dezembro 14, 2011

.................................................................... COBRA de DUAS CABEÇAS




 
 
“Cobra de Duas Cabeças”, de Herculano Assis, apresenta poesia e prosa inéditas de Sosígenes Costa (1901 - 1968. Belmonte / Bahia), considerado um dos maiores poetas baianos. Segundo Jorge de Souza Araújo, a obra “resulta de amorosa pesquisa e justificado penhor, caros à memória de um poeta de excelência, aqui observado como pensador e crítico notabilizado por uma verrina que de tão surpreendente constitui-se mais ainda afeta à literatura baiana e brasileira.”. Sosígenes estreou na imprensa em 1928, no “Diário da Tarde”, de Ilhéus, e no mesmo ano tornou-se membro da Academia dos Rebeldes, com Jorge Amado, entre outros. Na época, trabalhava como professor primário. Em 1959 publicou “Obra Poética”, recebendo o Prêmio Jabuti. Em 1979 saiu “Iararana”. Sobre a sua poesia diz o crítico literário José Paulo Paes, quando ainda andava acesa a campanha dos modernistas contra o soneto em prol da institucionalização do verso livre, entretinha-se o poeta a escrever seus 'Sonetos Pavônicos', todos rigorosamente rimados e metrificados, nos quais são perceptíveis traços parnasianos e, sobretudo, simbolistas, ainda que tais sonetos nada tenham de passadistas, caracterizando-se antes por uma modernidade que se patenteia, como a de Quintana, na exploração criativa das possibilidades expressionais dessa forma fixa, então esclerosada pela prática mecânica e abusiva..

CHUVA de OURO

As begônias estão chovendo ouro,
suspendidas dos galhos da oiticica.
O chão, de pólen, vai ficando louro
e o bosque inteiro redourado fica.

Dir-se-á que se dilui todo um tesouro.
Nunca a floresta amanheceu tão rica.
As begônias estão chovendo ouro,
penduradas nos galhos da oiticica.

Bando de abelhas através do pólen
zinindo num brilhante fervedouro,
as curvas asas transparentes bolem.

E, enquanto giram num bailado belo,
as begônias estão chovendo ouro.
Formosa apoteose do amarelo!

SOSÍGENES COSTA
(1928)


dezembro 10, 2011

................................. O LEITOR AGRADECE, RAMIRO AQUINO


 
 
Antônio Lopes, Ramiro Aquino e Kleber Torres são referências jornalísticas no sul da Bahia. Eles cumprem com habilidade o papel social do jornalista: dominam o idioma, bem informados, éticos. Não perseguem publicamente seus desafetos, o leitor para eles deve estar em primeiro lugar. Esta semana, na coluna “Aquino na Squina, Ramiro publicou nota pertinente, que merece a atenção de leitores e principalmente de jornalistas: “Um movimento em favor da boa notícia é o que estamos propondo à imprensa regional e faremos o possível para dar a nossa contribuição. As más notícias, algumas necessárias, não podem se sobrepor às boas. (...) Notícia boa existe. É só procurar”. Foi uma puxada de orelha, num estilo classudo, como habitual em sua escrita e comportamento. O leitor agradece, mestre Ramiro. Eu deixei de ler com constância alguns jornais justamente pelo destaque excessivo de notícias descartáveis, pingando sangue, em grandes manchetes. Muitos leitores são seduzidos por tais notícias, mas é preciso atraí-los para um caminho menos selvagem. Nos últimos meses, enviei notícias para a mídia local sobre minha atuação cultural no Rio Grande do Norte. Nem uma nota. Não é uma questão de egocentrismo, os feitos qualitativos de um conterrâneo merecem divulgação. 

