Deter-me aqui. Vislumbre um pouco
a natura.
O rútilo blau do mar matutino,
a abóboda sem nódoa, a orla ocre.
A tudo
embeleza a luz efusa.
Deter-me aqui. Me iluda um tal
panorama
(verdade: estático, o vi fugaz);
um tal, e não, também aqui, as
fantasmagorias,
as rememorações, a luxúria das
miragens.
KONSTANTINOS KÁVAFIS
(1863 - 1933. Alexandria / Egito)
Mar Matutino
Fotografias: HERBERT LIST
(1903 - 1975. Hamburgo / Alemanha)
PELLA, MACEDONIA
Este é um tempo estranho. Optamos por uma máxima que diz que tudo
já foi feito e qualquer tentativa de novidade é, portanto, inútil. A Terra
segue explorada até seus confins, o oceano profundo está fora do nosso alcance e
o infinito Universo é um desconhecido. O capitalismo é ambíguo, mas é o que se ajusta
melhor aos nossos caprichos. Pobres haverá sempre, como disse Jesus Cristo,
embora não falasse com resignação. Sair às ruas não é recomendável nesta época de
terrorismo e violência. Por exemplo, a troca constante de tiros entre policiais
e traficantes, nos morros do Rio de Janeiro, apavora. Para evitar esse tipo de
infortúnio, existe a internet. Aquele que anseia alguma forma de experiência
limite, que se inscreva em um reality show. E os artistas, que sejam fotografados
e comentados entre as migalhas dos grandes do passado. Nenhum escultor superará
Michelangelo. Nenhuma atriz de cinema terá a luminosidade da alemã Marlene
Dietrich. Nenhum brasileiro escreverá um romance superior a “Grande Sertão: Veredas”.
Existe a possibilidade de situações mágicas, em que o mundo e as
pessoas se tornam sensatos, criativos e até solidários. O verão europeu, ou
melhor, qualquer espécie de férias em qualquer lugar, é propícia para a
felicidade. É revigorante ver rostos belos de diversas raças em um mesmo
espaço. Como se Dionísio deixasse o exílio e fizesse a festa acompanhado por um
cortejo de Sátiros, Silenos e Bacantes. Os estrangeiros nunca adivinham que
venho do Brasil, acham que sou árabe ou cubano, como se fossem a mesma coisa. Em
algumas situações, sinto-me exótico como Sophia Loren em Hollywood, mesmo não
tendo olhos verdes. Visto batas brancas, verdes e violetas; pinto os olhos de
henna como os gregos ou os mouros, uso brincos ciganos de prata e converso em
outros idiomas sem evitar o sotaque baiano.
Em Pella, ao norte da Grécia, escrevo na cabine de uma furgoneta
azul-turquesa chamada Vênus. Sam, o bonitão amigo ruivo neozelandês que conheci
em uma estação de trem, prepara tortilla
na churrasqueira ao lado do jardim de oliveiras. Ele nasceu numa fazenda de
gado e agora corre mundo. Logo irá a Ibiza, eu a Chechaouén, no Marrocos. É um
desses encontros cúmplices e fugazes tão comuns nos verões da juventude.
Durante o dia, o sol brilhou com força e as rodovias estavam vazias. À noite,
as Persêidas ou “As lágrimas de San Lorenzo”, uma chuva de meteoritos que
acontece nesse momento do ano, acende o céu em milhares de pontos de luz. Situação exata para contatos do Terceiro Grau. Se eles sabem que eu sei que sou
observado por que não se aproximam? Creio que tenho visto demais a filmes de ficção-científica.
Um cão magro brinca com um pedaço de pau, enquanto leio sobre a
morte de Bernard Levin, brilhante comentarista do jornalismo britânico.
