paris, frança |
“Solte
suas amarras. Afaste-se do porto seguro. Agarre o vento em suas velas. Explore.
Sonhe. Descubra.”
MARK
TWAIN
(1835 –
1910. Florida, Missouri / EUA)
“Se você
acha que a aventura é perigosa, experimente a rotina, é mortal.”
PAULO
COELHO
(1947.
Rio de Janeiro, RJ / Brasil)
Fotos:
ANTONIO NAHUD
Uma das
melhores sensações da vida é a de chegar em uma cidade desconhecida e traduzir os seus contornos. A língua local, os costumes, os rostos
típicos, a paisagem. Uma estrada desenhada por adivinhações,
um vestígio dos sentimentos de descoberta que os meninos vivenciam e os adultos
ignoram. Na idade madura, só o amor provoca essa novidade, esse desatino de ir
sem saber para onde. Aventureiro, agarro-me insaciável
ao desejo de viajar, descartando lugares onde meu coração não pulsa.
A viagem
é uma porta gótica escancarada, uma lâmpada que arde na escuridão sem se
apagar, um milagre como uma chuva de estrelas cadentes. É um par de asas que
substitui os pés. Nos dias de tédio, de revolta contra a sabotagem da esquerda aloprada,
de angústia provocada pela barbárie da solidão ou da limitação insuportável de
dinheiro, conforto-me com recordações transcendentes de viagens. Geralmente esqueço
os acontecimentos desagradáveis. Por exemplo, não há nada mais enfadonho do que
lembrar problemas em alfândegas, a sujeira das ruas de Roma ou a péssima comida
de Londres.
Viajar
significa guardar no coração o sublime do visto e vivido, aprender com o
incógnito ou somente fugir da rotina cotidiana? Lembro com embevecimento do
canto do Alcorão numa madrugada marroquina, o inverno nos Pirineus espanhóis, a
casa esbelta de George Orwell, os antros delirantes do Bairro Alto lisboeta, a
névoa do Lago Ness, noites lúdicas em Sintra, um encontro místico no parque El
Retiro em Madri, certas identificações com museus parisienses, um barco em alto
mar iluminado por lua cheia em Boipeba, o deslumbramento da Floresta Negra na
Alemanha, os bosques austríacos montanhosos, daiquiris em Cuba, fontes italianas,
livrarias argentinas, igrejas barrocas mineiras etc.
Deixar de
viajar é um suicídio lento. Viajar rejuvenesce a alma, aclara o pensamento. Nos
autoriza a enxergarmos diferente, sem as contrariedades e os naufrágios do dia
a dia. Nos deixa livre para sermos poéticos e até para procurar o que possivelmente
não existe. É um santo remédio contra o provincianismo, a monotonia ou a
maledicência de quem não tem mais o que fazer. Com o pé na estrada, escritores
e poetas construíram sua obra: Rilke, Michaux, Rimbaud, Ginsberg,
Whitman, Gide, Bowles etc. Sempre soube que no dia em que eu não pudesse mais
viajar, nem a viagem interior, a do leitor de livros, o mundo teria para
mim a opressão de uma jaula.
Cada
viajante tem a sua sorte. Como disse Paul Bowles e Bruce Chatwin, virtuosos
escritores-viajantes, “o importante é ser viajante, nunca turista”. O turismo
vive de vaidades, destruindo simultaneamente as cidades litorâneas do Nordeste
brasileiro, assim como as selvas da Costa Rica. Compare, por exemplo, Pipa ou
Porto Seguro, o que foram um dia e o que são hoje. Uma tragédia! Tive a sorte
de ter elegido uma profissão que me permitiu viajar. Aprecio explorar cidades além do convencional. Nunca
deixo de ir ao cinema ou ao teatro local, mesmo que não entenda o idioma.
As
igrejas e os templos fora da rota turística são indispensáveis, assim como os
mercados populares, zonas sórdidas, cemitérios, bares frequentados por
fracassados, mosteiros, castelos, bosques e rios. Não se descobre segredos em
um mundo explorado. Visitar a Torre Eiffell ou o Corcovado é redundância. Também
é inútil acumular monumentos em poucas horas, gastar fotografias, ouvir
lengalenga de guias. Bom é passear sem destino, parar, observar. É preciso
viajar para deixar a cabeça girar e exercitar o cérebro. Primeiro elegendo um
destino como se elege um amante. Haverá que pesquisar, observar, intuir, arriscar.
