novembro 14, 2020

................................... GUNNAR EKELÖF: SOLIDÃO e SONHOS



ILUSTRAÇÕES:
ALVIN LANGDON COBURN
(1882 – 1966. Boston, Massachusetts / EUA)

 

Considerado um dos maiores poetas suecos, GUNNAR EKELÖF (1907 – 1968. Estocolmo / Suécia) estudou línguas orientais em Londres e Upsala, e música em Paris. Participou nas revistas literárias “Spektrum” e “Karavan”.  Crítico literário em diversos jornais e revistas. Tradutor de Mallarmé, T. S. Eliot, Baudelaire, Rimbaud, Malraux. Ingressou na Academia sueca em 1958.

Lembrado como o primeiro poeta surrealista da Suécia, sua estreia literária se deu em 1932 com a antologia “Tarde na Terra”, escrita durante sua prolongada estadia em Paris nos dois anos anteriores. Autor de vasta obra, é amplamente lido entre os poetas modernistas escandinavos e é um clássico da poesia sueca.

Depois de uma fase inspirada pelo surrealismo francês, enveredou por uma via modernista, sofrendo mais tarde a influência da filosofia oriental. Na sua obra, destacam-se “Non Serviam” (1945) e a trilogia “Divã”, escrita na década de 1960 e reconhecida como seu legado poético máximo. Nela manifesta sua paixão pelo Oriente e se concentram seus temos favoritos: solidão, amor, morte e sonhos.

Segundo Marianne Sandels, o poeta GUNNAR EKELÖF “foi mestre na arte de descrever os sabores do Verão, a neblina que se ergue sobre os pequenos lagos à noite, os prazeres simples da vida rural, que lhe permitiam comungar com a Natureza. (...) Este amor pela paisagem sueca, embora simples e discreto, podia na verdade compensar a sua falta de entusiasmo pela «nova» sociedade sueca que então surgia”.


01
APOTEOSE 

dá-me veneno que me mate ou sonho de que viva
a asvese em breve parará nas portas da lua que o sol
abençoou
e já desligados do real os sonhos do morto
deixarão de queixar-se do destino.
 
pai a teu céu devolve os olhos como
uma gota azul no mar
o mundo negro já não se curva às palmas
e aos cânticos de salmos
mas ventos milenários penteiam o cabelo aberto das árvores
fontes aplacam a sede do viajante invisível
os quatro quadrantes do céu estão vazios em redor da essa
e a musselina dos anjos se transforma
por um toque de mágica
em nada.

02
CADA HOMEM é um MUNDO 

Cada homem é um mundo, habitado
por seres cegos em obscura rebelião
contra o rei eu que nos governa.
Em cada alma há mil almas prisioneiras,
em cada mundo há mil mundos soterrados
e esses mundos cegos, subterrâneos
são vivos e verdadeiros, ainda que imperfeitos,
tão certos como eu sou real. E nós, reis
e príncipes dos mil possíveis que há em nós,
somos ao mesmo tempo servos, prisioneiros
de algum ser maior, cujo ser e essência
compreendemos tão pouco como o nosso superior
ao seu superior. Da sua morte e do seu amor
se tingiram os nossos próprios sentimentos.
 
Como quando um enorme navio passa
ao longe, sob o horizonte, onde o mar é
o espelho de entardecer.  – E não sabemos dele
até que chega o seu ondular à praia,
uma onda primeiro, depois outras e muitas mais
que rebentam num murmúrio até que tudo fica
como antes. – No entanto, tudo é diferente.
 
Assim somos nós, sombras, presas de uma estranha inquietação
quando algo nos diz que viajamos,
que algum dos possíveis foi libertado.

03
CONSIDERAMOS, PENSAMOS, SUSPIRAMOS, FALAMOS

Não posso contemplar os países meridionais
sem ver também o burro, o boi e a ovelha
as galinhas presas pelas patas em molhe, abandonadas
em ambos os lados da grelha da motocicleta
com as cabeças para baixo, paralisadas, cacarejando debilmente
o cordeiro com a carcaça aberta e depois cosido
com o espeto metido pelo cu e a dolente cabeça esfolada
sobre o carvão
e com os intestinos, kokorétsi, numa grelha próxima
o branco e manso boi sob o jugo, emparelhado com uma vaca
praticamente infinitos na Toscânia
ao asno gritando como uma porta de celeiro por olear
mas também trotando sob o peso de uma família inteira
ou sob um feixe de ramos grande como o universo
pássaros aos molhos que poderiam ter cheio o espaço com
a nossa nostalgia
esses seres que nos alimentam, nos vestem, nos transportam
resignados sob nós, talvez perdoando-nos
esses são os verdadeiros cristãos!

