“de quem
iremos falar? Se todos os dias morrem
entre nós
os que nos faziam algum bem, embora
nunca o
bastante, sabiam, mas
contavam,
vivendo, aumentá-lo um pouco.”
W. H. AUDEN
(1907 –
1973. York, Reino Unido)
Ilustrações:
BEX PARKIN
(Reino
Unido)
Noite
assim sem nuvens, tão bonita, eleva o espírito às alturas. No fim de um dia melancólico,
desprotegido, penalizado com o suicídio de dois amigos do passado grapiúna,
sento-me para escrever sem fronteiras. Afinal, quem escreve honestamente não
teme as catástrofes e convida o leitor para um combate intelectual. Em
estupor vive o mundo: guerras, pandemias mercenárias e calúnias comunistas. No
entanto, luzes aqui e ali mostram seu brilho. Assim, escrevo para que, de fato,
a experiência do tempo e da saudade possam ser absorvidas. Penso que, um dia,
ler este e outros textos, provenientes da minha tensão de esvair-me e
cumular-me em metamorfoses, poderá proporcionar-me o eterno retorno. Por
vezes, de uma imagem que se desdobra na memória nascem robustas narrativas
atravessadas por instantes de emoção, de beleza, de vida-morte, frequentemente
com um clímax sentimental.
Tudo que
tenho é uma voz para retratar o véu romântico das entranhas. E ninguém
existe sem recordações. Sem o passado, viver quem há de? Subitamente, a mente anima
paisagens aparentemente desabitadas. E o substrato humano do mundo romântico em
ação, a pureza e a vastidão das recordações, os mistérios de mundos que nos são
familiares, mas que, no fundo, quase esquecemos, voltam em sensações animadas
num momento de intensa beleza. Deixam claro que o romântico é uma marca emblemática, virtuosa e
estúpida do meu coração contraditório. Durante décadas, imaginei a
possibilidade de encontrar o amor imortal casualmente, talvez em um bar ou numa
esquina movimentada, e seria feliz para sempre como em um conto de fadas.
Acreditava também em amizades sólidas, crente de que os amigos circulariam ao
longo dos anos por mundos opostos, mas na maturidade nos juntaríamos numa
espécie de clube, de fortaleza, de condomínio do bem. Os velhinhos outrora
devassos recordariam façanhas, amores e desenganos; dariam risadas libidinosas
e um cuidaria das mazelas do outro. Um ideal de fim de vida mais romântico
impossível.
A memória
que me falta liberta-me de amarras e muitas vezes me faz sentir nostalgia de situações
que não aconteceram, mas reais e válidas por acreditar nelas. No espaço vago da
substância esquecida crescem as coisas iluminadas. Nasci numa família
tradicional falida. Tivemos dificuldades. A falta de dinheiro era um pesadelo. Meu
pai, um advogado alcoólatra com poucos clientes. Eu estudava num colégio de bacanas,
pois um tio professor me ofertou uma bolsa. No Divina Providência, fiz amigos
endinheirados. Através deles, carros à disposição, convites para festas,
entrada livre em clube privado e boates, passeios em fazendas e casas de praia.
Trabalhava um turno como secretário de outro tio, gastando o enxuto salário em
roupas. Vaidoso, bem vestido, devia à inúmeras lojas, sacrificando-me para
pagar as prestações acordadas. Andava pra cima e pra baixo, comendo e bebendo, namorando, sem um tostão no bolso. Essa farra irresponsável durou alguns anos. Veio a
literatura de viagens e mudou tudo. Algo era, enfim, importante.