A imparcialidade jornalística é impossível, e cada um escreve à sua maneira, baseado no que aprendeu e imitou e admirou. Não merece consideração o jornalista que não informa honestamente, sendo apenas a fonte de informações escolhidas com fins partidários ou mercenários. O jornalismo de outros tempos, de vocação ou destino, tornou-se uma carreira com parvas vantagens. Em vez de conhecer e dar a conhecer o mundo, profissionais de imprensa vivem à custa de magros privilégios: convites para jantares, bilhetes de shows, um belo vestido em troca de notas. Não parece mais ter importância ser bem informado.
Editores/chefes de redação deveriam refletir. Quem não publica tragédias sensacionalistas, também raramente incentiva a produção positiva dos itabunenses. Gravemente, pratica relações públicas e publicidade, servindo-se do jornal para esses fins e subestimando o olho vivo do leitor. Nota-se como colunistas perderam o fôlego, transformando-se em vitrine de anúncios, sem opinião de caráter pessoal ou destaque para agentes culturais. Não sou puritano, concordo que todos devem ganhar o suado dinheirinho, mas o leitor vem sendo desprezado, predominando a ressonância comercial. A nota de Ramiro Aquino veio na hora certa, revelando as dificuldades da imprensa  para lidar com o admirável mundo novo da comunicação. Ficará na história grapiúna.

dezembro 09, 2011

............................................................................... O LIVRO NEGRO


 
 
Uma lista preparada pela SS nazista, nos preparativos da Operação Leão Marinho, que planejava a invasão da Grã-Bretanha em 1940, após a derrota da França na II Guerra Mundial, ficou conhecida como LIVRO NEGRO. Esta lista, descoberta após a guerra, continha o nome de centenas de personalidades da vida britânica que deveriam ser presas e executadas pelos integrantes dos Einsatzgruppen, os esquadrões da morte da SS e foi compilada por um oficial nazista, Walter Schellenberg. Muitos dos nomes da lista já tinham morrido quando ela foi elaborada, como por exemplo Sigmund Freud, mostrando um certo desconhecimento da realidade da sociedade britânica. Das 20.000 cópias iniciais do livro, apenas duas existem hoje e uma delas se encontra no Imperial War Museum, em Londres. Alguns dos notáveis integrantes da lista: Winston Churchill – por ser um líder anti-nazista; Neville Chamberlain - ex-líder britânico; o dramaturgo George Bernard Shaw - por ridicularizar os nazistas; o ator Noel Coward – por ser homossexual; os escritores H.G. Wells – por ser socialista – e Virginia Woolf – por ser bissexual; Sigmund Freud – por ser judeu; e Robert Baden-Powell - por ser fundador e líder do escotismo (o escotismo era visto pelos nazistas como uma organização de espionagem). Depois da guerra, uma das integrantes do LIVRO NEGRO, a feminista e escritora Rebecca West, ao tomar conhecimento de sua existência e dos nomes nela contidos, enviou um telegrama ao seu amigo Noel Coward que dizia: “Querido, veja os nomes ao lado de quem deveríamos ter morrido. Melhor companhia, impossível!”.

dezembro 05, 2011

.............................................................. DEU GULLAR no JABUTI

ferreira gullar
 
 
O Prêmio Jabuti funciona como vitrine para o fortalecimento do setor editorial brasileiro. Na sua mais recente edição, a 53ª, em cerimônia realizada em São Paulo e promovida pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), o poeta maranhense FERREIRA GULLAR e o jornalista paranaense Laurentino Gomes receberam as principais condecorações. A obra “Em Alguma Parte Alguma sagrou-se como Livro do Ano Ficção, enquanto “1822 foi o grande vencedor da categoria Livro do Ano Não Ficção. O livro de Gullar foi escolhido entre as obras premiadas nas categorias “Romance”, “Contos e Crônicas”, “Poesia”, “Infantil” e “Juvenil”. Durante a cerimônia, os vencedores das 29 categorias que compõem o prêmio, assim como os segundos e terceiros colocados em cada uma delas, também receberam estatuetas. Laurentino agradeceu aos colegas empenhados na elaboração de narrativas históricas: “É com senso de missão de contribuir para a educação e para a transmissão de conhecimento que recebo esse prêmio. Nesse ambiente de construção de conhecimento, a história é chamada para essa missão. Faço uma homenagem a todos os historiadores brasileiros, que são a fonte em que bebo”. Gullar optou por um discurso breve e repleo de significado: “Não sei se poesia é literatura. Mas a gente faz poesia porque a vida não basta.” Além de poeta, ele é crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista, ensaísta e um dos fundadores do neoconcretismo. Autor dos clássicos “Dentro da Noite Veloz” (1975) e “Poema Sujo” (1976), recebeu o prestigiado Prêmio Camões , em 2010, e um primeiro Jabuti em 2007, por “Resmungos”, considerado também o Melhor Livro do Ano Ficção.  Veja a lista dos principais vencedores:

