“Amo-te, queria
ter-te agora sobre o meu peito para saber que existo. Queria que, nua e
cingindo-me entre as tuas pernas, me beijasses o peito. Depois, que me
masturbasses. E assim, somente assim, existo.”
PAUL ELUARD em
carta para GALA
Fotos: ANALU PRESTES
A epístola foi a
principal forma de comunicação à distância desde a invenção da escrita, mas
sofreu algum recuo em meados do século XX, com a popularização da telefonia.
Conheceu o papiro, o pergaminho, as folhas de árvore, até se consolidar o uso
do papel a partir do séc. XV e mais recentemente o eletrônico. Mas ainda há quem
pelo simples prazer de trocar correspondências físicas utilizam a carta em
papel. Eu sou um deles. Simplesmente gosto de escrever à moda antiga. É uma
forma de transferir para o papel o que anda pesando a cabeça e o coração – uma
espécie de catarse emocional. Além disso, permite organizar os pensamentos,
clareando o que se sente.
Não compactuo com
a teoria da finitude das cartas, muito pelo contrário, a comunicação epistolar
considerada antiquada continua viva com a internet, o correio eletrônico, as
redes sociais. Contudo, acredito que as palavras são mais dinâmicas em cartas
tradicionais. Sob a luz do abajur turquesa, costumo escrever cartas poéticas e
honestas. Também recebo cartas de perto e do outro lado do mundo, sentimentos expressos
em papel. Nos tempos atuais, em que a vida digital impera e um simples comando
no teclado envia mensagens instantâneas, uma carta escrita carrega uma ideia de
passado, nostalgia, relíquia. Recebê-la hoje pelo correio, escrita à mão, no
mínimo causa impacto e surpresa.
Carta, missiva (latim) ou ainda epístola (grego), é o termo que descreve um manuscrito destinado a estabelecer comunicação interpessoal escrita de cunho particular. Cartas de amor, de despedida, de vida, de morte, de desculpas, de lições, de datas especiais, de ameaças. As palavras no papel percorrem caminhos inimagináveis e surpreendentes porque a origem está no coração, na emoção. Se perdeu força como tradição e hábito, o resgate da carta manuscrita é um jeito de acalentar a alma. Ela traz alívio, crescimento, força. É um objeto inanimado que acaba palpitando, como um tigre devorando o peito. Na paz das casas sem televisão, é fácil ouvir vozes de envelopes nos convidando a ouvi-las. Muitos resistem, tal qual Ulisses amarrado ao mastro do barco, para não ser encantado pela melodia das irresistíveis sereias-palavras.
As cartas são
consideradas o meio de comunicação mais antigo do mundo. Não se sabe ao certo
quando elas surgiram, mas os reis do antigo Oriente Médio já as escreviam. Alguns
estudiosos apontam, inclusive, que a carta é a mãe de todos os gêneros
textuais, ao lado dos mitos e contos populares. No Egito, mais de 4 mil anos
antes da Era Cristã, já existiam os sigmanacis, mensageiros que levavam recados
escritos a pé ou montados em cavalos e camelos. Entre os livros que formam a “Bíblia”
estão publicadas 21 cartas, escritas por Paulo e outros seguidores de Cristo,
direcionadas a povos como os romanos e os habitantes de Corinto, na Grécia
Antiga. No Brasil, chegaram com os primeiros portugueses. Assim que a esquadra
de Cabral aportou, Pero Vaz de Caminha enviou uma correspondência ao rei
comunicando o descobrimento das novas terras.
Recebi dia desses
uma carta de um veterano poeta, comentando um ensaio que escrevi sobre o
escritor norte-americano Paul Bowles. Ele vive em Londres há décadas e vez ou
outra trocamos ideias sobre literatura. Segundo ele, meus textos literários são
quase cartas. Pode ser, sei que gosto de corresponder-me com desconhecidos. Em
sua maioria, querem cumplicidade. Como invisto no realismo, muitos agonizam, passando
meses sem responder, possivelmente crendo que o silêncio causa sofrimento. Não
sabem que escritores escrevem para não morrer em vida, não contando com
respostas como tábuas de salvação. Depois da indignação muda, chega a sentença travestida,
dando lições morais, filosóficas, literárias ou até mesmo espirituais.
Válido deveria
ser o luxo da escrita. Não escrevo para encantar ninguém, escrevo para fixar
impressões, já que a memória é curta. Escrevo o que fui, o que sou e o que sei.
Se não tenho milhares de leitores, pouco importa, afinal escrevo em primeiro
lugar para o prazer pessoal. E gosto imensamente de cartas. Alguns insensatos
usam-nas como alimento para rancores, outros para o gozo e a paixão. Como
esquecer das cartas fosforescentes e trágicas de F. Scott e Zelda Fitzgerald? E
as de Anais Nin para os seus amantes, as de Dora Carrington para Lytton
Strachey, as de Nelson Agren para Simone de Beauvoir (a autora de “A Cerimônia do Adeus” não saiu favorecida quando sua
correspondência com Jean-Paul Sartre foi publicada, revelando uma personalidade
tirana e perversa)?
