Sou eu o homem, eu sofri, estive lá.
WALT WHITMAN
(1819 – 1892. West Hills, Nova York / EUA)
Ilustrações:
PAULO von POSER
(1960. São Paulo / SP)
WALT WHITMAN
(1819 – 1892. West Hills, Nova York / EUA)
Ilustrações:
PAULO von POSER
(1960. São Paulo / SP)
No ano de 2003, hospedado em um hotel potiguar à beira mar, colhia informações para iniciar a biografia do escritor Diogenes da Cunha Lima. Com tempo livre, aproveitei para organizar a antologia “A Língua Apunhalada”, com 31 crônicas divididas em “Crônicas Grapiúnas” (1993 - 1994) e “Crônicas dos Dias Errantes” (2000). Prefácio do potiguar Vicente Serejo e revisão do pernambucano Antônio Lopes, ambos cronistas notáveis. Todo o material literário havia circulado em suplementos de jornais, sites e blogs no Brasil, Espanha, Argentina e Portugal, muitas vezes causando polêmicas. Nele, escrevo sobre viagens, comportamento, sexo, política, religião, literatura e artes. Algumas das crônicas são imaturas, inclusive agressivas. Foram escritas em Ilhéus, em países europeus e no Marrocos. Textos sinceros com estocadas duras. Na época, no auge da juventude, era cúmplice da polêmica, do cuspir fogo, da erudição. Tinha como ídolos Paulo Francis, H. L. Mencken, Sérgio Augusto e Otto Lara Rezende. As palavras escritas sem freios cuspiam questionamentos, confiando nos raciocínios vulcânicos delas, afinal a verdade surpreende. Décadas passadas, releio esse livro que - por motivos misteriosos - nunca foi publicado. Divido com você o prefácio e três crônicas.
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O PUNHAL e a CRÔNICA
Prefácio de Vicente Serejo (*)
Prefácio de Vicente Serejo (*)
O cronista, sem precisar deixar de ser um repórter à procura das notícias da vida, tem sido também um repórter das notícias da alma. Vivendo no arame. Entre o real e o tangível, por mais que o inescrutável pareça ser matéria de nunca ouvido canto. Talvez por isso, quando comecei a leitura das crônicas de Antonio Nahud, reunidas neste conjunto que chamou de “A Língua Apunhalada”, senti que esse punhal era um resguardo de precaução. Culto, e dono de um texto impecável que se ombreia sem medo aos melhores textos da crítica e do jornalismo literário brasileiro, Antonio Nahud teme apunhalar a língua que domina numa bela arquitetura feita de ritmos e metáforas, como se a escrita, uma vez posta ao rez-de-chaussez, ficasse numa perigosa linha de tiro, no estande da crítica literária e seus exigentes exercícios.
Como
todo grande escritor, tem seu modo singular de dizer, seu viés de contar, sua
ilha de impressões com figuras que decalca no seu voo grande-angular sobre a
banalidade do cotidiano. Uma banalidade que não é banal, porque também não é
aquela com a qual quiseram ferir a grande poesia de Manuel Bandeira, como se
fosse feita só da vulgaridade dos temas da vida besta. Quando é do cotidiano
que se reflete por inteiro a própria vida. Na cor e na ausência da cor. No
claro-escuro da alma. No baixo e no alto relevo. Em tudo. O olhar de Antonio Nahud
é o registro, no mesmo nível de importância, da suspeita e da certeza. Do falso
e do verdadeiro. Do pecado e da virtude. Do bem e do mal. Mas não tem, em nada,
um maniqueísmo capaz de depenar o seu olhar e de fazê-lo pobre. Sua crônica não
é apenas aquele sorriso da sociedade a que se referiu Afrânio Peixoto. É também
a cara feia da ira, a gargalhada desabrida da ironia, a
fisionomia triste da comoção.
