ESCRITA, BEBIDA e SOBREVIVÊNCIA
Siempre es así. Cuando crees que la tierra está exclusivamente
poblada por Mierdas, encuentras una perla
WILLIAM S. BURROUGHS
(1914 - 1997. San Luis, Missouri / EUA)
Marica (1985)
Fotografias:
EMMANUELLE MARCHADOUR
Bebia como um condenado, e sempre
retratou sua própria vida nas histórias que escrevia. Sua trajetória mistura a
jornada entre os gordos cheques dos estúdios de cinema e o foco na carreira
literária. Esse é JOHN FANTE (1909 - 1983), figura lendária da literatura
norte-americana. Seu pessimismo gritante e humor cáustico, tanto em
sua vida como em sua obra, refletem uma rebelião contra a sociedade
convencional. “Guru” de talentos reconhecidos como Raymond Carver e
Charles Bukowski, sua criação é uma das mais inovadoras da
literatura contemporânea. De olho no cotidiano, ele lançou o chamado
“realismo sujo”.
Segundo disse, tentou “ser o melhor escritor do mundo”.
Deixou como legado pelo menos duas obras extraordinárias, “Pergunte ao Pó”
(1939) e “Sonhos de Bunker Hill” (1982), que estavam entre os livros preferidos
do gaúcho Caio Fernando Abreu. Hollywood desperdiçou o talento de JOHN FANTE,
reduzindo-o a um mero roteirista de encomenda sem qualquer obra cinematográfica
de substância. Após ver um filme roteirizado por ele, “Pelos Bairros do Vício / Walk on the Wild Side” (1962), saboreando café
com conhaque, no primeiro ano da década de noventa, conversei com
Caio Fernando Abreu sobre a narrativa e a caracterização dos personagens do pai de Bandini. Sua violenta energia e visão de mundo são admiráveis.
Defensor fervoroso de Fante, o papa do underground
literário Charles Bukowski se ocupou durante toda a vida, e com afinco, de
evidenciar o importante que para ele era a obra de JOHN FANTE, um escritor considerado
até então medíocre, carente de recursos, um desconhecido. O romance “Pergunte
ao Pó” vendeu apenas 3 mil exemplares quando lançado, porque o editor não tinha
dinheiro para divulgá-lo. Em 1980, veio a reedição com prefácio de Bukowski e a
descoberta mundial. Um estranho na terra prometida, feito um santo ou um
criminoso com ordem de busca e captura, o escritor nada tinha a perder, e numa rotina
encharcada de álcool, escreveu a vivência dos derrotados. Acabou seus dias em
uma confortável casa em Malibu, na Califórnia, cego, com as pernas amputadas
devido a diabetes que padecia, mergulhado num coração ferido, apostas e ditando romances para a mulher, a poetisa com interesse em magia
branca, Joyce Smart.
Nascido em Denver, Colorado, o jovem candidato a escritor enviou
um conto ao famoso H. L. Mencken, editor da revista literária “The American
Mercury”, que foi publicado. Para ganhar a vida e sustentar a numerosa família
de quatro filhos, que nunca levou a sério, trabalhou em Hollywood roteirizando
filmes, vendendo a alma ao diabo e publicando apenas quatro livros em quase
quarenta anos. O segundo deles, “Espere a Primavera, Bandini”, de 1938, conta
com o irresistível protagonista alter ego do autor, Arturo Bandini. Lembro-me
adolescente, trabalhando num escritório de arquitetura para pagar os estudos,
identificado com as peripécias de Bandini, sonhando em viajar, vivenciar aventuras e escrevê-las.
Em 1952, JOHN FANTE obteve sucesso comercial com o romance “Um
Casal em Apuros”, e a adaptação para o cinema o levou a nomeação ao Oscar de
Melhor Roteiro. Em 1957, passando temporada em Roma, convidado pelo poderoso
produtor Dino De Laurentiis, morava em um apartamento renascentista, com chofer
e criada. A meta era desenvolver um roteiro - nunca rodado - sobre São Genaro.
Na época, foi contratado por um decadente Orson Welles como colaborador de um
programa radiofônico patrocinado por uma firma de cosméticos. Para o diretor
Michael Curtiz (“Casablanca / Idem”, 1942) cobrou 350 dólares por uma hora de trabalho em uma cena de “São Francisco
de Assis / Francis of Assisi” (1961). Federico Fellini também tentou
tê-lo como
parceiro, mas não houve acordo financeiro.
Pouco antes de morrer, aos 74 anos, justamente quando seus livros
voltavam a ser publicados, escreveu “1933 Foi um Ano Ruim” (1985), “Rumo a Los
Angeles” (1985) e “A Oeste de Roma” (1986). “Dago Red”, de 1940, foi reeditado
em 1985 como “O Vinho da Juventude”. Passou a infância basicamente no triângulo
escola-família-igreja. A juventude foi dura. Criou-se num lar entre
intermináveis discussões, falta de dinheiro, insultos xenófobos e manifestações
anti-católicas, defendendo-se do hostil mundo exterior com frequentes brigas e
a prática do boxe. Herdeiro do espírito aventureiro paterno, trocou
a igreja pela biblioteca pública, começando a escrever aos 20 anos. Cansando-se
da universidade em seis meses de frequência, mudou-se para onde
se tornaria um dos seus cronistas, Los Angeles.
Sua sobrevivência cotidiana com a mente direcionada para
converter-se em uma “celebridade das letras” está impressa em seus vigorosos relatos.