Livro do Ano Ficção 
Em ALGUMA PARTE ALGUMA
de Ferreira Gullar
(José Olympio)

Livro do Ano Não Ficção
1822
de Laurentino Gomes
(Nova Fronteira)

Teoria e Crítica Literária
CÂMARA CASCUDO e MÁRIO de ANDRADE – CARTAS, 1924-1944 
organizador Marcos Antonio de Moraes
(Editora Global)

Artes 
Os SATYROS
de Germano Pereira
(Editora Imprensa Oficial)
 
 Tradução 
O LIVRO  de DEDE KORKUT
tradutor Marco Syrayama  de Pinto
(Editora Globo)

Ilustração 
O CORVO
ilustrador Manu Maltez
(Editora Scipione)
 
Infantil 
OBAX
de André Neves
(Brinque-Book)

novembro 30, 2011

............................................................................ LÍNGUA LUSÓFONA

pedro rosa mendes e antonio nahud
 
 
A Prefeitura de Natal (RN) e a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) organizaram, pelo segundo ano consecutivo, o Encontro de Escritores de Língua Portuguesa (EELP), em Natal, de 23 a 25 de Novembro. Estiveram presentes 30 escritores de países como Cabo Verde, Macau, Portugal, Timor, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Brasil. A abertura aconteceu com o rapper Gabriel O Pensador, que falou sobre “Poesia Escrita para a Música”. Já no encerramento do II EELP, dia 25, às 15h, foi a minha vez de traduzir o que penso em se tratando de “Literatura de Viagens”, refletindo sobre crônicas e descrições de viagens de ontem e de hoje, por meio dos livros. A viagem entendida como itinerário turístico, literário e interior, que contribui para um conhecimento da nossa identidade, da relatividade dos quadros mentais e culturais, logo de um melhor conhecimento do mundo.  
 
Ao meu lado na mesa, os escritores Manuel Rui (Angola), Márcio de Lima Dantas (Brasil), Rui Lourido (Portugal), Luíza Nóbrega (Brasil), Jin Guo Ping (Macau), Wu Zhiliang (Macau), Mário Máximo (Portugal) e Pedro Rosa Mendes (Portugal). O evento aconteceu na Academia Norte-rio-grandense de Letras. Segundo o presidente da Capitania das Artes (órgão de cultura da Prefeitura de Natal), Roberto Lima, Natal teve a oportunidade de conhecer as diversas culturas do universo lusófono. “A diversidade vocabular lusófona é de uma riqueza invulgar e com certeza enriqueceu os nossos intelectuais e estudantes”, disse. A imprensa portuguesa presente, com destaque para a revista Visão, o Jornal de Letras e o Diário de Notícias.


novembro 15, 2011

...................................... O FABULOSO DESTINO de HILDA HILST



O sorriso enigmático de HILDA HILST (1930 - 2004. Jaú / São Paulo) interrogava e respondia. Um sorriso invulgar que me ocorre tão nítido, tão límpido, tendo como cenário os jardins exuberantes da Casa do Sol, um sítio a 11 quilômetros de Campinas. Eu costumava visitá-la nos finais de semanas dos primeiros anos dos 90. A poeta habitava aquele claustro desde 1966, abrindo mão da intenso convívio social para se dedicar exclusivamente à literatura. Tal mudança foi influenciada pela leitura de Carta a El Greco (1956), do escritor grego Nikos Kazantzakis, que defende o isolamento para se aprofundar na complexidade da escrita. A Casa do Sol é uma residência enigmática, de inspiração andaluza, com pátio interno central. Rodeando a construção, uma variedade de árvores. Entre elas, uma figueira centenária, a preferida da escritora. 

