Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa,
sem
perigo de ódio, se a gente tem amor.
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde,
um descanso na loucura.
GUIMARÃES ROSA
(1908 - 1967. Cordisburgo / Minas Gerais)
Grande Sertão: Veredas
Ilustrações:
ANDY GOLDSWORTHY
(1956. Cheshire / Reino Unido)
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui
PAULO LEMINSKI
(1944 - 1989. Curitiba / Paraná)
ouvindo MOZART
No período mais próximo da morte dele, vi muito pouco MORVAN. Que
era uma pessoa que eu via todos os dias. Então senti desconforto, parecendo que poderia ou deveria ter feito alguma
coisa, ter estado perto de algum modo. Quando soube do seu falecimento fui arrebatado por sentimentos de amor, saudade, desmantelo e compaixão. Lembrei-me do nosso projeto-sonho-lúdico, planejado detalhadamente e adiado duas ou três vezes, de acompanhar o Velho Chico da
nascente ao mar, ou vice-versa. Ele fotografando, eu descrevendo no papel o que
via n'alma. Sem exagero, chorei dias seu óbito cruel e inesperado.
Quase nove meses se passaram. Enfrento os desafios e dinâmicas do destino. O passado enterrado, e vez ou outra
brotando da terra fértil uma plantinha desconhecida de flor azul. Ela habita esse
texto, multiplicando-se em rabiscos, reflexões escritas em folhas soltas ou em objetos, notas a lápis em livros, e-mails recebidos dele, duas cartas, muitas fotografias. O mineiro MORVAN amava fotografar. E mais ainda, reinventar a imagem, quebrando padrões. Nossos retratos levam ao caminho do coração. Leitor atento de Clarice Lispector e Fernando Pessoa, ele também escrevia dádivas (e dúvidas).
Errar é humano, sabemos, mas amar, valorizar e perdoar também. A dor passa. A saudade acalma. A decepção ensina. Doida e lúcida, a vida continua. Nesse tributo, antologia emocionada do pensamento morvaniano. Ele se foi aos 29 anos de idade. Selecionei 29 fragmentos de gritos e sussurros escritos sensivelmente por ele. Conhecimento é o tecido do espírito. Confira essa bonita, densa e atormentada aventura intimista.
Errar é humano, sabemos, mas amar, valorizar e perdoar também. A dor passa. A saudade acalma. A decepção ensina. Doida e lúcida, a vida continua. Nesse tributo, antologia emocionada do pensamento morvaniano. Ele se foi aos 29 anos de idade. Selecionei 29 fragmentos de gritos e sussurros escritos sensivelmente por ele. Conhecimento é o tecido do espírito. Confira essa bonita, densa e atormentada aventura intimista.
01
Acho que esse texto já é ultrapassado, como se o tempo contasse
para ele como conta para os efemerópteros, aqueles insetinhos poéticos que te
falei, que tem apenas algumas horas de esplendor numa noite para revelar seu
total sentido. Mas segue-se ele; soando a palavras apressadas e sujas, póstumas
do momento.
02
Me angustiam os vermes, esses mesmo, os reais, e outros, os
mentais, cuja matéria são as ideias amorfas, ainda larvais e sôfregas por tudo
que ainda não se sabe ao certo, que não adquiriram forma delimitada e tão pouco
a leveza flutuante tão almejada.
03
Antonio meu raro, sua vida tem tantas facetas e tu és tão transparente, polido e
vivo que encheria de inveja o mais belo dos cristais, sua rareza é de diamante
bruto, a qual apenas olhos líricos e atentos identificariam as magníficas
iridescências que emites despretenso de seu íntimo. Quero-te meu raro, como
almeja o ourives a rocha doirada talvez longínqua e profunda que jamais
encontrará... longe demais de seu alcance...
04
Sou confuso e sabes, como pode um homem ter coisas tão belas e
cruéis dentro de si, simbióticas e caóticas na profusão de tudo acontecendo
contíguo?
05
Sou livre, e canto a liberdade e a verdade. Amo a natureza e suas
intrincâncias e místicas, de seu estudo tenho feito ofício e me encho de
adoração e respeito mais que milenar por todas estas criaturas.