Vivendo em Natal, ele nômade e fugidio, a cidade não soube ser o favo bom de sua doce e marcante presença. Ele, um homem em travessia, mas espetando com sua inteligência a mesmice dos dias e o mistério das noites. Seus ensaios nos jornais locais fazem dele um novo Michel de Montaigne – recluso e genial – a espreitar do alto das ameias de sua torre, diante do mar de Ponta Negra, os estranhos mistérios da vida e da arte. Mexe e remexe nas gavetas da alma humana, incomoda na sua sinceridade, e causa inveja quando enfia o olho na fresta e revela o que é proibido. E, no entanto, todos veem. A leitura deste “A Língua Apunhalada” é um exercício de visões e de descobertas. Aqui, nenhuma verdade é eterna. O bem e o mal se fundem, com cheiro de alfazema numa paisagem melancólica, quando ele mostra que o mundo, às vezes, é um mercado de farsantes. Antonio Nahud vai a toda parte, e, ao mesmo tempo, é real e mágico com sua escrita, que chamou de movediça e que lhe dá tino, força e sorte. Sua palavra é, ao mesmo tempo, apolínea e dionisíaca, próxima e distante. Capaz de fecundar palavras e emprenhar de novos sentidos a palavra gasta. Entre a dor e a delícia desse seu caetanear baiano, às vezes indolente, vagando pelas ruas e becos de sua Salvador, subindo e descendo as ladeiras, no sopro da vida cheirando a dendê.
Viajor dos rios existenciais que banham a alma humana entre o tédio e a dor de ser e de não ser, Antonio Nahud é um grande escritor. E, por isso, um grande cronista do seu tempo. Existencial e irônico, bem humorado e terno. Um lírico que procura as dúvidas nos dias errantes. Como quem desconfia, no seu ceticismo, que a dúvida é a grande presença de Deus. Porque ele sabe, e como sabe afirma: Vê-se que o esplendor da fé está ali, ali nos olhos de mar da gente comovida. Mas, desconfiado, pergunta: Consegue ver? Leiam o livro. E vejam.
(*)
Cronista e ensaísta, autor de “Cena Urbana” e outros livros. Jornalista e
professor universitário.
01
O JARDIM A vida é um caminho cheio de espinhos e flores.
MACHADO de ASSIS
(1839 – 1908. Rio de Janeiro / RJ)
MACHADO de ASSIS
(1839 – 1908. Rio de Janeiro / RJ)
Na
infância, fui duas ou três vezes de mãos dadas com mamãe visitar a bisavó
Silvina. Íamos a pé, caminhando da casa de vovó Nininha, ela conversando com
conhecidos ou parentes no caminho, em um ritual educado. Observava sua fala com
gente que eu desconhecia, encantado com a criatura mais bela do mundo. Um ou
outro passava a mão na minha cabeça de cachos negros, diziam coisas cordiais
que eu ignorava, só vendo importância em estar de mãos dadas com aquela deusa.
A bisavó morava em um casarão soturno, decorado com imagens de santos, molduras
ovais e móveis antigos. Um mundo de sombras e fantasmas. Prostrada numa cama,
ela parecia ter mil anos, o rosto enrugado, os cabelos cinzentos e o corpo
magro, muito magro. Transmitia bons sentimentos no esforço para sorrir e deixar
evidente sua felicidade com a presença da formosa e cordial neta. Vivia seus
últimos momentos de vida, e parecia saber disso. Mamãe me deixava à vontade
nessas visitas, protegido que eu estava numa casa sem perigos, ela apertando as
mãos da idosa sem forças. Rezavam, conversavam sussurrando, tomavam chá
mastigando biscoitinhos de nata.
Senhor absoluto do reino, ocupava o jardim ao lado da entrada principal. Era o jardim do paraíso, inesquecível. Lembro das gérberas amarelas, das margaridas graúdas, cravos vermelhos, lírios, ramos de ásteres, palmas de Santa Rita, narcisos e hortênsias. Sentava-me por instantes debaixo da mangueira contemplando o horto de belezas, de toda qualidade de perfumes. Havia também rosas musgosas, jacintos, campânulas, açafrões e mirra. O inocente coração, arrebatado pela paisagem inspiradora, guardava para si a condição existencialista. Perdia-me no visual florido, a mente hipnotizada por fragrâncias e formosuras. O coração em suspense. Controlando a comoção, acompanhava o voo de abelhas, borboletas e colibris; intrigado com formigas, gafanhotos, louva-a-deus e lagartas de fogo. Anos passados, certo trecho do romance “Sonhos d'Ouro” (1872), de José de Alencar, me faz recordar o jardim do transe infantil: “As flores, como mimos da natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia”. A leitura do escritor cearense deu origem a esta crônica sentimental e nostálgica, resgatando o jardim que guardo no coração.