04
CREIO no HOMEM SOLITÁRIO

Creio no homem solitário,
naquele que solitário vai caminhando
que não corre, como um cão, para o seu faro,
que não foge, como um lobo, ao faro do homem:
Ao mesmo tempo homem e anti-homem
 
E como conseguir que assim se harmonize?
Foge dos caminhos mais altos e dos mais aparentes!
Aquilo que é rebanho nos outros é-o também em ti.
Vai pelos caminhos mais baixos e íntimos:
Aquilo que é fundo em ti é-o também nos outros.
 
É difícil habituar-se a si próprio.
Difícil é desabituar-se de si próprio.
Aquele que o consegue, contudo, nunca sera abandonado.
Aquele que o consegue, contudo, sempre ficará solidário.
O não prático é a única coisa prática
com duração.

05
De “O LIVRO do SUICÍDIO”

Calma. Basta de palavras duras. Já não resta muito de mim
Não chores por mim. Aqui já não há fogo que apagar
Não me olhes. Sou uma ruína, em qualquer instante derrubar-me-ei
Não quero que me vejas a derrubar-me
Já não resta sensação alguma do meu eu, do meu peso
Perco o pé, flutuo no ar. Aqui a força da gravidade da terra e
a do céu anulam-se mutuamente
Já não me resta sensação alguma do que sou e do que não sou
Olho em volta: sou eu este? ou aquele?
Não chores por mim, aqui já não há fogo que apagar
Estou-me a repetir, mas isto que escrevo agora é tudo
tudo o que tenho
Acaso é culpa minha? Apenas sou uma pedra que alguém atirou,
um pedaço de madeira que alguém talhou
Desculpo-me. A culpa não é de ninguém, é minha e não de alguém
Escrevo isto lentamente, refletindo: é tudo o que tenho mas
não resolve nada
Mas a mim que me importa, eu amo-te
Tu és o meu formoso espelhismo
Lembro o tempo em que tu eras o meu formoso espelhismo
Tu és bela
Quis voar contigo, tal como voam todos, sim, como se foge voando
Mas os dois estávamos doentes e logo acabará tudo
Então, de que serve tudo isto?
Quero-te, logo me derrubarei
Acaso posso evita-lo? Estou a ficar invisível
Faço-te sinais com a mão, tu só vês a minha mão
A porta abre-se. é de noite, tarde
A luz se apaga, dei tudo o que tinha
Não guardei nada com que viver, por isso me estou a tornar
cada vez mais invisível
Mas não morrerei
Algo fica: uma porta. Que outra coisa posso fazer senão sair de um
quarto de mim mesmo
Não morro, simplesmente desapareço
Talvez, minha angústia, acorde um dia cheio de sabedoria e dúvida
então voltarei e buscar-te-ei.

06
ENTRE NENÚFARES

Escrevi uma introdução para o que teria dito
mas rasurei-a. - Quero no entanto
que antes de a noite me envolver
a última coisa que de mim se aviste
seja um punho fechado entre nenúfares
e a última coisa que se ouça de mim
seja uma palavra de bolhas de ar
a vir do fundo.

07
EUFORIA

Estou sentado no jardim, só, com o teu caderno de apontamentos, uma
sanduíche, uma garrafa e o cachimbo.
É de noite e há tal calma que a luz da vela arde sem flamejar,
derrama a sua luz sobre as toscos tábuas da mesa
e brilha na garrafa e no copo.
 
Tomas um gole, enches o cacimbo e acende-lo.
Escreves uma linha ou duas e fazes uma pausa e contemplas
a franja de clarão vespertino no seu lento caminho até ao clarão
matutino,
o mar de ramagens, espumando no seu branco verdoso sob a
incerta luz da noite estival,
nem uma borboleta em torno da luz mas sim coros de mosquitos no carvalho,
as folhas tão imóveis contra o céu… E o álamo range na
calma:
À tua volta derrama-se a natureza de amor e morte.
Como se fosse a véspera de uma longa viagem, pela noite:
Já tens o bilhete no bolso e por fim fazes as malas.
E podes sentar-te e sentir a proximidade de países longínquos,
sentir como tudo está em tudo, ao mesmo tempo o seu fim e o seu princípio,
sentir que aqui e agora são tanto a tua partida como o teu regresso,
sentir que morte e a vida são tão fortes como o vinho dentro de ti!
 