06
É tudo uma questão de adaptação e evolução... mas, quanto aos
seres gente, a que realmente se deve adaptar? O que é mesmo evoluir?
07
As vezes não me sinto bem em alguns ambientes, me mantenho ali
erguido mas perdendo, é como que drenado em energia pelo que não sei o que é,
uma asfixia...
08
Acontece que acabo de aqui aterrissar e estou tão aberto ao mundo
que me embrenho incauto por tantos lugares, e temo não saber a hora de voltar,
retroceder com o mínimo de danos possível a meu solitário e protegido interior.
Âncoras não tenho e tanto menos espinhos, exploro universos
que me mantive bastante distante e até combatia, preconceituoso mas acreditando numa coerência ideologicamente delimitada.
09
Como são engraçados e irônicos os eventos da vida... já pousaram
joaninhas em meus braços, borboletas já aceitaram os meus dedos ...os
beija-flores nunca, mas pousarão um dia.
10
Me sobressalto mais uma vez contigo, Antonio, a atenção intermitente que
tens comigo e a doçura com que tratou essa minha causa tão aversiva, tudo me
cativa. Pois afinal, encontrei alguém que pelo relevo suntuoso e as vezes
drástico da vida, também coleciona dejetos, coisas valorosas do ínfimo, uma
rosa, uma rocha, uma casca, uma brisa, um abraço.
11
Há tanto por se dizer, mas tenho uma queda por alcançar a
nobreza elucidante que podem certos silêncios.
12
Uma verborragia breve, sobre a crueza da vida que não brinca.
13
Eu preciso escrever que... Eu não sou enganado por deuses. Eu sou um
santo macabro, solitário no altar de minha total descrença. Me amaldiçoo usando
rosas brancas. Me perfumo de morte para viver meu não-tempo.
14
Crio eu por martírio deliberado as minhas próprias e pantanosas
incompreensões. Decidi pela deriva.
15
Cresço como um ficus na
lama do obscuro e lanço raízes tênues em todas direções. Não me fixo, me
sustento [ou houve um tempo]. Rogo meu próprio milagre. A esperança que me
sustenta, reside nas partes mais tenras de manhãs excepcionais.
16
Minha consciência não é do tipo que permite paixões não decididas.
Meu controle é tão frio que queima.
17
Divago. Devagar. Tão restrito e cativo é a novidade insuspeitada
de meu triste trajeto.
18
Fui honrado com tal íntima visão, numa noite vagabundo com você
olhando constelações na mata escura... sentados no alto de uma montanha na Chapada
Diamantina, Bahia... deixei de te contar quando falávamos de cigarras,
vagalumes e meteoritos.
Com enorme apreço.
19
Não tenho a vocação do beija-flor, esse dom de viver só de beleza.
Só queria é que ele me aceitasse - como disse uma vez -, e pousasse mesmo que
por um segundo em meu dedo... talvez eu não seja tão inocente e puro quanto
cobra seu rigoroso juízo, ou talvez, por nunca estar no estado de bem-estar
furta-cor que os atrai.
20
Queria o ato falho de dizer teu nome no lugar do meu. Queria me
cobrir como uma pálpebra e simplesmente girar o meu espírito para o jamais
visto. Quero ser ridículo com todas minhas forças. Quero te em paz, Antonio... Imanto-te de
todo bem do mundo.
21
Tô com sono, meio delirante. Seu poema me lembrou das fotos que
tirei no jardim, há muito tempo, quando um beija-flor apareceu lá morto, tão
colorido que era uma incoerência.
22
Pessoas muito diferentes só se cumprimentam. O mais importante é estar bem com seu interior e manter o
critério da verdade. Só eles podem gerar frutos humanos e verdadeiros. Tenho
meu lado obscuro, mas quero criar apenas coisas que, de alguma forma, iluminem
e/ou proporcionem positivamente as consciências.
23
O ser humano é uma criatura sinestésica com um potencial enorme e
diverso de criar metáforas e alegorias ao seu entorno. Todo ser é, em
diferentes níveis, capaz de modificar o mundo e a si próprio de formas que os
recorrentes juízos de valor maniqueísta não conseguem abarcar. Prefiro o status
dialético de complexidade, seus maiores argumentos e calibrações.
