setembro 29, 2021

..................... CARTAS ESCRITAS à MÃO: as PALAVRAS ÍNTIMAS



“Amo-te, queria ter-te agora sobre o meu peito para saber que existo. Queria que, nua e cingindo-me entre as tuas pernas, me beijasses o peito. Depois, que me masturbasses. E assim, somente assim, existo.”
PAUL ELUARD em carta para GALA
 
 Fotos: ANALU PRESTES

 
A epístola foi a principal forma de comunicação à distância desde a invenção da escrita, mas sofreu algum recuo em meados do século XX, com a popularização da telefonia. Conheceu o papiro, o pergaminho, as folhas de árvore, até se consolidar o uso do papel a partir do séc. XV e mais recentemente o eletrônico. Mas ainda há quem pelo simples prazer de trocar correspondências físicas utilizam a carta em papel. Eu sou um deles. Simplesmente gosto de escrever à moda antiga. É uma forma de transferir para o papel o que anda pesando a cabeça e o coração – uma espécie de catarse emocional. Além disso, permite organizar os pensamentos, clareando o que se sente.
 
Não compactuo com a teoria da finitude das cartas, muito pelo contrário, a comunicação epistolar considerada antiquada continua viva com a internet, o correio eletrônico, as redes sociais. Contudo, acredito que as palavras são mais dinâmicas em cartas tradicionais. Sob a luz do abajur turquesa, costumo escrever cartas poéticas e honestas. Também recebo cartas de perto e do outro lado do mundo, sentimentos expressos em papel. Nos tempos atuais, em que a vida digital impera e um simples comando no teclado envia mensagens instantâneas, uma carta escrita carrega uma ideia de passado, nostalgia, relíquia. Recebê-la hoje pelo correio, escrita à mão, no mínimo causa impacto e surpresa.

 Carta, missiva (latim) ou ainda epístola (grego), é o termo que descreve um manuscrito destinado a estabelecer comunicação interpessoal escrita de cunho particular. Cartas de amor, de despedida, de vida, de morte, de desculpas, de lições, de datas especiais, de ameaças. As palavras no papel percorrem caminhos inimagináveis e surpreendentes porque a origem está no coração, na emoção. Se perdeu força como tradição e hábito, o resgate da carta manuscrita é um jeito de acalentar a alma. Ela traz alívio, crescimento, força. É um objeto inanimado que acaba palpitando, como um tigre devorando o peito. Na paz das casas sem televisão, é fácil ouvir vozes de envelopes nos convidando a ouvi-las. Muitos resistem, tal qual Ulisses amarrado ao mastro do barco, para não ser encantado pela melodia das irresistíveis sereias-palavras.

As cartas são consideradas o meio de comunicação mais antigo do mundo. Não se sabe ao certo quando elas surgiram, mas os reis do antigo Oriente Médio já as escreviam. Alguns estudiosos apontam, inclusive, que a carta é a mãe de todos os gêneros textuais, ao lado dos mitos e contos populares. No Egito, mais de 4 mil anos antes da Era Cristã, já existiam os sigmanacis, mensageiros que levavam recados escritos a pé ou montados em cavalos e camelos. Entre os livros que formam a “Bíblia” estão publicadas 21 cartas, escritas por Paulo e outros seguidores de Cristo, direcionadas a povos como os romanos e os habitantes de Corinto, na Grécia Antiga. No Brasil, chegaram com os primeiros portugueses. Assim que a esquadra de Cabral aportou, Pero Vaz de Caminha enviou uma correspondência ao rei comunicando o descobrimento das novas terras.

Uma carta deixada em liberdade é animal selvagem com as garras cravadas no coração de quem a enviou e de quem a recebeu. Sugiro a leitura da desbocada correspondência entre James Joyce e sua Nora Barnacle – na definição do escritor ora virgem, ora puta. “Como eu gostaria de te surpreender dormindo agora! Tem um lugar em você que eu gostaria de beijar agora, um lugar estranho, Nora. Não nos lábios, Nora. Você sabe onde?”, escreve Joyce. Impactantes também são as desesperadas missivas do irlandês Oscar Wilde para Lord Alfred Douglas: “Não posso viver sem ti. És tão desejável, tão maravilhoso! Os teus lábios, rubros como pétalas de rosa, foram feitos para a música e o canto, como para os beijos”. Pieguice amorosa que empurrou o autor de “O Retrato de Dorian Gray” (1890) para a prisão, a miséria e a morte.