Mergulhei
no exercício do texto experimental, escrita confessional que existe para dentro
do silêncio. Escolhi, definitivamente, não ser poeira, mas vibração luminosa que
se abre à vertigem-fulgor da literatura. Tive um amigo, Salomão, incrivelmente
encantador, que lia empolgado os meus contos e poemas imaturos. A primeira desilusão
aconteceu quando ele morreu inesperadamente, em um acidente de moto, aos 20
anos. Chamava-me de “meu poeta favorito” e seu fim me perturbou, não aceitei de
forma nenhuma, invadindo o cemitério na calada da noite, destruindo flores
ainda frescas, comendo a terra que cobria o seu túmulo e chorando desesperadamente
ao declarar meu infortúnio. Meses depois, aos 23 anos, outro precioso amigo
morreu de Aids. Ao visitá-lo em Santos, disse-me, amargurado: “Fiz sexo três
vezes na vida e vou morrer. É uma injustiça, vou cuspir na cara de Deus”. Eu
nunca o esqueci. Era um moço feioso, de mente brilhante e humor inteligente.
Esses foram
os primeiros relâmpagos e arrepios malditos. Seus óbitos abalaram os pilares do
futuro condomínio geriátrico e da possibilidade de um inesperado amor a galope.
Os anos de juventude passaram. Os membros da sonhada fortaleza paradisíaca
surtaram, morreram de overdose, tornaram-se comunistas, foram consumidos pelo
câncer, cortaram relações comigo por acreditar em Jair Messias Bolsonaro. Aos cinquenta e poucos anos me vi sozinho. Decepcionado com a mediocridade generalizada,
continuei constante na fé em Deus e na própria existência. Embora saiba que a Terra
em 2022 não é um planeta nos seus melhores dias. Vale dizer, escrever é o que
me dá sustância, mantendo o terror a uma certa distância. Essa animação literária
manifesta-se numa escrita de sedução e de confronto, de atração e de lamento,
de revelações e de enigmas, de luz e de sombra, de movimento e de quietude.
Recordar duplica
as existências humanas e gera novas realidades. Potencializa o bem e o mal. Com
a maturidade aprendi que o trevoso é pouco aparatoso e sempre humano, partilha a
nossa intimidade e come à nossa mesa. Ainda jovem, um dos amigos que mais desejei bem, admirando seu charme e inteligência, na surdina era um verme. Ao vivo, sempre
cúmplice, apoiava-me artisticamente. Quando decidi viver na Europa, deu uma
sofisticada festa de despedida no seu elegante apartamento e me presenteou com 300
dólares. Nos bastidores, maligno, fez perversidades inesperadas. Que lembrança triste!
Décadas depois, drogado pelas ruas, falando ao vento, foi internado e
reabilitado, mas nunca mais foi o mesmo. Chorei ao saber da sua decadência. Na
juventude, pensava nele como o síndico da nossa fortaleza de idosos.
Entre desatinos,
continuo acreditando na importância do amor. Não é um modismo nem tampouco antiquado.
E tenho amigos leais que amo! Gente do bem com quem converso e visito
ocasionalmente. Cordial e romântico, eu jamais fui um alienado. Como cidadão
juramentado me sinto muitíssimo à vontade para conviver com a realidade. Mesmo
sem os corações do passado, vez ou outra penso na reunião dos cúmplices da efervescente mocidade. Numa nova conspiração do destino, ano passado, dois deles morreram
de doenças sinistras. A seguir, uma sorridente primeira namorada, garota belíssima de
coração suave, que grávida me convenceu a levá-la a clínica de aborto do doutor
Wilson Telles, um carniceiro, e eu aos quinze anos não soube lutar pelo meu
filho, partiu depois de meses de sofrimento de um câncer avassalador.