Extravagante e contraditório, insolente e ao mesmo tempo inseguro, Levin era mais
odiado que admirado. Na tevê, usava a técnica da agressividade intelectual para
amedrontar seus entrevistados, desvendando verdades. Não era superficial e
vaidoso como Jô Soares. Foi cuspido em público no intervalo de uma representação
teatral e um entrevistado partiu a sua cara ao vivo por uma crítica
especialmente cruel contra sua mulher. É da turma da escrita culta e afiada
como uma lâmina, que inclui, entre outros, Ring Larder Jr., Budd Schulberg, H.
L. Mencken, Dorothy Parker, Gore Vidal, Tom Wolfe ou os brasileiros Paulo
Francis e Sérgio Augusto. Seus desafortunados imitadores chovem aos montes, e
no nosso país Diogo Mainardi é a atual versão Frankenstein.
De um só gole viro a taça de vinho dos deuses, homenageando Levin.
Pella é a terra natal de Alexandre Magno, o Grande. Convivi intimamente com ele
lendo uma série de livros sobre a sua vida, inclusive o fabuloso “O Garoto
Persa / The Persian Boy” (1972), de Mary Renault. Plutarco conta que o
nascimento de Alexandre foi precedido por visões e prodígios. Teve lugar no mês
de Hecatombeón, que os antigos macedônios chamavam Loo e nós agosto, e
coincidiu com aquele incêndio que destruiu o famoso templo da deusa Artemís, em
Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Num pequeno museu local admirei
a cabeça de Alexandre representado como um jovem efebo. Falta o nariz e é
idêntica a outras que vi em museus e publicações. Alexandre foi um dos primeiros
a se preocupar com a imagem pública, o marketing político que hoje acaba em
grandes saques nos cofres públicos. Teve seus próprios escultores e pintores,
que reproduziam sempre o mesmo retrato. Não mostra a um homem, e sim a um
ideal, um deus. Nunca conheceremos sua aparência real, nem sequer aqui, no
lugar em que nasceu.
O ator Colin Farrell interpreta o herói no filme do polêmico
Oliver Stone. Quando perguntado se os amores homossexuais do bravo conquistador
seriam abordados na história, ele respondeu: “Como pano de fundo,
discretamente. A sexualidade de Alexandre não é fundamental para o nosso
filme”. Como assim? Desde quando a sexualidade de um protagonista não é
importante para o cinema norte-americano? Caso fosse mais uma das versões da vida
de Cleópatra, ela faria sexo com Júlio César e morreria de amor por Marco
Antônio. O recinto arqueológico de Pella, situado numa região sagrada e onde se
coroavam e enterravam reis, está contaminado por abomináveis turistas, desses
que fazem selfies o tempo inteiro e visitam
monumentos sem nem mesmo saber quem foi Bucéfalo. Além disso, as ruínas não são
nada extraordinárias, e do que um dia foi uma grande cidade, restam
umas poucas colunas em pé.
Estar na furgoneta Vênus admirando estrelas cadentes na penumbra, ao
lado de um belíssimo ruivo desnudo, comendo
tortilla de batatas e pensando no jovem que se lançou a conquista do mundo
e a uma vida apaixonada em apenas 32 anos de existência, é admirável e
revigorante. O próprio ar vibra com o poder da imaginação. Vivo o sonho de uma
noite de verão. No céu, as velozes Persêidas são flechas de fogo desenhando uma
luminosa trajetória de poucos segundos. Entre 20 de julho e 20 de agosto,
quando a Terra cruza a órbita do cometa Swift-Tuttle e suas partículas entram
na atmosfera terrestre, essas populares estrelas cadentes da constelação de
Perseu podem aparecer em toda parte. O melhor lugar para observá-las é qualquer
lugar, quando mais escuro melhor. É um assombroso espetáculo de luz e cor!
Portanto, caro leitor, não seria melhor desligar o computador e ir para o
campo, as montanhas, uma praia deserta ou a Chapada Diamantina e enxergar a
beleza da tempestade de estrelas cadentes?
Do livro SE um VIAJANTE numa ESPANHA de LORCA (2005)
ANTONIO NAHUD
Coimbra, Portugal.
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