“Sou poeta”, confessei com pudor no nosso primeiro encontro. “Ser poeta não é fácil”, respondeu HILDA HILST rindo com extravagância. Desde então, nos tornamos íntimos. Enamorado por sua inteligência incomum e comportamento liberal, deixava-me embalar pela sua voz rouca de dicção perfeita lendo Ovídio, Petrarca, John Donne, Shakespeare, Jorge de Lima, Oscar Wilde e, por fim, Henri Michaux. À noite, víamos a telenovela do horário nobre global, acompanhados por um excitante uísque escocês e intermináveis gracejos de saudável loucura. Estive ao seu lado durante a feitura de “Do Desejo” (1992), numa movediça e fugaz satisfação. Nada esgotava o seu arsenal de palavras, num consciente delírio verbal que explodia todas as fronteiras do dizer.

A dramaticidade da Casa do Sol (foto ao lado) se confundia com prospecções filosóficas sobre o tempo, a morte, o amor, Deus. As paredes intensas, rosadas, manchadas e úmidas, respiravam a solidão compartilhada e a grandeza literária, protegendo o fabuloso destino de sua moradora, uma das protagonistas fundamentais da paisagem intelectual brasileira do século 20. Fotografei Hilda dezenas de vezes em sua sozinhez, registrando a anatomia de um corpo idoso, flácido, de rugas em tom acobreado. Onde a formosura da juventude lembrando Ingrid Bergman ou Jeanne Moreau? 

Avançada para a sua época, ela foi musa de artistas, poetas – Vinicius de Moraes se apaixonou por ela – e milionários. Uma mulher encantadora, livre, generosa, lúcida, sarcástica, queixosa, íntegra, culta, melancólica e apaixonada por cães. Embora tenha alcançado ampla notoriedade pessoal, mastigava o estigma de não se considerar popular, ambicionando ser lida, estudada, discutida. Numa estratégia escandalosa, chamou a atenção para a sua obra por meio de suposta adesão ao registro pornográfico. Filha de família rica do interior paulista, confessou-me episódios terríveis de sua trajetória em busca do inefável, passando por contínuos dissabores, afinal a sociedade burguesa exige o meio-termo, o disfarce, marginalizando quem milita contra a hipocrisia.

O deslumbre desconcertante do texto hilstiano mistura gêneros e linguagens. Babélico, refinado, irreverente, polifônico e múltiplo, numa busca literária mística. Resulta numa visão de angústia e, ao mesmo tempo, de êxtase. Com fervoroso amor pela originalidade, registra um intenso trabalho de linguagem e de musicalidade, um imaginário poético no qual questionamentos metafísicos se mesclam com fatos cotidianos. Sou leitor apaixonado de HILDA HILST,  e jamais me esquecerei dos momentos rutilantes que passamos juntos. 

Hildinha, em um dia infeliz, deixou de falar comigo por ciumadas, conspirações, calúnias, coisas tolas de parasitas. Sofri, mas desconfiava que tinha que ser assim, já havia acontecido com outros frequentadores da Casa do Sol. Ao morrer, não me espantei, pois a sua morte estava anunciada há décadas. Essa grande poeta morria a cada instante desde muito antes de conhecê-la. Portanto, apenas saiu do corpo ao encantamento, rumo ao enigma. Mudou-se para Marduk, o planeta reservado aos poetas, como acreditava. Mas o embevecimento diante da sua criação cresce à medida que as novas gerações percebem a transgressão da sua linguagem complexa, tentadora e relevante. Ave, poeta!

hilda e o namorado cássio reis, 
paris, 1957



novembro 13, 2011

..................... A FACA não CORTA o FOGO: HERBERTO HELDER




“a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão térmica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso”

“A Faca Não Corta o Fogo” (2008) vem interromper catorze anos de silêncio, no que diz respeito a publicação, por parte de HERBERTO HELDER, um dos poetas mais originais da poesia portuguesa contemporânea. Poeta discreto, que recusa entrevistas ou prêmios literários, fugindo da fama e chegando a invocar num raro depoimento: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”.

herberto helder

novembro 12, 2011

................................................................................... O CASTELO de RILKE


 
 