Para suportar os males do destino obscuro, tenho como estratégia zombar dos fajutos princípios esquerdistas. Eu desrespeito a mídia frouxa e artistas que vomitam estrume parecendo que estão fazendo o bem. Uma falácia, ou melhor, vaidade, nada mais do que vaidade. Aprendi que existe uma enorme diferença entre escrever bem e escrever mal. Mas há uma diferença ainda maior entre escrever bem e escrever uma obra-prima. Sou um escritor abstrato e intimista, caro leitor. O que tenho escrito? Busco a palavra viva. O homem Antonio não é importante, mas a palavra levita sob fábulas. Isso seria possível? Basta de filosofia. Tempo de angústia, o nosso. Que eu me perpetue carne e palavra. Não vejo a paisagem no entardecer, apenas me identifico com cantos de passarinhos. Posso estar acordando ou adormecido, sonhando que estou acordado. Não sinto falta de medalhas, palanques, oferendas. Eu sonho, então sou carne trêmula. Eu sonho que escrevo uma crônica para alguém que espera. Espera o quê? Não sei a resposta, mas continuo escrevendo. Por fim, converso com o Anjo da Guarda. Livrai-me do fascismo esquerdista, dos guetos homossexuais, da dor, da inveja alheia, da xenofobia, da verdade absoluta. Ignoro a pretensão imortal e imoral dos mortais. Experimento o mel do melhor, recordando uma infância no quintal florido da bisavó Silvina.
As lembranças se perdem na memória, sufocadas por uma realidade de injustiças, brutalidades e mesquinharias. Do jardim, só o vestígio de uma flor ou outra, e geralmente sem perfume, crias de laboratório. Vivo as dificuldades de todos nós e trabalho para pagar contas de inutilidades. A classe política, de olho nas urnas, organiza conspirações para a manutenção do poder. Velhos dinossauros vendem virtudes e sagacidade, falando de democracia sem me convencer. Realmente a política é uma guerra, matando principalmente gente humilde. Sem um jardim para ser feliz, desconfio que não há mais flores verdadeiras. Estamos em uma época do sintético, do artifício, do estético fake que ostenta. Veja, caro leitor, o caso da conexão Brasil-Itália de tráfico de crianças. Alucinante! Casais italianos adotando meninos nordestinos miseráveis por cinco mil dólares. Triplicam esse valor com a venda de seus órgãos no exterior, enquanto juízes e advogados brasileiros enchem o bolso sem remorsos. São tempos insensíveis. Ainda assim, pretendo viver muitas décadas driblando a maldade e a amargura, agarrando-me à lucidez e à ternura. Mas o que fazer com a falta que me faz o jardim mágico da distante infância? Bisavó Silvina, socorra-me!
Uma
viagem intelectual incômoda. Incansável, não me satisfaço. Meus músculos tremem
com a leitura de livros esgotados encontrados em sebos. Em Salvador, na rua
Chile, comprei um grosso volume, baratíssimo, de discursos de ditadores. Iniciando
a leitura, rabisquei impressões perversas em suas páginas, sentindo o sopro de
um vento gélido no coração. Sou um witty, como os norte-americanos
definem alguém com a rara capacidade de ser, enfim, maravilhosamente malvado
com as palavras. O grande alvo do livro é o canalha Fidel Castro, que tem mais
de 40 anos de poder ditatorial na ilha de Cuba. Lembrei de uma visita sua à
Bahia, recebido por Antônio Carlos Magalhães, dos seus elogios à nossa
culinária, “a melhor do mundo”. Com o uniforme verde-oliva, parecia sair de um
combate na Baía dos Porcos, simbolizando o malévolo revolucionário. É
um mito cultivado pelo marxismo-leninismo, intelectuais mal-intencionados e uma
infinidade de idiotas.