Com o
condomínio afetuoso em ruínas, terei forças para seguir em frente e contar nossas
narrativas para os fantasmas? Esta semana soube do óbito de mais dois membros
dessa fortaleza. Não tinham nem 50 anos. Conheceram o mundo, fizeram sexo com
muitos e foram vencidos pela solidão e drogas. Deprimidos, enforcaram-se. Meu
Deus, por que? É tão cruel! Meu maior amigo português, Nuno Cassimiro,
enforcou-se numa árvore num jardim bucólico. Meu maior amigo em Londres, Ricardo Ramirez, enforcou-se numa fábrica abandonada ao lado do
Tâmisa. Meu maior amor, Morvan, enforcou-se à beira mar. Agora Moisés e Lúcio
enforcam-se no Arraial da Ajuda e no Recife. Não há heroísmo. Enforcar-se é covardia macabra e medieval.
Ele se
foi no calor do verão. As praias concorridas, os prazeres impávidos e o sol derretendo
as súplicas mais piedosas. O dia da sua morte foi um dia ensolarado. Terrivelmente
encantador, o leviano Moisés no fundo não se importava com ninguém. Filho de
uma família rica, incapaz de amar, foi um bom amigo em duas épocas distintas. Inicialmente,
no final dos anos oitenta, quando dava festas divertidas em seu apartamento. Ao
contrair o vírus da AIDS, todos o abandonaram, e ele partiu para Miami e eu pra
Espanha. Quinze
anos se passaram. De volta a Itabuna, reencontramo-nos. Eu o perdoei pelas antigas maldades. Separado da esposa oportunista, duas filhas, queria investir
na sua arte como escultor. Durante um ano, apareceu semanalmente em minha casa.
A gente enchia a cara de vinho, via filmes cults e comentava sobre arte e a
mediocridade da sociedade baiana. Um blá-blá-blá interminável. Os fatos eram a nossa
melhor ficção.
Moço
talentoso, aventureiro, conhecedor do mundo, bem informado, amoral. Observando
seu toque de loucura, eu desconfiava que teria um destino trágico. No nosso encontro final, Mosinho surgiu num
domingo, bem cedinho. Visivelmente ébrio, levava uma garrafa de vodka numa
das mãos. Perguntei o que estava acontecendo, respondeu estar na farra desde sexta à noite e
não podia ficar sozinho. Fiz um sermão fajuto, pedi que tivesse juízo. Ele riu,
debochado. Brincando, sugeri que apelasse à Deus. “Não preciso de Deus, sei
onde fica o paraíso”, respondeu. “Sabe? Onde?”, indaguei curioso, esperando um
tratado filosófico niilista. Ele abriu a bolsa e espalhou diversos papelotes de
cocaína no sofá.
Pouco
tenho a dizer sobre Lúcio Ávila. O conheci adolescente, ainda inocente e
belo. Eu era um pouco mais velho. Fomos algumas vezes pra cama, sem paixão ou compromisso.
Anos depois, ele casou-se com um sujeito problemático e arrogante. Foram viver
em Porto Seguro, montaram lojas de roupas chiques, ganharam grana, afogaram-se
no pó, faliram e, por fim, separaram-se. Dedicado e simpático, Lúcio trabalhou
como assessor da tosca Ivete Sangalo, no pior momento da cantora, quando estava
pra lá de Marrakesch. Ao perder o controle, ela o chutou. Certa vez
eu o encontrei em Londres. Vivendo nas terras de Shakespeare, ele apareceu à
trabalho e me convidou para assistir ao show conjunto de Ivete, Gilberto Gil,
Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Depois, no camarim, no meio da fartura de uísque
e outras coisas, Ivete passeava pra cima e pra baixo de calcinha, como se fosse
uma deusa. Então, sem saco pra aquela gente, recusei ir com eles a uma festinha
privada no apartamento de um produtor inglês. Lúcio não concordou, como se
fosse uma ofensa. Deixei claro que não curtia conviver com Ivete, Gil e Arnaldo
Antunes. Nunca mais voltamos a nos encontrar.