Conheço
gente que leva na bagagem seus vícios burgueses. Investe em compras
fantásticas, discotecas enlouquecidas, hotéis de luxo. Os cruzados da Idade
Média viajavam para salvar a alma e viver aventuras. Os turistas obcecados pelo
consumo apenas disfarçam o vazio de suas existências. Viajar é pedir pouco, apostar no inesperado, compreender que o movimento cura a
melancolia. Como dizia Robert Louis Stevenson, “quando
viajo peço somente o céu sob meu corpo e um caminho para os meus pés”.
Viajei inúmeras
vezes com o dinheiro contado. Chegava na cidade estrangeira e fazia serviços simplórios
em troca de alimentação, hospedagem ou alguns trocados. Cuidei de jardins,
carreguei malas em pensões e albergues, fui ajudante de cozinha, colhi laranjas
e uvas, trabalhei em tavernas, ajudei a carregar mesas e cadeiras para shows
etc. Valia a pena. Nunca ficava mais de uma semana e nas horas vagas conhecia o
lugar. O meu trabalho mais estranho aconteceu no Reino Unido, num inverno
rigoroso, numa granja onde eu passava o dia depenando dezenas de perus. Era uma
Torre de Babel. Ao meu lado, croatas, chineses, marroquinos e italianos.
Ninguém entendia ninguém. Com o bom dinheiro que recebi, passei quinze dias
viajando pela Irlanda, País de Gales e Escócia.
Pela
primeira vez em Londres, hospedei-me no apartamento de um amigo de infância, um
escultor, na agradável Wimbledon. Ele preparava jantares impecáveis, dava dicas
das melhores galerias e me apresentou aos debates na BBC da inteligente
Germaine Greer. Foi válido, mas não era bem o que eu queria. Mudei-me para um
prédio vitoriano invadido por jovens, sem energia elétrica, aquecimento ou água
canalizada, num turbulento bairro de negros e imigrantes: Elephant and Castle.
Do meu quarto no último andar, iluminado por velas em candelabros, escrevi
poemas e organizei reuniões festivas. Uma experiência enriquecedora, e eu somente
o abandonei quando neo-nazistas ameaçaram atear fogo no local. Dias antes haviam queimado uma família de hindus.
Perigos
existem, mas o êxito de uma viagem depende principalmente do aprendizado e da entrega
apaixonada, e nada disso se encontra em grupos turísticos, hotéis requintados
ou numa loja de souvenires. Sempre deixei de lado mordomias e apostei no misterioso.
Viajava sem problemas. Com a experiência de anos como
viajante, a vida floresceu, completando a peça que faltava no
quebra-cabeças interior. Entre outras coisas, porque a memória - intelectual,
espiritual, erótica - tornou-me um cidadão do mundo.
Atualmente
não tenho reservas financeiras para viajar nem juventude para me arriscar. Vivo
no limite. Isso me desgasta, me envelhece. Viajar é fundamental para a
felicidade. A última viagem que fiz foi em 2017. Estive na Espanha e Suíça. Foi
uma experiência milagrosa, embora na época eu estivesse possuído por uma sonífera
depressão pós-morte de Morvan. Lembro especialmente de Sevilha. Uma bela cidade
que se caracteriza por seus bairros antigos preservados, suas cores, suas
laranjeiras carregadas de frutas, suas ruas pitorescas, pelo céu azul e pela
luz peculiar. Some-se a isso sua história e personagens literários.
Quando a
conheci pela primeira vez em 2004, Sevilha já possuía fortes conotações
culturais para mim. Desde sempre, era o local que eu associava a Carmen, a
Velázquez - que nasceu na cidade –, à figura de Figaro e à estória de Don Juan,
que inspirou Molière e Mozart. Ao passar ao longo do muro da antiga Real
Fábrica de Tabacos, atualmente sede da Universidade, pensava que é lá onde
trabalha a fictícia sedutora Carmen e cantarolava alguma ária da ópera de Bizet.
