“Pode estar tranqüilo. Ficou algo limpo em você.
Em uma só vida não pode sujar-se completamente”
(Henri Michaux, Poteaux d’Angle,
1981)
Ilustrações:
HENRI MICHAUX
Pode-se
torcer o nariz frente ao HENRI MICHAUX
desenhista e pintor, pode-se mesmo ter sérias reservas diante do experimentador
de drogas, mas jamais negar o interesse que apresenta sua poética secreta e
solitária à procura de um sentido. Poesia complexa e espiritual, busca o conhecimento
de si mesmo, a devoração interior. Sua criatividade verbal é um exercício
visionário em que as palavras, desligadas de seu uso comum, se empregam para
transmitir mais um impulso que um significado, numa imaginação poética fortalecida
pela observação da realidade, captando a zona sombria e misteriosa do ser
humano. Não há uma filiação literária, sua poética vibra em um universo
peculiar indefinido, catarse que revela paragens inóspitas do espírito e do
mundo:
“Às
vezes, não somente ela, mas eu mesmo, com um corpo fluido e duro que sinto em
mim, bem diferente do meu, infinitamente mais móvel, flexível e inatacável,
lanço-me também com impetuosidade e sem parar contra portas e paredes. Adoro
lançar-me de frente contra o armário de espelho. Bato, bato, bato, arrombo, experimento
satisfações sobre-humanas, sem esforço vou além do furor e do ímpeto dos
grandes carnívoros e das aves de rapina, sinto um arrebatamento que excede
comparações. Mas, depois, pensando bem, muito me surpreende, e cada vez mais,
que, depois de tantas arremetidas, não haja no armário de espelho uma fenda e
nem mesmo um rangido na madeira”.
Poeta
francês de origem belga, HENRI MICHAUX
nasceu em Namur, em 24 de maio de 1899, numa família burguesa de juristas e
arquitetos. Nunca gostou do seu país, nem de sua gente, nem de sua paisagem.
Desde pequeno, sentia a realidade como algo distante e se envergonhava de tudo
ao seu redor, e então escrevia. Vivia no mundo como estrangeiro e pensava em se
tornar monge. Em 1920 abandonou os estudos de medicina para uma longa odisseia
como marinheiro, saindo de Boulogne-sur-Mer. Nesse mesmo ano, em Roterdã,
repete a experiência rumo a Buenos Aires e Rio de Janeiro. Aos 23 anos,
descobre a literatura com o sobressalto que lhe provoca a leitura de “Os Cantos
de Maldoror / Les Chants de Maldoror” (1868), do uruguaio Lautréamont (1846-1870).
Sua criação literária teria toques da misteriosa, subterrânea e simbolicamente
obscura obra de Lautréamont.
De
volta a Paris, em 1923, HENRI MICHAUX estuda literatura e depois volta a viajar até 1937 pela Ásia, África do Norte e
América do Sul, revelando uma tomada de consciência em relação ao mundo e às
coisas. A razão principal pela qual viaja é para expulsar do seu interior “a
sua pátria, os seus vínculos de qualquer classe”. Fugindo sempre, das terras
estrangeiras enviava poemas que definiu num dos seus livros como “cápsulas de
enxergar”. “Segundo dizem, na maioria das pessoas que olha uma paisagem se
forma uma cápsula que é a mediunidade entre a paisagem e o contemplador”,
escreveu. Seu primeiro livro, “Qui je Fus” (1927), revelou-o como escritor
original. Logo publicou o autobiográfico “Ecuador” (1929), um relato de viagem,
e “Une Barbare em Asie” (1933), traduzido para o espanhol por Jorge-Luis
Borges, que conheceu Michaux e considerou o texto “um jogo”. A seguir veio “Voyage
en Grande Garabagne” (1936), “Plume” (1938) e “Lointain Intérieur” (1938).