Considerando
a motivação que me arrasta, agradeço a sobrevivência ao meu Anjo guia. Rezo para que o amor
mais íntimo e verdadeiro cavalgue para alcançar nossos objetivos. É uma montaria
que supera a desilusão e salta obstáculos. Pois é, sempre tive uma impressão azeda
do suicídio. Embora tenha chegado a pensá-lo, no estilo Virginia Woolf, pedras
nos bolsos e afogamento num formoso rio, felizmente na ocasião não havia um rio
por perto. Defino o suicídio como maldito não pela questão moral ou espiritual,
mas por golpear emocionalmente quem fica. Infelizmente, são tempos trevosos, os
demônios estão sedentos de insaciáveis e o vazio é devastador. Conto com poucos,
a maioria dos queridos morreu ou se transformou em monstro comunista. Agora,
amadurecido e vivendo em farta paisagem marítima consoladora, sei que a sonhada
fortaleza-paraíso jamais será erguida. Resistindo ao massacre, talvez aloprado
até certo ponto, lembro com louvor amigos que foram importantes numa convivência
ingênua. Nesta noite de sortilégios, recordo benéficos momentos juntos. Ave, energia azul! Fica com Deus, Moisés, Lúcio, Papita, Márcia,
Salomão, Renatinho, Wilde, Altino, Guga, Sandrão, Chico, Vera Black, Tinho, Marcelo, Abijaude e tantos
outros! Ternamente penso em Vós.
Navego naquele estágio mais pra lá do que pra cá, e
optei em me confortar com a beleza da vida. Enxergo estrelas no infinito. Intacta, graças a Deus, a minha lua, ainda rainha dos céus, uma presença incrível. O futuro é uma incógnita e finalizo este
texto-celebração reafirmando a importância do amor. Só ele pode nos levar a um
estado suave. O objetivo é uma maturidade fértil e sem desespero: com esta
meta virtuosa, aprendo a viver no caos, reaprendo a emoção exata, a afeição e o
espanto documentado, acumulando futuros no dia a dia, dentro de uma liberdade
íntima que acredita na gratidão e na alegria de viver.
25 comentários:
Bom dia,amigo!
Li seu texto, como sempre colocando bem as palavras, agradando ou não a sua narrativa, com fatos q conhece , esqueceu de Osmário,foi chocante também. Sonhei com esse condomínio, na verdade ainda penso ser possível, pois cultivo dentro de mim amor as amizades q pra mim são para sempre, perdoando algumas q nem se quer tem discernimento, não somos perfeitos, mas fomos feitos de amor,temos que cultivá-lo ,acreditar sempre q podemos ser melhores do q somos e estamos em constante metamorfose dentro e fora ,é só se permitir.Te amo❤️
Triste…
É muito triste quando uma coisa assim acontece.
Pensei muito em vc amigo!
Que tristeza!
Tristeza...
Verdade
Fomos testemunhas das vidas destes caras. Isso é relevante.
Nada é à toa.
W. H. Auden é um dos meus poetas prediletos. Desde os tempos do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Não posso perder este texto sob sua ótica.
Que tristeza, imagino o sofrimento deles para chegarem a esse ponto, eles precisam de muita reza e luz...
Já li umas três vezes. E vou lêr de novo. E estou embaraçada...
Triste mas verdadeiro, td nas nossas vidas são as escolhas, Deus no comando!!
Muito triste.
Muito triste isso....
Lamentável. Triste.
Crônica profunda e comovente. Parabéns!
Que Deus conforte seu coração.
Muitos se perderam, achando que estavam no Paraíso.
Muito triste, ainda mas tratando de jovens!Só Deus para ter misericórdia!
Esse texto me deixou mais perto da pessoa que você é eu não o conhecia,crônica profunda e comovente. Parabéns !!!🧎♂️🙏
Meu Deus, como isso pode acontecer?
Eu li o seu texto. Me emocionei, lembrei dos meus amigos que também partiram.
Mi dispiace Antonio, ti mando un forte abbraccio !
Óbitos me Abalaram /Impactaram.
“experiência do tempo e da saudade” que lindo, Menino!
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