Cervantes
menciona Sevilha frequentemente em sua obra. Caminhando pela cidade, vi duas
placas, ambas de azulejos, comemorando o escritor. Em 1999, em entrevista
publicada pela revista “Sibila”, o poeta João Cabral de Melo Neto, que morou em
Sevilha mais de uma vez e dedicou a ela os poemas recolhidos no livro “Sevilha
Andando”, perguntado sobre que imagem lhe vinha à cabeça quando pensava na
cidade, respondeu: “Acho que é a calle Sierpes, a rua principal. Chama-se
Sierpes por isso, porque ela não é reta”. Haverá forma mais bonita de celebrar
uma cidade do que o famoso poema dele “Sevilhizar o Mundo”?
Como é
impossível, por enquanto,
civilizar
toda a terra,
o que não
veremos, verão,
de certo,
nossas tetranetas,
infundir
na terra esse alerta,
fazê-la
uma enorme Sevilha,
que é a
contra-pelo, onde uma viva
guerrilha
do ser, pode a guerra.
Ainda em
Sevilha, caminhando ao acaso, encontrei uma placa de azulejos colocada em
homenagem ao poeta Antonio Machado, nascido na propriedade em 1875, pois seu
pai era advogado ou administrador dos Duques de Alba, que alugavam casas no
recinto de seu palácio. Ver essa homenagem a Machado foi comovente para mim
porque, na adolescência, em Itabuna, minha professora de literatura era
admiradora de sua poesia e muitas de suas aulas eram passadas dissecando obras
suas. Anos depois, morando em Barcelona, visitei seu túmulo em Collioure, na
França.
O grande Antonio
Machado, nascido no Palacio de las Dueñas e que depois de se mudar para Madri,
em 1883, aos oito anos de idade, nunca mais moraria em Sevilha, lembraria-se
para sempre, como mostra sua poesia, dos “naranjos encendidos”, do “limonero
lánguido”, do “encanto de la fuente limpia”, da “tarde alegre y clara”. Seus
versos fazem referência a Sevilha, fonte para ele de paz, beleza, harmonia.
Mesmo estrangeiro e de passagem, senti o mesmo que o poeta.
Conheço bem
o Brasil. Gostaria de revisitar certos países e algumas cidades brasileiras.
Sem grupos turísticos, sem parceiros, eu e a vontade de contemplar o belo. Talvez
não seja possível. Talvez as oportunidades tenham passado. Mas não há queixas.
Com poucos recursos, vi e aprendi muito mais do que muitas pessoas afortunadas.
E a vida segue. A morte, quem sabe, pode ser uma grata surpresa. Talvez com
lugares formosos para conhecer e guardar eternamente no espírito, sem a
necessidade de dinheiro no bolso ou a preocupação capenga de pagar contas ou
não morrer de fome. Ah, aqui encerro esse êxtase viajante, garantindo que
viajar me tornou um homem modesto. Vi o lugar minúsculo que ocupo no mundo.
Portanto, fica a recomendação: viva, viaje, aventure-se, abençoe e não se
arrependa!
ÁLBUM de FOTOGRAFIAS
Barcelona
(Espanha), Sintra e Lisboa (Portugal), Granada (Espanha). Gruyères e Genebra
(Suíça), Aix-en-Provence e Paris (França), Tânger (Marrocos), Veneza (Itália) e
Salvador (Bahia).
36 comentários:
Muito bom.
Adorei esse blog. Li os artigos sobre HH e vou achar um tempo para ler muito mais!
Amigo,
li o Elogio da Viagem e fiquei encantada, cada palavra calou fundo no meu coração. Que coisa linda é compreender de forma subjetiva toda a beleza e com que talento flui o seu texto e como você consegue traduzir os sentimentos da nossa alma de forma tão sincera.
Senti a sua viagem, viajei com vc e deu uma saudade danada de viajar sem dia de voltar... Beijos
Que texto rico de tudo que é essencial a vida prática bem como a espiritual, passando pelo conhecimento cultural gigantesco que você adquiriu.
Suas viagens são de um transcendentalismo emblemático. E quem pega carona, se tiver uma boa alma, leva parte dos seus afortunados dons na bagagem.
Amei!
Memórias de uma época enriquecedora, trazidas na bagagem experiências inesquecíveis. Uma bela homenagem a cultura dos países, de suas origens relatada por uma história de vida que merece respeito e o reconhecimento do profissional que és.