Recebi dia desses uma carta de um veterano poeta, comentando um ensaio que escrevi sobre o escritor norte-americano Paul Bowles. Ele vive em Londres há décadas e vez ou outra trocamos ideias sobre literatura. Segundo ele, meus textos literários são quase cartas. Pode ser, sei que gosto de corresponder-me com desconhecidos. Em sua maioria, querem cumplicidade. Como invisto no realismo, muitos agonizam, passando meses sem responder, possivelmente crendo que o silêncio causa sofrimento. Não sabem que escritores escrevem para não morrer em vida, não contando com respostas como tábuas de salvação. Depois da indignação muda, chega a sentença travestida, dando lições morais, filosóficas, literárias ou até mesmo espirituais.

Válido deveria ser o luxo da escrita. Não escrevo para encantar ninguém, escrevo para fixar impressões, já que a memória é curta. Escrevo o que fui, o que sou e o que sei. Se não tenho milhares de leitores, pouco importa, afinal escrevo em primeiro lugar para o prazer pessoal. E gosto imensamente de cartas. Alguns insensatos usam-nas como alimento para rancores, outros para o gozo e a paixão. Como esquecer das cartas fosforescentes e trágicas de F. Scott e Zelda Fitzgerald? E as de Anais Nin para os seus amantes, as de Dora Carrington para Lytton Strachey, as de Nelson Agren para Simone de Beauvoir (a autora de A Cerimônia do Adeus” não saiu favorecida quando sua correspondência com Jean-Paul Sartre foi publicada, revelando uma personalidade tirana e perversa)?
 
Para os servos do passado, cartas deixam de ser o clarão de fogos da emoção e se tornam cinzas de uma ausência lamentosa. Antes de tudo, é preciso compreender que cartas precisam de vivência. Só comovem quando tem origem em intensidade fecunda. Durante anos, guardei em uma caixa de madeira de charutos cubanos, cartas originais de Hilda Hilst, Drummond, Vinicius de Moraes, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, e sentia a caligrafia deles como arte minimalista, vocação irresistível para o abismo dos sentimentos. São cartas que nascem do espanto.


As publicações de correspondências são cada vez mais populares. Li recentemente cartas trocadas entre João Cabral, Manuel Bandeira e Drummond. Numa carta de Milena, a amada de Franz Kafka, a uma confidente, ela diz: “Todo este mundo do sexo, para ele, é e continua a ser misterioso. Um segredo místico, algo com que não sabe lidar e que tende a subestimar com uma ingenuidade comovedoramente pura. Já as cartas de Kafka são intensas no que dizem e no que calam. “Carta ao Pai” (1952) é obra-prima, assim como “Alexis ou o Tratado do Vão Combate” (1929), da escritora belga Marguerite Yourcenar, onde um jovem confessa sua homossexualidade à esposa através de uma carta perturbadora.
 
Há cartas que são relíquias do desamor ou troféus da discórdia. Algumas retratam a revolta contra os ausentes de escrúpulos. Para o bem e para o mal, as cartas tem todo meu respeito. Desde garoto me correspondo com muitos, alguns que nunca vi ao vivo, e ainda assim confessei impressões e delírios. Correspondo-me com escritores, artistas, ex-amantes, solitários, parentes, amigos antigos. Escrever é remédio para quem está fragilizado, às voltas com suas dores emocionais. E também vitamina, dose de saúde para quem está de bem com a vida, apenas buscando registrar seus sentimentos e se conhecer melhor. Para isso é preciso apenas adentrar o coração e levar os sentimentos para o papel, possibilitando-os simplesmente se desvelar, genuínos e autênticos.
 
