho, recortado por nuvens carregadas. Em oposição a este fundo de chumbo, um rasgo de luz solar desenha o campo, enfatizando cintilantes gotículas no verde das ervas. Entre os tufos do arvoredo, espantosos plátanos, de folhagem juvenil; à direita do quintal, limoeiros; couves na fieira das hortas. Ao longe, nas encostas da mata, com urzes em festa, bailam as videiras. Nas ramadas, brotam rebentos.
O salão da casa secular, de pedra, parece soturno, sepulcral, possuído por ruídos indefiníveis. Há uma organização tristonha de malas feitas, livros empilhados, fotos nas paredes de gente desconhecida e molduras protegendo desenhos ruins. O idoso procura a pera madura, dentada, encontrando por todos os lados páginas e mais páginas rabiscadas. “O outono chegou”, murmura. Serve-se de uma xícara de chá de alecrim - esse seu único alimento, chá e mais chá. Regressando à janela estreita, recebe de golpe o sereno e os sons da terra antiga: um besouro dando voltas em torno de narcisos, o berreiro da jovem pastora, o latido de um cão que talvez fuce a cova de algum javali.
A luz, entretanto, altera-se, clareando o longínquo lombo da montanha. A atmosfera sobrevive em fundas depressões. “Pelo tempo Deus envia sinais e nós, distraídos, não os percebemos”. O destino, nesse instante, escrito na contorção das sementes sob o húmus, nos sopros, nas raízes, nos córregos da serra, nas veias e artérias, nas ressacas sobre os campos de linhos, nos contornos à procura de outros contornos. Tantas imagens, tantas lembranças. A poesia cujo sentido está em escrevê-la. “Ó minha alma! Sou eu, sou eu!”. Agarra a caneta, e escreve: “A alegria é fundamental. Dá-me um pouco de alegria e então construirei o mundo! Não suporto mais que a cada instante seja imperativa uma energia formidável que nos mantenha em pé, ameaçados que estamos de cair”.
Reconhece as mãos nodosas como cepos, tais como o rosto de muitos anos, de madeira seca, de olhos tomados pelo brio. Sabe que ser tomado pelo brio assemelha-se ao ardor espiritual que sentiu certa vez ao caminhar numa fabulosa montanha. Isso aconteceu na juventude. Ele se embrenhou na fortaleza de terra possuído por rutilâncias. Passou horas na tal montanha, e ao deixá-la um bom pedaço dele ficou nela, restando um buraco interior imenso e possivelmente eterno. Nessa época ainda não sabia que um dia deixaria de escrever, porque a escrita mente, é um refúgio e a presença em combustão da inexistência.
Ainda assim, sente vontade de escrever sobre a desolação que o acompanha, enquanto os vizinhos regressam aos seus domicílios, os porcos são presos e as galinhas se calam. A noite há de ser de chuva. Em suspense, prepara mais um chá. Pretende bebê-lo bastante quente. Para entorpecer de vez a solidão.
GIORGIO BASSANI
“Il Giardino dei Finzi Contini” (1962)
Ilustrações: WASSILY KANDINSKY
(1866 – 1944. Moscou / Rússia)
A nitidez do fim da tarde impressiona. O campo por inteiro, em matizes de cores lavadas por recente aguaceiro; a vastidão do horizonte sombrio, quase azul-marinho, recortado por nuvens carregadas. Em oposição a este fundo de chumbo, um rasgo de luz solar desenha o campo, enfatizando cintilantes gotículas no verde das ervas. Entre os tufos do arvoredo, espantosos plátanos, de folhagem juvenil; à direita do quintal, limoeiros; couves na fieira das hortas. Ao longe, nas encostas da mata, com urzes em festa, bailam as videiras. Nas ramadas, brotam rebentos.
O salão da casa secular, de pedra, parece soturno, sepulcral, possuído por ruídos indefiníveis. Há uma organização tristonha de malas feitas, livros empilhados, fotos nas paredes de gente desconhecida e molduras protegendo desenhos ruins. O idoso procura a pera madura, dentada, encontrando por todos os lados páginas e mais páginas rabiscadas. “O outono chegou”, murmura. Serve-se de uma xícara de chá de alecrim - esse seu único alimento, chá e mais chá. Regressando à janela estreita, recebe de golpe o sereno e os sons da terra antiga: um besouro dando voltas em torno de narcisos, o berreiro da jovem pastora, o latido de um cão que talvez fuce a cova de algum javali.
A luz, entretanto, altera-se, clareando o longínquo lombo da montanha. A atmosfera sobrevive em fundas depressões. “Pelo tempo Deus envia sinais e nós, distraídos, não os percebemos”. O destino, nesse instante, escrito na contorção das sementes sob o húmus, nos sopros, nas raízes, nos córregos da serra, nas veias e artérias, nas ressacas sobre os campos de linhos, nos contornos à procura de outros contornos. Tantas imagens, tantas lembranças. A poesia cujo sentido está em escrevê-la. “Ó minha alma! Sou eu, sou eu!”. Agarra a caneta, e escreve: “A alegria é fundamental. Dá-me um pouco de alegria e então construirei o mundo! Não suporto mais que a cada instante seja imperativa uma energia formidável que nos mantenha em pé, ameaçados que estamos de cair”.
Reconhece as mãos nodosas como cepos, tais como o rosto de muitos anos, de madeira seca, de olhos tomados pelo brio. Sabe que ser tomado pelo brio assemelha-se ao ardor espiritual que sentiu certa vez ao caminhar numa fabulosa montanha. Isso aconteceu na juventude. Ele se embrenhou na fortaleza de terra possuído por rutilâncias. Passou horas na tal montanha, e ao deixá-la um bom pedaço dele ficou nela, restando um buraco interior imenso e possivelmente eterno. Nessa época ainda não sabia que um dia deixaria de escrever, porque a escrita mente, é um refúgio e a presença em combustão da inexistência.
Ainda assim, sente vontade de escrever sobre a desolação que o acompanha, enquanto os vizinhos regressam aos seus domicílios, os porcos são presos e as galinhas se calam. A noite há de ser de chuva. Em suspense, prepara mais um chá. Pretende bebê-lo bastante quente. Para entorpecer de vez a solidão.
Do livro
“Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” (2012)
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