Majestosa edificação de grande estatura, cujas dimensões, estética e imponência despertam admiração, à beira do mar Adriático, quase inacessível, o Castelo de Duíno sobrevive ao esquecimento. O príncipe italiano Carlo Alessandro e o seu mordomo argentino José Gustavo são os mais recentes moradores desse monumento artístico e cultural imortalizado nos versos de Rainer Maria Rilke (1875 - 1926. Praga / Tchéquia), que viveu nele de 1910 a 1912, então propriedade de sua amiga e mecenas, a princesa Marie von Thurn und Táxis. Deslumbrado com “As Elegias de Duíno” (1912 - 1923), obra em que o poeta austríaco revela a influência do pensamento filosófico de Sören Kierkegaard, visitei o castelo-personagem nos primeiros anos deste novo milênio. Fabuloso, mesmo sem o açoite de ondas em fúria ou fantasmas de contos góticos. Ao seu lado, as ruínas de outro castelo, tal e qual eu guardava na imaginação. Portanto, há dois castelos em Duíno. Do mais velho se comenta dos cultos lunares ritualizados pelos druídas, fala-se também que teve como hóspede no século 14 o autor de “A Divina Comédia” (1304 - 1321), Dante Alighieri, considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, definido como “Il sommo poeta” (O poeta supremo).

Situado a uns vinte quilômetros da cidade italiana de Trieste, o Castelo de Duíno tem abriga um museu que conserva a memória dos tempos de glória. De uma antiga torre, notei o caminho que leva da fortaleza a praia de Sistiana, trajeto que percorrido diariamente por Rainer Maria Rilke durante sua longa estadia. Poeta hermético cujos poemas traduzem a angústia de um ser inadaptado, Rilke acumulava às suas circunstâncias vitais o fato de ser homossexual em uma sociedade repressiva. Em Duíno escreveu os poemas que compõem a obra “A Vida de Maria” (1913), os quais o compositor alemão Paul Hindemith musicaria. Trabalhando com os limites sensoriais da existência, a sua poesia traduz o fundamento da busca de ser. Para Rilke, a poesia não podia ser senão mística, no sentido em que a existência humana só poderia encontrar a sua salvação através da linguagem poética, aspirando ao plano da totalidade, ou seja, a de uma dizibilidade absoluta e redentora. As Elegias apresentam a morte como uma transformação da vida em uma realidade interior, gerando um todo unificado, uma experiência cósmica. Ainda hoje me lembro do impacto da primeira leitura desses versos: “Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o anjo é terrível”.

manuscrito de elegias de duíno
Propriedade de família nobre, muito antiga, de origem Bergamasco, os Torre e Tasso, o Castelo de Duíno se aproxima dos mil anos de existência, destacando-se durante séculos com uma intensa  alegoria social, artística e cultural ao receber Marcel Proust, Valéry, Einstein, a atriz Eleonora Duse e outras gigantes das artes. Durante a Primeira Guerra Mundial, bombardeado e arruinado, posteriormente renasceu das cinzas. Atualmente, além de receber literárias peregrinações, é também um negócio turístico-empresarial alugado para seminários ou celebrações de casamentos. Os visitantes se encantam com “Rocca Degli Usignoli”, um espetáculo de luzes e sons. Não é um castelo de contos-de-fadas, mas se tornou imortal por sua história, pelos versos de Rilke e pela visão privilegiada do Adriático.
 
 
 