Que boas e novas experiências pelo mundo ainda te presentei com o devido valor que tens.
Rejuvenesce e autoriza-nos mesmo.
Parabéns meu amigo querido e patriota!!!!!
Parabéns A. Nadud, vc é um homem admirável! Boa noitee
Que lugares lindos!!viajar faz um bem enorme!!Adoro !
Simplesmente!!Espetacular!!Parabéns pela Coragem!!Raridade!!!
Viajar é muito bom! Que bom que você aproveitou!!
Maravilha viajar é muito bom
Li e gostei muito, você é o cara! Parabéns!!!
Que maravilha!!!
Felicidades amigo
Valeu obrigado ótima viagem !!!
Não existe nada melhor que viajar!
Viajar é sempre uma nova aventura! Adoro!
Amigo VC é um grande poeta admiro muito é inteligente e sabe aproveitar os momentos bons que a vida nós oferece,está certo isso tudo é TBM um aprendizado um ABS carinhoso ❤️🌹🇧🇷
Passeando com carinho e calma no seu blog… as primeiras linhas já me encantaram…👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Parabéns amigo, viajar é uma das melhoras coisa da vida !!!
Maravilhoso....é um sonho realizado na sua vida. Parabéns amigo .
Q homem lindo vc é, amigo 😘
Logo que eu possa vou voltar a viajar, é maravilhoso parece que a a gente estaciona as coisas ruins e vive só aquele momento maravilhoso!🌺😘
Divirta-se meu amigo tudo passa tão rápido que a gente as vezes esquece
Até de viver. O que a vida nos reserva.
um ótimo dia cheio de luz 🤗.
Que maravilha!!!
Parabéns Antonio Nahud 🏆👏🇧🇷🙏💝❤️
Show parabéns
O seu blog é 💖. Amo! O texto sobre viagens é sensacional. Palmas.
Parabéns patriota!
Vc é muito chic adoro em te conhecer e ser seu amigo bjos saudade
Adoro viajar Antônio. Agora não posso, não sou vacinada. Um dia vou te conhecer, vejo que temos afinidades, tbm gosto de plantas
Deus te abençoe 🙏🙏🙏
Que MARAVILHA de Constatação amigo , á cada dia aprendo mais com vc !🙏
..."vi o lugar que ocupo no mundo"
Adorei !!!
Viajar é ótimo!! Te faz descobrir o quão a vida é maravilhosa!!
Que Deus te abençoe e proteja!!
Caríssimo Nahud, sua escrita leve e precisa, coincide com uma viagem que acabei de fazer aqui mesmo no Brasil.
Fui buscar uma amigo de 94 anos de idade em Aracaju-SE, terra de sua infância.
Comi amendoim cozido pelas calçadas do mercado público, andei desprevenido, sem medos.
A limpeza da cidade é o capricho pelo patrimônio histórico me fez parar nas calçadas, mirar as linhas arquitetônicas, a cultura, a cara e os gestos das pessoas nas ruas.
Me hospedei em um dos hotéis que fora construídos décadas atrás.
Era perto de tudo.
Ouvia os relatos do meu bondoso quase centenário amigo, o olhar dele emanava o brilho de criança.
Olhe ali, aquela casa, apontava emocionado, morava um amigo meu de infância.
Ali na frente, apontava com a emoção, é a Biblioteca onde ia ler as inúmeras obras que me poliu o saber.
E ele quando passava na antiga sede dos Correios a lágrima correu na face: ALI MEU PAI EWXREVIA CRONICAS, já tenho seis livros prontos para publicar, amigos meus de infância estão me ajudando.
Falava ele, com orgulho, do pai, escritor e jornalista que tanto retratou em textos a Aracaju ddas décadas de 20, 30 40... e hoje, após essa viagem sem roteiro, busca ler cada página daquela cidade limpa e caprichosamente zelada.
Obrigado pelo texto caríssimo Nahud, que seus escritos nos impulsione a caminhar pelas cidades com a curiosidade necessária para a percepção da vida.
Ubuntu!
Pedro George de Brito
Mês de Sant'Ana, 2022.
Imaginando os acordes do hino de Sant'Ana de Caicó-RN enquanto avistava os costumes e o povo de Aracaju-SE.
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