À imagem de Knut Hamsun, um dos seus escritores favoritos, passou fome,
vagabundeou sem descanso, habitou sórdidos motéis, envolveu-se com garotas nada
sérias, trabalhou em uma fábrica de conservas, e se embriagou todos os dias,
montando escândalos públicos e proclamando-se um gênio incompreendido. Em busca
do reconhecimento do talento, uma máscara para esconder uma espantosa
desintegração social, coseu com humor macabro as experiências dramáticas de
Arturo Bandini, um escritor-filósofo malandro e vaidoso protagonista de uma sublime
tetralogia.
A crescente reputação como criador de histórias, de emotividade
à italiana, abriu para ele as portas dos estúdios. Livre da fome e de roupas remendadas,
pagou o preço do conforto atando-se a melodramas cinematográficos baratos, muitas
vezes parodiando sua própria origem, em títulos como “A Vida Tem Dois Aspectos /
East of the River” (1940), sobre o bairro nova-iorquino Little Italy. Como
roteirista ganhava mil dólares por semana, mas foram filmados apenas oito
de seus trinta roteiros, aos quais desprezava. Francis Ford Coppola projetou
adaptar “The Brotherhood of the Grape” (1977), que o escritor considerava o seu
melhor trabalho e aquele que o havia feito chorar mais. Retrata uma rude figura
paterna em uma família italiana em crise. Mesmo com contos em
revistas importantes, como “Harper´s” e “Esquire”, seus romances foram durante
muito tempo recusados pelas editoras.
Bebedor incontrolável, péssimo pai e marido, JOHN FANTE podia acabar
a noite falando porcarias com um companheiro ébrio da talha do premiado com o Nobel
William Faulkner ou destruindo seu Plymouth contra um poste telefônico de
Hermosa Beach. Em entrevista, um dos seus filhos, Dan, afirmou: “Não era um cara
legal.”. As memórias tumultuadas da relação pai e filho foram parar em livro.
“Meu pai teve muito azar, mas ele também construiu sua própria má sorte. Era um
homem muito difícil, insultava pessoas. Não era nada político”, garante Dan
Fante. Caprichoso, o escritor teve um jaguar, um pit-bull branco de nome Rocco
e uma Baretta calibre 22. Entre um romance e outro, o tempo não jogou limpo com sua ambição de reconhecimento literário.
O diagnóstico de diabetes em 1955 fez com que sua carreira tomasse
um baque. As complicações da doença ocasionaram cegueira. Mas não foi desculpa
para que ele parasse de escrever. Passou então a ditar
as histórias para sua mulher, Joyce. O editor de poesia do jornal “Los Angeles
Times”, Ben
Pleasants, e Charles Bukowski resgataram JOHN FANTE do anonimato. Fascinado
pela leitura de “Pergunte ao Pó”, Bukowski rodou o bairro de Bunker Hill, onde se situa o esfomeado Arturo Bandini, para se sentir como o personagem por um
dia. Seu alter ego, Henry Chinaski, manifesta em “Mulheres”
(também em “Pedaços de Um Caderno Manchado de Vinho”), que seu autor preferido
era John Fante. “F-A-N-T-E”, enfatiza. Por fim, Bukowski convenceu a Black Sparrow Press a republicá-lo, após anos de esquecimento. Ele visitou o
ídolo no hospital e lhe dedicou “Love is a Dog from Hell”: “Para Fante, que me ensinou como. Hank”.
A biografia de JOHN FANTE foi publicada por Stephen Cooper em 2000. Ele faz parte da nata literária dos anos 1930-40 de
escritores que viveram do ofício de roteirista de Hollywood. Gente do naipe de Raymond Chandler, Nathanael West, Budd Schulberg,
Faulkner, F. Scott Fitzgerald, James M. Cain e Dorothy Parker. Não seria
nada mal tomar uma taça de vinho tinto seco em sua memória. Que
viva o mestre!
Barcelona, Espanha
09 de julho de 2005
CINCO FRAGMENTOS de “PERGUNTE AO PÓ”
O mundo era pó e ao pó voltaria.
Tudo o que era bom em mim me
emocionou naquele momento, tudo o que eu esperava do profundo e obscuro
significado da minha existência. Aqui estava a placidez interminável e muda da
natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas
ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a
areia eterna uma vez mais.
Tornava-me um estranho dentro de
mim, era como todas aquelas noites calmas e os altos eucaliptos, as estrelas do
deserto, aquela terra e aquele céu, aquele nevoeiro lá fora, e eu viera para cá
com nenhum propósito exceto o de ser um mero escritor, ganhar dinheiro, ser
reconhecido e toda aquela baboseira. Ela era melhor do que eu, tão mais
honesta que fiquei enojado de mim e não podia enfrentar seus olhos
cálidos.
Não fiz perguntas. Tudo o que eu
queria saber estava escrito em frases torturadas na desolação do seu
rosto.
Saí para uma caminhada pelas
ruas. Meus Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei os
rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de
sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de
suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu
tinha que sair daquela cidade.
8 comentários:
Da ponta dos dedos direto para o coração.
Lindo texto...prazeroso de ler como tudo o que vc escreve,parabéns.
Que Deus te conserve sempre assim: escrevinhador de emoções, garimpando sentimentos ocultos em seus leitores...
Excelente..Muito bom!@!
Amooo seus textos. Me faz viajar para dentro de mim...
Muito muito bom...
...na verdade eu temo mais aos "bem adaptados" à uma sociedade hipócrita e doente...
Grande escritor e inspirador de outros como Burroughs ,Bukoswki e o pessoal riponga
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