Visitando Montevidéu, Uruguai, em 1936, se apaixonou pela poeta Susana Soca,
que morreu jovem e era conhecida pela legendária beleza. Anos depois, em 1943, casaria-se
com uma mulher divorciada e tuberculosa, Marie-Louise Termet.
Ele
odiava as artes plásticas, mas em 1924 fixa residência em Paris e ao conhecer a
obra de Paul Klee, De Chirico, Max Jacob e outros surrealistas, muda de
opinião. Fascinado principalmente pela criação do suíço Klee, decidiu buscar um
meio de expressão visual. Em 1937, começou a desenhar e a pintar, expondo em
galerias e seguindo a mesma ideia da sua literatura: uma viagem através dele
mesmo. Sua técnica rápida e leve prefere a aquarela e a tempera ao óleo,
fundindo com formas gráficas que lhe permitem criar um universo poético
próprio. Não se pode definir seu trabalho pictórico como ilustração, riscos,
ideogramas ou alfabeto, é inacabado e inacessível como a sua literatura, outra
forma de explorar o mundo interior. Há uma espécie de tremor que habita suas
manchas, um despojamento, fragilidade e sobriedade. São como curtos-circuitos,
manchas de colorido intenso, caligrafia nervosa que avança e retrocede, impulsos
que buscam inutilmente uma saída. “Eu queria desenhar a consciência de existir
e o fluir do tempo”, confessou.
michaux fotografado por claude cahun |
HENRI MICHAUX foi colaborador assíduo da
importante “Sur”, revista literária argentina que difundiu a arte inovadora,
além de divulgar as atividades da Resistência Francesa. Tornou-se conhecido em
França a partir dos anos 40, quando André Gide escreveu um texto sobre ele. Com
a trágica morte de sua esposa, falecida em consequência das graves queimaduras
de um incêndio acidental em 1948, escreve em sete páginas o emocionante poema “Noux
Deux, Encore”, depois recolhido pelo próprio autor e transformado numa obra
clandestina, maldita. Entediado, levando o seu cotidiano para qualquer viagem,
interrogou-se em “Passages” (1937-1950): “Para que viajar quando uma rima faz
nivelar uma montanha, quando um adjetivo povoa um país, quando uma assonância
faz oscilar a Terra inteira?”.
Descobriu
os alucinógenos em 1956, e sob controle médico prova ópio, ácido e mescalina, o
principal alcaloide do peyote, produzindo através deles várias obras pictóricas
e textos experimentais, vibrantes e minuciosos: “L’Infini Turbulent” (1957), “Paix
dans les Brisementes” (1959), “Connaissance par les Gouffres” (1961) e “Les
Grandes Épreuves de l’Esprit” (1969), “Misérable Miracle” (1972). Como
Baudelaire, Quincey, Artaud, Cocteau, Huxley, Castañeda, Burroughs e tantos
outros, buscou nas drogas a sensibilidade fora dos limites da mente humana,
descrevendo minuciosamente suas sensações, pensamentos e os movimentos que
sentiu com suas experiências. Carlos Castañeda foi quem celebrizou o famoso
cactos quando contou suas experiências com Don Juan, que dizia que a mescalina
ensinava a “maneira mais correta de viver”. Artaud acreditava que com o peyote
sabe-se até “aonde chegará o seu ser e até onde ainda não conseguiu chegar”. A
droga na obra destes autores desvenda o real invisível como o verdadeiro real.
Pelo peyote, os índios huichol se libertavam dos seus pensamentos, dos seus
atos (bons ou maus), desnudando-se de todo o seu eu para alcançar a pura
liberdade do pensar. Logo que achou que concluiu suas experiências, MICHAUX deixou as drogas por achar que
“não estava feito para a dependência”.
A
literatura híbrida de HENRI MICHAUX
é entrega, êxtase, estertor interior. Diz simplesmente que a vida está onde nós
queremos, assim como no erro e na dúvida de cada entrega. Um jogo permanente
entre a presença e a ausência, a ascensão e a queda, o circunstancial e o eu.