Passei
um mês em Cuba, em 1999, fazendo uma longa matéria para uma revista portuguesa
de turismo. Desfilando de táxi no passeio marítimo de Havana, o Malecón, me
assustei com os velhos e imponentes casarões coloniais em ruínas. A bela cidade
celebrada em filmes e comerciais publicitários parecia que acabara de sair de
uma guerra implacável. Era visível a miséria gritante de um povo alegre e de
sensibilidade artística. Diversas famílias dividiam a mesma moradia decadente,
desemprego e insatisfação generalizada. Um bonito jovem cubano, Vladimir, de
olhos verdes em pele morena, formado em medicina e trabalhando como carregador
de malas no hotel cinco estrelas que eu estava hospedado, implorou para que o
levasse a qualquer parte do mundo. “Faço o que você quiser, serei seu escravo”,
disse-me. Em Cuba, a política educacional e de saúde é boa, funciona
perfeitamente, mas a falta de liberdade de expressão é nefasta. Em Varadero,
trancado em um luxuoso hotel canadense, enquanto o furacão Irene nos ameaçava, assistia
tevê, entediado e bebendo mojitos, analisando o longo
discurso demagogo do ditador Fidel na telinha. Cuba não é a melhor das vidas.
Muitas
vezes o poder sobrevive graças a uma espécie de ritual horrendo. A imortalidade
parece ser a pretensão daqueles que se julgam possuidores de força superior, de
Napoleão a Adolf Hitler, passando pelos coronéis nordestinos. São portadores de
cóleras que o tempo faz irrisórias. Suas ações ocupam o centro de nossas
preocupações, sem que eles se importem com a reprovação de julgamentos morais.
É difícil conviver com essa escória. Não respeitam ninguém. O encanto de
Fidel Castro é fruto de um carisma usado para fins de manipulação, algo parecido com o
que fazem certos líderes religiosos: manipulam, roubam, prometem o Reino dos
Céus. São insaciáveis. No entanto, as máscaras terminam por cair, como
aconteceu com Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón, Idi Amin Dada e Ferdinando
Marcos. O tempo não perdoa. Em meio ao terror, corrupção e escândalos, há
sempre a redescoberta do sentido das palavras solidariedade, liberdade e
igualdade.
O
retrógrado camarada Fidel talvez não seja o único diabo mor vivo. Supostos
democratas, como George W. Bush, nos EUA; José Maria Aznar, Espanha; ou
Silvio Berlusconi, Itália; entre outros, são também vermes ocidentais. Eles
invadem países fragilizados, exploram e oprimem em nome da democracia. No
Brasil, as manifestações pelo impeachment do ex-presidente Collor de Mello, em
1992, trouxeram o sonho de igualdade social, e o natural seria não votar nunca mais
em partidos repulsivos como o PT, não acreditar em telejornais manipulados ou na
publicidade política cujo sentido é melhor ignorar. São absurdos o cinismo, as
más intenções e a mediocridade de muitos políticos. Acredito no ideal de um
país melhor, consciente do nosso papel como cidadãos e sabendo que podemos
fazer história. Precisamos de uma Perestroika que ponha a nu o fisiologismo da
máquina estatal, os carcomidos privilégios do funcionalismo público ineficiente,
a articulação política resultando em corrupção, contravenção, criminalidade,
tráfico de drogas e miséria num cotidiano de erros. Assim, veríamos a face real
da República das Bananas: milhões de mortos e subnutridos por arrocho salarial,
ignorância e desemprego. Milhões de esperanças e desejos sem-teto. Assim, tu;
assim, todos nós.
03
A ILUSÃO VIAJA de TREM
Para onde vão os trens, meu pai? Para Mahal,Tami,
para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria:
também para lugar nenhum, meu filho, tu podes ir
e ainda que se mova o trem não te moves de ti.
HILDA HILST
(1930 – 2004. Jaú / São Paulo)
“Qadós” (1973)
Para onde vão os trens, meu pai? Para Mahal,Tami,
para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria:
também para lugar nenhum, meu filho, tu podes ir
e ainda que se mova o trem não te moves de ti.
