PAUL ELUARD em carta para GALA
ANALU PRESTES
(1952. Santos / São Paulo)
Carta, missiva (latim) ou ainda epístola (grego), é o termo que descreve um manuscrito destinado a estabelecer comunicação interpessoal escrita de cunho particular. Cartas de amor, de despedida, de vida, de morte, de desculpas, de lições, de datas especiais, de ameaças. As palavras no papel percorrem caminhos inimagináveis e surpreendentes porque a origem está no coração, na emoção. Se perdeu força como tradição e hábito, o resgate da carta manuscrita é um jeito de acalentar a alma. Ela traz alívio, crescimento, força. É um objeto inanimado que acaba palpitando, como um tigre devorando o peito. Na paz das casas sem televisão, é fácil ouvir vozes de envelopes nos convidando a ouvi-las. Muitos resistem, tal qual Ulisses amarrado ao mastro do barco, para não ser encantado pela melodia das irresistíveis sereias-palavras.
As cartas são
consideradas o meio de comunicação mais antigo do mundo. Não se sabe ao certo
quando elas surgiram, mas os reis do antigo Oriente Médio já as escreviam. Alguns
estudiosos apontam, inclusive, que a carta é a mãe de todos os gêneros
textuais, ao lado dos mitos e contos populares. No Egito, mais de 4 mil anos
antes da Era Cristã, já existiam os sigmanacis, mensageiros que levavam recados
escritos a pé ou montados em cavalos e camelos. Entre os livros que formam a “Bíblia”
estão publicadas 21 cartas, escritas por Paulo e outros seguidores de Cristo,
direcionadas a povos como os romanos e os habitantes de Corinto, na Grécia
Antiga. No Brasil, chegaram com os primeiros portugueses. Assim que a esquadra
de Cabral aportou, Pero Vaz de Caminha enviou uma correspondência ao rei
comunicando o descobrimento das novas terras.
Recebi dia desses
uma carta de um veterano poeta, comentando um ensaio que escrevi sobre o
escritor norte-americano Paul Bowles. Ele vive em Londres há décadas e vez ou
outra trocamos ideias sobre literatura. Segundo ele, meus textos literários são
quase cartas. Pode ser, sei que gosto de corresponder-me com desconhecidos. Em
sua maioria, querem cumplicidade. Como invisto no realismo, muitos agonizam, passando
meses sem responder, possivelmente crendo que o silêncio causa sofrimento. Não
sabem que escritores escrevem para não morrer em vida, não contando com
respostas como tábuas de salvação. Depois da indignação, a sentença travestida,
dando lições morais, filosóficas, literárias ou até mesmo espirituais.
Válido deveria
ser o luxo da escrita. Não escrevo para encantar ninguém, escrevo para fixar
impressões, já que a memória é curta. Escrevo o que fui, o que sou e o que sei.
Se não tenho milhares de leitores, pouco importa, afinal escrevo em primeiro
lugar para o prazer pessoal. E gosto imensamente de cartas. Alguns insensatos
usam-nas como alimento para rancores, outros para o gozo e a paixão. Como
esquecer das cartas fosforescentes de F. Scott e Zelda Fitzgerald? E
as de Anais Nin para seus amantes, as de Dora Carrington para Lytton
Strachey, as de Nelson Agren para Simone de Beauvoir (a escritora não saiu favorecida quando sua
correspondência com Sartre foi publicada, revelando uma personalidade
tirana e perversa)?
Para os servos do
passado, cartas deixam de ser o clarão de fogos da emoção e se tornam cinzas de
uma ausência lamentosa. Antes de tudo, é preciso compreender que cartas
precisam de vivência. Só comovem quando tem origem em intensidade fecunda. Durante
anos, guardei em uma caixa de charutos cubanos, cartas de Hilda
Hilst, Drummond, Vinicius de Moraes, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando
Abreu, e via a caligrafia deles como arte minimalista, vocação para o abismo dos sentimentos. São cartas que nascem do espanto.
do livro inédito“Crônicas dos Dias Errantes”
CARTAS: 10 LIVROS
Alguns gêneros
usam a forma epistolar com fins literários ou jornalísticos e não privados,
como a carta do leitor, a carta aberta, o poema em forma de carta, o romance
epistolar, etc. Confira alguns livros que recomendo:
01
CARTA de um DIABO
a seu APRENDIZ (1942), de C. S. Lewis.
Demônio veterano escreve cartas ao seu jovem sobrinho, um demônio em início de
carreira, explicando-lhe como conquistar a alma do paciente que lhe foi
atribuído, um jovem recém-convertido ao Cristianismo.
02
CARTAS a um JOVEM
POETA (1929), de Rainer Maria Rilke.
Em 1903, Rilke
recebe uma carta de um jovem chamado Franz Kappus, que aspira se tornar poeta e
que pede conselhos ao já famoso escritor. Tal missiva dá início a uma troca de
correspondência na qual Rilke responde aos questionamentos e, muito mais do que
isso, expõe suas opiniões sobre o que considerava os aspectos verdadeiros da
vida. A criação artística, a necessidade de escrever, Deus, o sexo e o
relacionamento entre os homens, o valor nulo da crítica e a solidão inelutável
do ser humano: estas e outras questões são abordadas pelo maior poeta de língua
alemã do século XX.
03
CARTAS
EXTRAORDINÁRIAS: a Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis (2014).
Mais de 125
cartas oferecem um olhar inédito sobre os eventos e personalidades da nossa
história. É uma celebração do poder da correspondência escrita, que vai do
comovente bilhete suicida de Virginia Woolf à receita que a rainha Elizabeth II
enviou ao presidente norte-americano Eisenhower; à carta em que Gandhi suplica
a Hitler que tenha calma e muito mais.
CRÔNICA da CASA ASSASSINADA (1959), de Lúcio Cardoso.
Contada por cartas, é uma trama densa de ciúmes, rancores e perversões, numa velha fazenda no interior de Minas Gerais. Na decadência familiar, casos extraconjugais, atos violentos, relações incestuosas.
05
FERNANDO PESSOA e OFÉLIA QUEIROZ. Correspondência Amorosa Completa (2013).
A correspondência trocada entre o poeta e sua única namorada, de 1919 a 1935, com 156 cartas tocantes.
06
As LIGAÇÕES PERIGOSAS (1782), de Choderlos de Laclos.
MEMÓRIAS de DUAS JOVENS ESPOSAS (1841), de Honoré de BalzacDuas jovens mulheres francesas se tornam amigas íntimas em convento carmelita. Quando saem do convento, suas vidas seguem rumos diferentes. A amizade é preservada através da correspondência, de 1823 a 1835.
O personagem central envia, por um longo período, cartas ao narrador, que, em notas de rodapé, afirma que nomes e lugares foram trocados. São confissões marcadas por uma paixão profunda, tempestuosa e desditosa.
09
TODAS as CARTAS (2020), de Clarice Lispector.
Correspondências escritas pela emblemática escritora ao longo de sua vida.
10
Uma VIDA em CARTAS (2013), de George Orwell.
A correspondência do autor de “1984” possibilita seguir de perto seu cotidiano pessoal e profissional.
Um comentário:
Texto comovente e informativo. Parabéns ao talentoso autor.
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