Clássico das vanguardas, sua obra é uma das mais originais do século XX. Esse
estranho poeta dizia que a poesia não é o verso, que está em toda a parte, e
que o poema matava a poesia. Sem pertencer a qualquer escola literária, seus
inesperados textos usaram o simbolismo, o dadaísmo, o surrealismo, o
existencialismo, o absurdo e fantasias irônicas e oníricas. Nem todos os
lugares e povos que retratava em seus livros são reais, muitos surgiram da sua
imaginação com a precisão de um antropólogo, como os seres de “Au Pays de la
Magie” (1941). Nele narra os costumes, os rituais e festas, o que pensam e como
vivem os magos, os omobules, os ecoravetias, os nonais, os oliabares, os
hivinizkis, os hacs, os emanglones e os meidosems, só para citar uns poucos.
Com um certo humor negro, o poeta satiriza à maneira de Jonathan Swift a realidade
da sociedade em que viveu. Uma veia fantástica muito poderosa, concentrando
universos inteiros em pequenos fragmentos, imitando a realidade a partir de um
mundo paralelo.
Reservado,
esquivo, discreto, tranquilo e elegante, com vida social nula e poucos
conhecidos, o poeta não dava entrevista nem permitia ser fotografado, e sua
biografia, sem muitos dados concretos, só pôde ser feita através de extratos de
sua correspondência privada. Nunca se considerou um literato e recusou receber
o Grande Prêmio Nacional de Letras, em 1965. Acreditava que a maioria das
pessoas representa um papel, e geralmente ele conseguia muito rapidamente
arrancar essa máscara, provocando um desinteresse por elas. Franzino, de saúde
frágil, naturalizou-se francês em 1955, e foi um homem sem limites geográficos,
mentais ou linguísticos. Um extraordinário caso de um escritor indefinido. A literatura
de HENRI MICHAUX combina narração,
prosa, descrição etnológica, poesia nada lírica e um certo humor surreal. Seus
textos são resultados de anotações, diários, cadernos, notas de viagem, redação
de explorações, de descobrimentos, em que introduz sua impressão pessoal,
muitas vezes abstrata e simbólica. Um explorador de uma nova visão do mundo e dos
seus seres. Morreu em Paris em 1984, sempre apoiado num certo desespero.
PRINCIPAIS OBRAS de MICHAUX
Qui je Fus (1927)
Ecuador (1929)
Une Barbare en Asie (1933)
Voyage en Grande Carabagne (1936)
Plume / Lointain Intérieur (1938)
Au Pays de la Magie (1941)
Arbres des Tropiques (1942)
L’Éspace du Dedans – Pages Choisies (1944)
Épreuves, Exorcismes (1940-1944)
Ailleurs (1948)
Noux Deux, Encore (1948)
La Vie dans les Plis (1949)
Passages (1937-1950)
Mouvements (1951)
Face aux Verrous (1954)
L’Infinit Turbulent (1957)
Paix dans les Brisements (1959)
Connaissance par les Gouffres (1961)
Vents et Poussières (1962)
Les Grandes Épreuves de l’Esprit et
les Innombrables Petites (1969)
Façons d’Endormi, Façons d’Éveillé
(1969)
Misérable Miracle (1972)
Émergences, Résurgences (1972)
Moments,Traversées du Temps (1973)
Face à ce qui se Dérobe (1976)
Choix de Poèmes (1976)
Poteaux d’Angle (1981)
Chemins Cherchés, Chemins Perdus, Transgressions (1982)
EU REMO
Henri Michaux
Eu maldisse tua fronte teu ventre tua vida
Eu maldisse as ruas que teu andar
desfia
Os objetos que tua mão segura
Eu maldisse o interior dos teus sonhos