HILDA HILST
(1930 – 2004. Jaú / São Paulo)
“Qadós” (1973)
Tomei o trem em direção a Fez, pretendendo visitar Rachid Bendai, um escritor proprietário de uma loja de alumínios. Conheci o simpático beri-béri anos antes, ao perder-me no bairro judeu em busca da fonte Najjarine, e nunca mais deixamos de trocar cartas fraternas, quase surrealistas na sua mistura de espanhol, francês e português. Fez, uma das cidades mais lúdicas que conheci nos muitos anos de viajante, não tem nada do glamour afetado da telenovela “O Clone”. É espiritual, simplória, perdida no tempo. No comboio, instalei-me em uma cabine espaçosa, decadente, resquício da luxúria abusada dos colonizadores franceses. Do corredor, surgiram cabeças, olhos, animais, policiais sebosos, traficantes de haxixe, uma balbúrdia. Como a viagem seria longa, decidi rabiscar considerações poéticas encomendadas por um suplemento literário argentino. Sendo eu mesmo poeta, percebi que não podia escrever tal artigo didático, afinal há inúmeras formas de trabalhar versos, e cada qual usa aquela que se harmoniza com a sua sensibilidade, escrevendo da maneira que julgar mais densa. Pensava numa saída, quando um homenzinho asqueroso se sentou na poltrona em frente.
O sujeito apresentou-se, em espanhol, e, depois de um olhar ambíguo, contou sua história. Se revelou um marroquino que vivia na Andaluzia. Estava de visita para o casamento de um primo carnal, supostamente seu melhor amigo. Três dias de festa, os homens numa casa e as mulheres noutra. Três dias de comilança, dança, canto, haxixe. Você é meu convidado, afirmou. Não respondi, percebendo os sinais do mau-olhado. Fechando os olhos, fingi um sono improvável, concentrando-me no barulho das rodas nos velhos trilhos. Na primeira vez que tomei um trem, dos cafundós da Galícia a Lisboa, senti um prazer vivíssimo, uma energia ardente subindo por todo o corpo. Os vagões lotados de barulhentos pracinhas cantando e falando alto, como em um antigo musical de Hollywood. Não era um trem levando milhares de judeus para os fornos crematórios na infame Segunda Guerra Mundial, tampouco o que esmagou a beleza insatisfeita da heroína Anna Karenina. Seria mais fácil encontrar a cantora Sugar Kane de Marilyn Monroe atravessando os corredores e provocando assobios com o seu rebolado adorável.
Sempre gostei de filmes passados em trens, como os de Buñuel, Lumet, Chéreau, Hitchcock com o pacto dúbio entre os protagonistas. Abri os olhos e Hadj Mohamed – sim, esse era o nome do infeliz – tinha o meu livro de Tahar Ben Jelloun nas mãos. Pedi o livro de volta, revelando de supetão o idioma português. Devolveu o livro, jurando amor eterno pelo futebol brasileiro. Não gosto de futebol, escapa-me algum tédio, é uma paixão que não compreendo. Não me animo nem com as Copas e suas bandeiras penduradas em janelas de prédios e agitadas por meninos que nem sabem ler ou escrever. Costumo resmungar entediado contra esse patriotismo fajuto. Sei que é tempo de bandeiras, de solidariedade. Tenho às vezes curiosidade de saber onde vão parar as bandeiras e as camisetas verde-amarelas. São usadas nas praias, shopping-centers e condenadas a pano de chão? Não me interesso por futebol, deixei claro para o estranho. O malandro Mohamed continuou falando sem parar, exaltando a beleza da sua terra e contando sobre artistas europeus que passam longas temporada nela.
Uma fala incansável, lenta, talvez hipnótica, sempre repetindo “Você vai gostar da festa do meu primo”. Tenho conhecidos à minha espera em Fez, rebatia, nunca falando seu nome. Nomeá-lo seria respeitá-lo. A tal celebração matrimonial aconteceria numa cidadezinha, Asilah, no início do trajeto pretendido até Fez. Ele desenhava verbalmente a magia do lugar, as praias exuberantes, o oásis de palmeiras e laranjeiras. Havia lido alguma coisa sobre a branca Asilah, mas repetia assediado por uma leve lassidão: “Muito grato, irei a Fez”. O sol torrava inclemente o deserto visto através da janela. Surgiam ilhas verdes com soberanas palmeiras. Representantes da lei examinaram meu passaporte, perguntando o que fazia no Marrocos. Sou jornalista, vim visitar amigos em Fez e depois entrevistar o escritor espanhol Juan Goytysolo em Marrakech. Eles me deixaram em paz, mas os olhos da bizarra criatura brilharam. Não pense que tenho dinheiro, não sou um jornalista famoso. Sou um duro, o meu país é tão pobre como o seu. Por isso viajo neste trem decadente, exagerei. Mohamed calou-se por minutos, estudando a situação e planejando o reforço da vigarice.