Sim, fazer-se um com a noite, um consigo mesmo, como a chama da
vela
que me olha nos olhos com calma, inescrutável e tranquila,
como o álamo que palpita e sussurra,
um como o bando de flores que assoma da escuridão e
escutam
algo que tinha na ponta da língua mas nunca consegui dizer,
algo que nunca quis trair ainda que o tivesse podido fazer.
E dentro de mim borbulha a mais pura felicidade!
 
E a chama ascende… É como se as flores se fossem aproximando, se fossem
aproximando mais e mais da luz, em luminosos ponto de arco-íris.
O álamo estremece rumoroso, o clarão vespertino
prossegue
e tudo o que era indizível e distante é indizível e próximo.
 
Eu canto o único que concilia,
o único que é prático, igual para todos.

08
As FLORES DORMEM

as flores dormem na janela e a lâmpada fita luz
e a janela fita descuidada a escuridão lá fora
os quadros mostram inanimados o conteúdo a eles confiado
e as moscas estão imóveis na parede e pensam
 
as flores encostam-se à noite e a lâmpada fia luz
no canto o gato fia lã para dormir com ela
no fogão a cafeteira ressoa agradada volta e meia
e no chão as crianças brincam sem ruído com palavras
 
a mesa coberta de branco espera por alguém
cujos passos nunca sobem pela escada
 
um comboio perfura o silêncio ao longe
e não desvenda o segredo das coisas
mas o destino conta as badaladas com decimais.
 
09
No MERCADO de ISFAÃO ...

No mercado de Isfaão,
no estrado,
mil e um corpos
mil e uma almas
estavam à venda para escravos.
E mil e um mercadores
faziam diferentes ofertas por corpos e almas.
 
As almas eram como mulheres.
Os corpos eram como homens.
E sorte teve o Mercador
que, graças à sua perspicácia,
conseguiu arrematar
Uma alma
e um corpo
que condiziam e podiam acasalar.
 
10
NON SERVIAM

Sou um estrangeiro neste país
mas este país não é um estrangeiro dentro de mim!
Não me sinto em casa neste país
mas esta país comporta-se como na sua própria casa dentro de mim!
 
De um sangue que não se pode aguar
tenho nas minhas veias um vaso cheio!
 
E o judeu, o lapão, o artista que há em mim
sempre procurará a sua consanguinidade: investigar nos registos,
dar uma volta em torno do fetiche lapão no ermo desolado
com uma veneração sem palavras por algo já esquecido,
cantar canções lapónias conta o vento: Selvagem! Negro! –
Lutar e protestar contra a pedra; Judeu! Negro! –
à margem da lei e sob a lei:
prisioneiro na sua, a dos brancos, e no entanto
– bendita seja a minha lei! – na minha.
 
Converti-me pois num estrangeiro neste país
mas este país instalou-se comodamente dentro de mim!
Não posso viver neste país
mas este país vive como um veneno dentro de mim!
 
Certa vez, a Suécia selvagem,
a dos instantes breves, suaves, pobres,
sim, foi a minha pátria! Enchia tudo!
Aqui, na estreita e confortável Suécia,
a dos compridos e bem abocanhados instantes
onde tudo está fechado para evitar correntes de ar… tenho frio.
 
11
NOTA a «DEDICATÓRIA»

Em atenção às exigências estéticas
(que também são as da funcionalidade)
os arquitetos fizeram as nuvens quadradas.
Sobre os bosques desolados estendem-se assim os subúrbios
Por cima das colinas, alinham-se as altas nuvens cúbicas
refletindo-se profundamente no confiante lago florestal,
imensas filas de janelas vazias
sublinhadas pelo belo néon do pôr do sol.
Ali brincam, em montões de cúmulos piedosamente respeitados,
saudáveis meninos
(jamais tocados por mãos humanas)
enquanto revoluteiam em volta deles com sombrinhas rotativas
amas municipais severamente remuneradas.
Cada dia se faz noite e assexuados trabalhadores vitaminados
chegam em rebanhos às suas casas, por turnos, segundo convénios coletivos
à sua vida privada, a Svea, a rainha das hormonas,
rigorosamente vigiada por guardas que inspiram segurança.
 