Pus uma poça no teu olho que não vê mais
Um inseto em teu ouvido que não ouve mais
Uma esponja em teu cérebro que não entende mais
Eu te esfriei na alma do teu corpo
Eu te gelei na tua vida profunda
O ar que tu respiras te sufoca
O ar que tu respiras tem um ar de adega
É um ar que já foi antes expirado
que já foi rejeitado por hienas
O esterco desse ar já ninguém pode respirar
Tua pele está toda úmida
Tua pele sua a água do grande medo
Tuas axilas desprendem longe um cheiro de cripta
Os animais estacam à tua passagem
Os cães, à noite, uivam, cabeça erguida para a tua casa
Tu não podes fugir
Não te vem uma força de formiga na ponta do pé
Tua fadiga é um touro de chumbo no teu corpo
Tua fadiga é uma longa caravana
Tua fadiga vai até o país de Nan
Tua fadiga é inexprimível
Tua boca te morde
Tuas unhas te arranham
Não mais é tua a tua mulher
Não mais é teu o teu irmão
A planta de seu pé é mordida por serpente furiosa
Babaram sobre tua progenitura
Babaram sobre o riso da tua filhinha
Passaram a babar diante da face da tua moradia
O mundo afasta-se de ti
Eu remo
Eu remo
Eu remo contra a tua vida
Eu remo
Eu me multiplico em remadores inumeráveis
Para remar mais fortemente contra ti
Descambas para o vago
Estás sem fôlego
Tu te cansas antes mesmo do menor esforço
Eu remo
Eu remo
Eu remo
Tu te vais, ébrio, amarrado o rabo de um jumento
A embriaguez como imenso guarda-sol
a escurecer o céu
E a reunir as moscas
A embriaguez vertiginosa dos canais semicirculares
Começo mal ouvido da hemiplegia
A embriaguez não mais te deixa
Te deita à esquerda
Te deita à direita
Te deita no chão pedrento do caminho
Eu remo
Eu remo
Eu remo contra teus dias
Na moradia do sofrer tu entras
Eu remo
Eu remo
Numa fita preta as tuas ações se inscrevem
No grande olho branco de um cavalo caolho
rola o teu futuro
Eu remo
(Tradução de Mário Lanranjeira)
BIBLIOGRAFIA
En Otros Lugares, tradução de Julia Escobar, Madrid,
Alianza Editorial, 1983;
Um Bárbaro en Asia, tradução de Jorge Luis Borges,
Barcelona, Tusquets, 1984;
Las Grandes Pruebas del Espíritu, tradução de Francesc Parcerisas,
Barcelona, Tusquets, 1985;
La Escritura del Rostro, de José Antonio Millán (El País, 20
de fevereiro de 1992);
Poetas de França Hoje / 1945-1995, de Mário Laranjeira, São Paulo,
Edusp, 1996;
Henri Michaux, en el Abismo, de J. A. R. (El País, Babélia, 18
de abril de 1998);
Magazine Littéraire nº 364, Abril de 1998;
Mágicos Poderes, de J.H. B. (Expresso, Cartaz, 13 de
março de 1999);
Geografia Insurrecta, de Antonio Cabrita (Expresso,
cartaz, 13 de março de 1999);
Los Mundos de la Grafía Viajera de
Michaux, de Adolfo
García Ortega (El País, Babélia, 25 de março de 2000);
Plume – Bulletin de la Société des
Lecteurs d’Henri Michaux;
6 comentários:
Li e reli dele UM BÁRBARO NA ÁSIA, muito bom.
tks , gostei do poeta e, inclusive, das pinturas. obs: cancerianos costumam ser interessantes rsrsr
ótimo, Antonio Nahud
maravilha, Antônio!
Belo presente para a leitura do prazer e da reflexão, amigo. Muito bom beber da fonte dos teus escritos na tua visão dos escritos de Michaux.
Beijo.
Genny
Olá,amigo: que lindo, que coisa divina, grandiosa!!!
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