rainer maria rilke

novembro 10, 2011

.............................................. Em LOUVOR da NOIVA do SOL

dorian gray caldas e antonio nahud

 
Quando me deparei com Natal fui enfeitiçado por uma ternura inexplicável, atordoante, que não me largou mais, num caso de amor à primeira vista. Noutras paragens, sentia uma lírica saudade da essência potiguar. Não conseguia esquecer os efeitos fugazes de luz e movimento, a despreocupação com contornos, a aversão aos tons sombrios e os enquadramentos originais, tudo isso envolto numa aura de alegria de viver. Na Vila de Ponta Negra, onde morei inicialmente, diante daquela imensidão azul do Oceano Atlântico, confirmei a gamação por esta terra. Para conhecê-la realmente, passei a andar sem destino pelas ruas do Centro Histórico, Ribeira e Petrópolis, Alecrim e Tirol, descobrindo sobrados de outros tempos, sebos, igrejas, mercados populares, botecos, becos e ruelas. Pouco a pouco montei um quebra-cabeça urbano, concordando com o poeta Bosco Lopes: “As muitas outras cidades que me perdoem, mas Natal é fundamental”. Nesta cidade, meu espírito foi tomado pela tranqüilidade, abençoado pelos braços suaves do mar, as dunas brancas, o moroso rio Potengi ao crepúsculo, os dias ensolarados, os cajueiros frondosos, a gente acolhedora e cativante, as luas incendiadas e o vento permanente. Entre perplexo e alumbrado, conheci poetas e prosadores arrojados, líricos e trágicos. A “Noiva do Sol” do folclorista Luís da Câmara Cascudo - o seu totem, ícone incontestável, historiador oficial com mais de cem livros publicados - me seduziu. No entanto, meu guia, meu mestre, foi – e continua sendo – Diógenes da Cunha Lima, um poeta afiado, um amigo constante. Aprendi com o Professor Diógenes que “há em Natal um sentimento de que qualquer coisa de boa está para acontecer”. A sua sabedoria me aproximou da poesia de Ferreira Itajubá, Myriam Coeli e Luís Carlos Guimarães; dos desenhos de Newton Navarro e das cores sóbrias de Dorian Gray Caldas; da prosa de Sanderson Negreiros, Oswaldo Lamartine e Nei Leandro de Castro; do jornalismo de Carlos Peixoto, Cassiano Arruda Câmara, Marcos Aurélio de Sá e Vicente Serejo. 

Entre o rio e o mar, mistérios e sortilégios, piso o mesmo chão de piratas franceses, aventureiros holandeses, enfadonhos lusitanos e militares norte-americanos ávidos por farra e miscigenação. Cidade de tipos pitorescos, de extravagantes, de pavões impressionistas, de liturgia mundana, de um curioso e dinâmico colunismo social (um segmento desvalorizado ou em extinção noutras capitais). Terra de geografia amável; de oiticicas, craibeiras, juazeiros, acácias, paus d`arcos, sucupiras em flor e até um baobá; do Solar Bela Vista, do Forte dos Reis Magos, do Teatro Alberto Maranhão e da Coluna Capitolina Del Pretti; da permanência e vigor de artistas que retratam em seu trabalho sua cidade interior, cenográfica, inventada e verdadeira, única. Natal é hoje uma das capitais que mais crescem e se modernizam no Brasil, talvez a menos violenta, com uma população de mais de 800 mil habitantes e uma significativa qualidade de vida. Cidade sem tempestades, clara e serena, aberta e cordial, por vezes provinciana. A “esquina do continente” que recebeu da NASA o título de detentora do ar mais puro e renovável do continente sul-americano. É também um dos quatro pontos mais estratégicos do mundo, ao lado de Gibraltar, Suez e Bósforo. Fundada num dia de Natal, em 1599, o nome do município tem origem no latim “natale” e, obviamente, na data de sua fundação. É o meu porto, uma paisagem adotada por seu calor humano, a certeza de bons amigos, o seu sol majestoso e sua gente. Amo Natal. Muito obrigado, bem-amada, pela dádiva deste retorno, pela doçura acolhedora e a amorosa intimidade.

novembro 09, 2011

......................................... MELANCOLIA no REINO da BAVIERA



 
Bizarro, estranho e hipersensível, o rei Ludwig II da Baviera (1845 – 1886. Munique / Alemanha) governou entre devaneios de soberania, derivada de um direito divino e das pressões de uma monarquia moderna. Entusiasta da arquitetura, da sua época data o Palácio de Linderhof, o Palácio de Herrenchiemsee - cópia do Palácio de Versalhes - e o Castelo de Neuschwanstein, hoje um dos principais pontos turísticos da Alemanha e inspiração do palácio da “Cinderela” de Walt Disney. Conheço todos eles, são maravilhosos! Erguidos na magnífica paisagem da Alta Baviera, decorados por horizontes delirantes obtidos por meio de destrezas teatrais, com florestas pintadas - impérios de fábulas onde as folhas das árvores são pedras preciosas. Como um autocrata de tempos antigos, Ludwig criou montanhas e geleiras cenográficas, além de estepes e desertos. À noite, sob a lua, em um lago artificial iluminado por centenas de velas, deslizavam cisnes negros e barcos sofisticados com rapazes seminus, enquanto a orquestra, composta por músicos escolhidos a dedo, embriagava de melodias a alma do louco real. Esse jovem belo ansiava o sonho impossível de um mundo de sagrada formosura. Nascido em Nymphenburg, Alemanha, Ludwig II, príncipe da Baviera e depois rei da Baviera, Duque de Zweibrücken e Conde Palatino do Reno, não se interessava por questões políticas, levando uma existência de reclusão, ao mesmo tempo em que patrocinava espetaculares obras musicais, teatrais e arquitetônicas. Logo que ascendeu ao trono, tornou-se patrono do extraordinário compositor Richard Wagner, chamando-o para morar em sua corte, pagando suas dívidas e lhe dando uma vida confortável, como bem merecia. 