Aproveitei seu silêncio repentino para recordar uma viagem de trem pelos Alpes Suíços, no Bernina Express, percorrendo 145 km. Uma das viagens de trem mais impressionantes do meu histórico aventureiro. Em seu trajeto, passei por 102 pontes, túneis, precipícios, belos vales, névoas, densas florestas, lagos e no ponto mais alto da estrada de ferro, o imponente mundo das montanhas, com seus picos cobertos de neves. Partimos de Chur, uma das mais antigas cidades da Suíça, com cerca de cinco mil anos. Como fui feliz! Imitando Hercule Poirot em “Assassinato no Expresso do Oriente”, examinei minuciosamente cada passageiro. Um sonho realizado, pois nunca compreendi o extermínio dos trens no Brasil, um país com distâncias tão longínquas. Quando criança, atravessando os trilhos abandonados da cidade natal, perguntava a babá onde o trem se escondia, e ela respondia: “Partiu para o infinito de Deus e não conseguiu encontrar o caminho de volta”. Eu acreditava piamente. Na região de Graubunden, conhecida pelos vinhos de excelente qualidade, o Bernina Express parou por 15 minutos. Ao seu lado, o Glacier Express, vindo de Zermatt em direção a St. Moritz. Tirei uma fotografia do jovem cobrador e, sorridente, ele me convidou para tomar chocolate. Segui o louro de olhos azuis até um dos escritórios da estação, observando as paredes decoradas por cartazes turísticos dos Alpes Suíços. Ele serviu o chocolate, sentou-se numa cadeira rústica do outro lado da sala, abriu as pernas e a braguilha, e masturbou-se, sem dizer uma palavra. Tomei o chocolate quente, assistindo ao espetáculo inusitado. O sinal de partida foi anunciado, agradeci a oferta e voltei ao Bernina. Horas depois, ao encontrá-lo, ele fez de conta que nunca tinha me visto. Achei hilário, outra história para o meu diário.
Mohamed me despertou das lúbricas recordações, puxando-me pelo braço, avisando que havíamos chegado, enquanto retirava a minha mochila do bagageiro. Tomei-a de volta e, sonolento, segui para uma das saídas, ao lado da cabine. As descer, avistei uma estação semi abandonada, um dromedário coberto de moscas, arriado no chão, e um táxi negro dos anos 50. O trem partiu me deixando na solidão do deserto. O vigarista atrás de mim. Onde estou? Asilah, respondeu com um sorriso cínico. Não estamos em Asilah. Não sou tolo. E o mar? Logo ali, vamos tomar um táxi – disse, apontando as areias escaldantes, sem nenhum sinal de edificações ou do mar. Vou para Fez, afirmei decidido, entrando no prédio. O próximo trem passaria às 5 da manhã. Em pânico, vivi uma noite assustadora. Muitas horas sem perder a mochila de vista, recusando ofertas de hospedagem, repetindo que não tinha dinheiro. A pequena cidade era pobre e suja, com apenas uma minúscula Medina. Não encontrei turistas, consulados ou hotéis. Depois de horas tendo Hadj Mohamed como sombra, consegui escapar assim que ele entrou em um banho público para falar com um parente.
Corri como um doido pelas ruas labirínticas, escondendo-me no Jardim das Bruxas, à saída da cidade. Não preguei os olhos, atento aos ruídos noturnos. A memória reavivava casos de desaparecidos de uma hora para outra no Marrocos e nunca mais encontrados. Faltando pouco para o amanhecer caminhei até a estação, pegando carona no caminho com um carroceiro muito idoso. Ainda filosofei sobre a velhice, tratando-a como um mal-entendido entre o corpo e o espírito, mas o coração pulsava forte, temendo a volta do diabólico grilo falante. Quando o trem surgiu, teve o efeito de um milagre. Chorando, ajoelhei-me na areia áspera e agradeci a Maomé, teria mais tempo para viver entre pessoas cheias de importância, bem instaladas na sua mediocridade. Voltaria ao Brasil. Antes, eu e a ilusão continuaríamos de trem para Fez, e a seguir, Marrakech.