Uma carta é um olhar para dentro e se encontrar. O que vale é a sede de se expressar. À medida que a caneta vai deslizando pelo papel, sentimentos e emoções deslizam também. É como se o coração ditasse o que precisa ser dito, expressando por meio de letras a intensidade da emoção que ele carrega. Daí a significância e a eternidade das cartas.

Lisboa, Portugal, 2001
Do livro inédito “Crônicas dos Dias Errantes”



CARTAS: 10 LIVROS

Alguns gêneros usam a forma epistolar com fins literários ou jornalísticos e não privados, como a carta do leitor, a carta aberta, o poema em forma de carta, o romance epistolar, etc. Confira alguns livros que recomendo:
 
01
CARTA de um DIABO a seu APRENDIZ (1942), de C. S. Lewis.
Demônio veterano e experimentado escreve cartas ao seu jovem sobrinho, um demônio em início de carreira, explicando-lhe como conquistar a alma do paciente que lhe foi atribuído, um jovem recém-convertido ao Cristianismo.
 
02
CARTAS a um JOVEM POETA (1929), de Rainer Maria Rilke.
Em 1903, Rilke recebe uma carta de um jovem chamado Franz Kappus, que aspira se tornar poeta e que pede conselhos ao já famoso escritor. Tal missiva dá início a uma troca de correspondência na qual Rilke responde aos questionamentos e, muito mais do que isso, expõe suas opiniões sobre o que considerava os aspectos verdadeiros da vida. A criação artística, a necessidade de escrever, Deus, o sexo e o relacionamento entre os homens, o valor nulo da crítica e a solidão inelutável do ser humano: estas e outras questões são abordadas pelo maior poeta de língua alemã do século XX.
 
03
CARTAS EXTRAORDINÁRIAS: a Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis (2014).
Mais de 125 cartas oferecem um olhar inédito sobre os eventos e personalidades da nossa história. É uma celebração do poder da correspondência escrita, que vai do comovente bilhete suicida de Virginia Woolf à receita que a rainha Elizabeth II enviou ao presidente norte-americano Eisenhower; à carta em que Gandhi suplica a Hitler que tenha calma e muito mais.
 


04
CRÔNICA da CASA ASSASSINADA (1959), de Lúcio Cardoso.
Contada por meio de cartas, é uma trama densa, cheia de ciúmes, rancores e perversões, numa velha fazenda no interior de Minas Gerais. Na decadência familiar, descobrem-se casos extraconjugais, atos violentos, amores proibidos, relações incestuosas.
 
05
FERNANDO PESSOA e OFÉLIA QUEIROZ. Correspondência Amorosa Completa (2013).
A correspondência amorosa trocada entre o poeta português e sua única namorada, de 1919 a 1935, com 156 cartas tocantes. 
 
06
As LIGAÇÕES PERIGOSAS (1782), de Choderlos de Laclos.
Nobres franceses debatem os costumes da época de forma ácida, crítica e inescrupulosa, traçando um perfil da nobreza pré-Revolução de 1789. Contendo 175 cartas trocadas entre os personagens Visconde de Valmont e Marquesa de Merteuil, o livro é uma obra-prima da literatura erótica.  

07
MEMÓRIAS de DUAS JOVENS ESPOSAS (1841), de Honoré de Balzac
Duas jovens mulheres francesas se tornam amigas íntimas em convento carmelita. Quando saem do convento, porém, suas vidas seguem rumos bem diferentes. A amizade é preservada através de sua correspondência, que continua de 1823 a 1835. 

08
Os SOFRIMENTOS do JOVEM WERTHER (1774), de Goethe.
O personagem central envia, por um longo período, cartas ao narrador, que, em notas de rodapé, afirma que nomes e lugares foram trocados. São confissões marcadas por uma paixão profunda, tempestuosa e desditosa.

09
TODAS as CARTAS (2020), de Clarice Lispector.
Correspondências escritas pela emblemática escritora ao longo de sua vida.

10
Uma VIDA em CARTAS (2013), de George Orwell.

A correspondência reunida do autor de “1984” possibilita ao leitor seguir de perto seu cotidiano pessoal e profissional.


Um comentário:

Renato Gadelha disse...

Texto comovente e informativo. Parabéns ao talentoso autor.