Pressionado pelos ministros e demais políticos para se casar e dar um herdeiro ao trono, noivou a Duquesa Sophie Wittelsbach, mas o compromisso  se desmanchou rapidamente. Os seus diários revelam uma homossexualidade latente e mal resolvida, mesmo passando a maior parte do tempo em companhia masculina, numa intimidade erótica com o fidalgo Alfons Weber, o ator Josef Kains e o estribeiro-mor Richard Horning. Destronado em consequência da perturbação mental, de gastos excessivos e de alianças com políticos estrangeiros indesejáveis, terminou seus dias confinado no Castelo de Berger, próximo ao Lago Starnberger, no qual morreu afogado juntamente com o psiquiatra que o acompanhava. Sua morte misteriosa, aos 40 anos, nunca foi explicada. O italiano Luchino Visconti narrou sua história conturbada no deslumbrante “Ludwig – A Paixão de um Rei / Ludwig” (1972), com 247 minutos de duração e Helmut Berger no papel-título.


castelo de neuschwanstein


novembro 08, 2011

......................................................... Das TREVAS



 
A Peste Negra impregnou o meu imaginário ao assistir “O Sétimo Selo / Det Sjunde Inseglet” (1956), de Ingmar Bergman, e ler “A Peste / La Peste” (1947), de Albert Camus. Perturbado, tive uma série de pesadelos noites seguidas. Somente o Holocausto nazista – a perseguição e extermínio sistemático de cerca de seis milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial - me chocaria com tamanha intensidade. Essa epidemia matou 75 milhões de pessoas em todo o mundo, um terço da população do século 14. Durante esse período de trevas, a Igreja católica foi questionada, seitas e novas formas de pensamentos prosperaram. As minorias inocentes - leprosos e judeus  - foram perseguidas impiedosamente, queimadas vivas e acusadas de serem a causa da peste. Tudo se iniciou nos porões dos navios mercantes, que vinham da China, em 1348, trazendo milhares de ratos esfomeados e contaminados pela bactéria “Pasteurella Pestis. Eles encontraram nas sujas cidades europeias um ambiente favorável para a sua reprodução - os esgotos corriam a céu aberto e o lixo se acumulava nas ruas. As pulgas dos ratos transmitiram o bacilo da peste, expandindo a doença com resultados desastrosos. 

Após adquirir a bactéria, apareciam nos humanos gânglios azulados de pus e sangue nas axilas, virilhas ou pescoço. Em seguida, vômitos e febre alta. A morte era certa, não havia cura para a peste bubônica (apelidada na época de Peste Negra) e a medicina ainda engatinhava. Para piorar a situação, a Igreja católica se opunha ao desenvolvimento científico e farmacológico. Quem tentava desenvolver remédios era perseguido e condenado à fogueiras como bruxo.  A doença só foi realmente estudada cientificamente e identificada alguns séculos depois. Relatos mostram que faltavam caixões e espaços nos cemitérios para enterrar os defuntos. Os mais pobres eram jogados em valas comuns, enrolados em trapos, ou abandonados, pela própria família, nas florestas. Suas residências eram saqueadas ou queimadas. Essa epidemia cruzou as fronteiras com facilidade, somente controlada com a adoção de medidas higiênicas nas cidades medievais. Calcula-se que, nas áreas mais afetadas da Europa, mais da metade da população pereceu.