24
Peço desculpas pela minha falta de eternidades. Desculpe também a
solidez de minha solidão [cheia de pontos fracos inatingidos]. Desculpe enfim,
estas ideias jorrando feito sangue duma cabeça decapitada.
25
Me desculpe, Antonio, mas me utilizei de uma bebida e de cigarros para te
escrever, às vezes me travo devido suposto rigor gramatical e demasiado crítico
que talvez analise minhas palavras, padeço e emudeço, como eclipsado por sua
cultura e vivência... é essa juventude miserável e ansiosa. Só sei que
SEMPRE há saídas, umas mais e outras menos honrosas. Tyler D. mesmo diz, em
Fight Club, que “Losing all hope was freedom”... e Hesse no Lobo de
Estepe, “que é mais nobre e belo deixar-se abater pela vida do que por
sua própria mão”.
26
No mais, Antonio, sigo tentando preencher com boas vivências os meus dias,
circulando em poucos espaços e ao lado de meus poucos “colegas”, consciente que
não tenho amigos em Natal. Te ____. Não consegui descobrir sua palavra. Talvez haja tempo. Amar
é para os ordinários.
27
No poema “Se te queres matar”, Pessoa indaga: “De que te serve o
teu mundo interior que desconheces? / Talvez, matando-te, o conheças
finalmente. / Talvez, acabando, comece...”. Estou muito abatido e triste, essa semana foi
um teste de resistência. Preciso suportar o peso de minha solidão; reaprender a
estar comigo e me enfrentar; mastigar na boca sangrenta, as velhas sinas e
carmas. Não vou elaborar maiores pensamentos, não é o momento. Sonho com uma
placidez entre nós.
Que resistamos a tudo isso.
Um abraço doce e eterno,
meu caro e adorado Antonio
28
Mas me pego pensando... Talvez nossas línguas pudessem nos desatar.
Talvez antes que terminasse de dizer, minha boca fosse a tua. Talvez imediatamente
antes de falares noite, eu já balbuciasse m-i-n-ú-s-c-u-l-a-s-e-s-t-r-e-l-a-s...
E não há mais o que dizer... Repito: não há mais o que me dizer. Não tenho um
apontamento para uma redenção mais nobre [ou coisa-outra-qualquer].
29
Que os pássaros e os fungos se fartem dos frutos que não soubemos
enxergar. Foi uma linda lua-de-mel. Prefiro me despedir assim. Não quero que me
veja chorando. Obrigado. Muito mesmo. Querido e raro Antonio.
POEMAS para MORVAN
resgatados em e-mails
01
Há quase sempre
uma voz a murmurar
oculta noutra voz.
Há na realidade azulada
uma saudade medonha
um viver-desvivendo.
Há nas constelações íntimas
o sol e o infinito
fagulhas do sem nome.
Há o tempo no meu corpo
recordando e apagando.
Esta tarde reparei.
Esta tarde reparei.
02
Pernoita em mim. E se por acaso me vem à memória, ama-me na
conexão encantada, no aroma cálido da cumplicidade. Escalo a gratidão aveludada, respirando o perfume queimado das estrelas. Noite ainda, seu corpo
ausente se instala vagaroso no meu ser-silêncio, enquanto envelheço na nômade
solidão das aves.
03
colibris sobrevoam
fartos cabelos
coração e arte.
pousando em ti
te voam, e do jeito deles
poemados
na ordem mais natural.
cristalino diante do inusitado
transformado em colibri azulado
habita meu jardim florido.
FRASES de RIOBALDO
selecionadas e interpretadas por Morvan
no meu aniversário de 2013
no meu aniversário de 2013
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.
O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não
sou, não quero ser.
Eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja
o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a
alegria longe da tristeza! (...) Este mundo é muito misturado ...
A vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça,
por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um
inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho.
Tudo que já foi, é o começo
do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito.
Um sentir é do sentente, mas o outro é o do sentidor.
Para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber
tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece.
E vou-me embora
Por um mau vento
Que me leva
Sem rumo, lento,
Tal como leve
Folha morta
PAUL VERLAINE