Para os servos do
passado, cartas deixam de ser o clarão de fogos da emoção e se tornam cinzas de
uma ausência lamentosa. Antes de tudo, é preciso compreender que cartas
precisam de vivência. Só comovem quando tem origem em intensidade fecunda. Durante
anos, guardei em uma caixa de madeira de charutos cubanos, cartas originais de Hilda
Hilst, Drummond, Vinicius de Moraes, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando
Abreu, e sentia a caligrafia deles como arte minimalista, vocação irresistível
para o abismo dos sentimentos. São cartas que nascem do espanto.
Lisboa, Portugal, 2001
Do livro inédito
“Crônicas dos Dias Errantes”
CARTAS: 10 LIVROS
Alguns gêneros
usam a forma epistolar com fins literários ou jornalísticos e não privados,
como a carta do leitor, a carta aberta, o poema em forma de carta, o romance
epistolar, etc. Confira alguns livros que recomendo:
01
CARTA de um DIABO
a seu APRENDIZ (1942), de C. S. Lewis.
Demônio veterano
e experimentado escreve cartas ao seu jovem sobrinho, um demônio em início de
carreira, explicando-lhe como conquistar a alma do paciente que lhe foi
atribuído, um jovem recém-convertido ao Cristianismo.
02
CARTAS a um JOVEM
POETA (1929), de Rainer Maria Rilke.
Em 1903, Rilke
recebe uma carta de um jovem chamado Franz Kappus, que aspira se tornar poeta e
que pede conselhos ao já famoso escritor. Tal missiva dá início a uma troca de
correspondência na qual Rilke responde aos questionamentos e, muito mais do que
isso, expõe suas opiniões sobre o que considerava os aspectos verdadeiros da
vida. A criação artística, a necessidade de escrever, Deus, o sexo e o
relacionamento entre os homens, o valor nulo da crítica e a solidão inelutável
do ser humano: estas e outras questões são abordadas pelo maior poeta de língua
alemã do século XX.
03
CARTAS
EXTRAORDINÁRIAS: a Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis (2014).
Mais de 125
cartas oferecem um olhar inédito sobre os eventos e personalidades da nossa
história. É uma celebração do poder da correspondência escrita, que vai do
comovente bilhete suicida de Virginia Woolf à receita que a rainha Elizabeth II
enviou ao presidente norte-americano Eisenhower; à carta em que Gandhi suplica
a Hitler que tenha calma e muito mais.
04
CRÔNICA da CASA ASSASSINADA (1959), de Lúcio Cardoso.
Contada por meio de cartas, é uma trama densa, cheia de ciúmes, rancores e perversões, numa velha fazenda no interior de Minas Gerais. Na decadência familiar, descobrem-se casos extraconjugais, atos violentos, amores proibidos, relações incestuosas.
05
FERNANDO PESSOA e OFÉLIA QUEIROZ. Correspondência Amorosa Completa (2013).
A correspondência amorosa trocada entre o poeta português e sua única namorada, de 1919 a 1935, com 156 cartas tocantes.
06
As LIGAÇÕES PERIGOSAS (1782), de Choderlos de Laclos.
Nobres franceses debatem os costumes da época de forma ácida, crítica e inescrupulosa, traçando um perfil da nobreza pré-Revolução de 1789. Contendo 175 cartas trocadas entre os personagens Visconde de Valmont e Marquesa de Merteuil, o livro é uma obra-prima da literatura erótica.
07
MEMÓRIAS de DUAS
JOVENS ESPOSAS (1841), de Honoré de Balzac
Duas jovens
mulheres francesas se tornam amigas íntimas em convento carmelita. Quando saem
do convento, porém, suas vidas seguem rumos bem diferentes. A amizade é
preservada através de sua correspondência, que continua de 1823 a 1835.
08
Os SOFRIMENTOS do
JOVEM WERTHER (1774), de Goethe.
O personagem
central envia, por um longo período, cartas ao narrador, que, em notas de
rodapé, afirma que nomes e lugares foram trocados. São confissões marcadas por
uma paixão profunda, tempestuosa e desditosa.
09
TODAS as CARTAS
(2020), de Clarice Lispector.
Correspondências
escritas pela emblemática escritora ao longo de sua vida.
10
Uma VIDA em
CARTAS (2013), de George Orwell.
A correspondência
reunida do autor de “1984” possibilita ao leitor seguir de perto seu cotidiano
pessoal e profissional.
Um comentário:
Texto comovente e informativo. Parabéns ao talentoso autor.
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