E faz-se noite e silêncio. Somente o helicóptero do lixo
sussurra devagar de porta em porta
conduzido por um futuro pária, um anarquista e poeta
perpetuamente condenado a retirar toda a pornografia da fantasia.
À distância parece um gigantesco insecto
zunindo perante o grupo de madressilvas rosáceas
por cima, oh, muito por cima dos saudáveis bosques dos
desportistas
onde não vagabundeará jamais vagabundo algum.
 
12
PARTITUR

Vivo em virtude desta visão:
Duas torres
Um éden
Quatro caminhos
Uma entrada
Dois mananciais onde olhar-me
Uma fonte de que beber
Dois búzios a que escutar
e a que sussurrar
uma resposta a uma pergunta
que era uma resposta
 
Como se pudéssemos perguntar
como se pudéssemos sussurrar uma resposta
como se algum de nós perguntando respondendo
quisesse ter a confirmação de algo que não fosse
a imperfeição dos sentidos
 
No entanto o teu rosto é o jardim das minhas mãos cegas
Os teus seios são torres na sua sensibilidade dessa forma
que separa e une
A ta saída é a minha entrada
Os quatro caminhos são o nosso abraço
com braços e pernas:
 
Assim seremos oito
No entanto tu és uma deusa, intocada
e eu não sou mais do que um príncipe!
 
O que vale um príncipe
entre as tuas montanhas?
Um lugar que evitam os caminhantes
 
13
POÉTICA

É o silêncio o que deves escutar
o silêncio escondido atrás de apóstrofes, alusões
o silêncio na retórica
ou na assim chamada perfeição formal
Isto é a busca de um sem sentido
e vice-versa
E tudo o que com tanta arte tento escrever
é por contraste algo sem arte
e todo o repleto está vazio
O que escrevi
está escrito entre linhas
 
14
A PROVA da ÁGUA

Então disse-me:
Os únicos poetas que me interessam
são os que levam cuidadosamente
com mãos nervosas
um vaso cheio de sangue
em que caiu uma gota de leite
ou um vaso cheio de leite
em que caiu uma gota de sangue…
Agora que já o vi, agora quero ver
a firme captura de um vaso cheio até cima
de água do manancial.
 
15
SNAKEHEAD

Muito se pode dizer acerca do Diabo:
Ele não está morto, está vivo.
Como poderia ele ter sido abolido
por um deus que sempre está ausente?
 
Ele está presente:
Vê com os teus próprios olhos, vê com os seus olhos.
Pode revelar-se em qualquer parte.
Talvez seja bom, talvez sejas tu
talvez tu sejas mau, mas tu existes:
Então o que é um ausente? Um mal presente?
Uma força sempre ativa!
 
16

Quando alguém vai, como eu, tão longe no absurdo
palavras tornam-se de novo interessantes:
Algo soterrado
que se revolve com pá de arqueólogo:
 
A pequena palavra tu
talvez miçanga
que um dia enfeitara um pescoço
 
A grande palavra eu
talvez quartzo em lasca
com que um sem-dentes qualquer desfiara sua carne
dura.
 
17

É o silêncio que deves escutar
o silêncio por detrás das alusões, das elisões
o silêncio por detrás da retórica
o silêncio do que se chama a perfeição formal
Isto é a busca do não-sentido
até no próprio sentido
e reciprocamente
Ora tudo o que com arte escrevo
justamente é sem arte
e todo o cheio é vão
Tudo o que escrevi
está escrito entre as linhas

18

Vivo em virtude desta visão:
Duas torres
Um éden
Quatro caminhos
Uma entrada
Dois mananciais onde olhar-me
Uma fonte de que beber
Dois búzios a que escutar
e a que sussurrar
uma resposta a uma pergunta
que era uma resposta
 
Como se pudéssemos perguntar
como se pudéssemos sussurrar uma resposta
como se algum de nós perguntando respondendo
quisesse ter a confirmação de algo que não fosse
a imperfeição dos sentidos
 
No entanto o teu rosto é o jardim das minhas mãos cegas
Os teus seios são torres na sua sensibilidade dessa forma
que separa e une
A tua saída é a minha entrada
Os quatro caminhos são o nosso abraço
com braços e pernas:

Assim seremos oito
No entanto tu és uma deusa, intocada
e eu não sou mais do que um príncipe! 
O que vale um príncipe
entre as tuas montanhas?
Um lugar que evitam os caminhantes





Um comentário:

Jandira Coutinho disse...

Poemas maravilhosos! Fotografias excepcionais! Obrigada.