setembro 16, 2021

..................................... A ÚLTIMA VEZ que vi PARIS

antonio nahud em paris, 2017



Fotografias: 
ANTONIO NAHUD
e NUNO CASIMIRO


“Paris é uma festa, escreveu Ernest Hemingway. Para diversos escritores, Paris era uma festa que parecia não acabar nunca, resultando em muitos romances que se passam na Cidade Luz. Conhecida por seus cafés inesquecíveis, lugares históricos e pontes com um visual de tirar o fôlego, a capital francesa é considerada uma das mais lindas cidades do mundo. A cidade encantada da Catedral Notre Dame, do Museu do Louvre, do Hotel Le Meurice, do restaurante Le Polidor, do Maxim’s, do bairro de Montmartre, da Avenida Champs-Elysées, do Café des Deux Moulins, do Rio Sena, da Ópera Garnier, do Museu d’Orsay, da Place Vendôme, das Galeries Lafayette, e, é claro, dos Jardins de Versailles.
 
Eu sou um grande fã de PARIS. Estive por lá inúmeras vezes, a primeira em 1999 e a mais recente em 2017. Relendo contos de F. Scott Fitzgerald (1896 - 1940), um dos meus escritores favoritos (li toda a sua obra!), bateu uma saudade danada de Paris e parti para este texto. O título é uma homenagem a tradução em português de um filme da Metro-Goldwyn-Mayer baseado em um conto deste escritor norte-americano. Babilônia Revisitada / Babylon Revisited”, de 1931, fala de um rico homem de negócios, que encontra o amor de sua vida em PARIS e juntos vivem numa eterna farra. Até que a tragédia bate na sua porta.


Um poderoso conto de apenas 25 páginas, narrado em flashback. No presente, o protagonista havia perdido sua fortuna e volta a PARIS dois anos após a morte da esposa, na tentativa de resgatar a filha que está com uma cunhada nada amigável. No Ritz, melancólico, ele relembra seus dias de festas e o casamento com a bela Helen. Muito do conto é baseado nas próprias experiências do autor, envolvendo sua filha, sua cunhada e o marido dela. Quando Zelda, esposa de Fitzgerald, teve um colapso nervoso e foi internada em um sanatório, sua irmã decidiu que o cunhado não estava apto para criar a filha e a adotou.
 
Fitzgerald nasceu em Minnesota, nos Estados Unidos. Em 1911, com treze anos, ele viu impresso, na revista de estudantes da Academia de Saint Paul, sua história policial “O Mistério da Hipoteca de Raymond / The Mystery of the Raymond Mortgage”. Em 1919, escreveu 19 contos e recebeu 122 rejeições de revistas. Após alguns meses, reescreveu um romance, o qual renasceu com o título “Este Lado do Paraíso / This Side of Paradise”, uma trama sobre amor e ganância. Publicado em 1920, recebeu excelentes críticas, transformando Fitzgerald, aos 24 anos, num dos jovens escritores mais famosos e promissores do país.
 
Com o sucesso, surgiu um estilo de vida extravagante. Rapidamente se casou com Zelda e foi então que passaram a ser conhecidos pelas suas festas sem limites. Ela era cativante e sedutora, e Fitzgerald ciumento, iniciando-se uma vida a dois problemática. Ambos estimavam o prazer como o principal objetivo das suas vidas. Em 1920, foi publicada a sua primeira coletânea de contos, “Melindrosas e Filósofos / Flappers and Philosophers”, que recebeu críticas divergentes. Dois anos mais tarde, um segundo livro de contos, intitulado “Contos da Era do Jazz / Tales of the Jazz Age” (1922).


O seu segundo romance, “Belos e Malditos / The Beautiful and Damned”, publicado em 1922, ajudou a consolidar o prestígio literário. Relata a história de um jovem e da sua bela esposa, que esperam pela herança de uma enorme fortuna, e quando esta finalmente chega, já existe pouco deles próprios que valha a pena preservar. Tal como muitos dos seus trabalhos, reflete elementos autobiográficos do autor e da vida ao lado de Zelda. Durante o ano de 1923, o alcoolismo de Fitzgerald veio a tona, resultando em discussões com Zelda e intermináveis noites de bebedeira.
 
Ele temia o mesmo destino das personagens de “Belos e Malditos”, e por isso, em 1924, para escapar a tão receado fim, mudou-se para a Riviera Francesa com a família. Em PARIS, encontrou fontes de inspiração, completando o seu mais brilhante romance, “O Grande Gatsby / The Great Gatsby” (1925). Este seria um dos seus mais valorizados trabalhos, no qual descreve a Era do Jazz, em toda a sua exuberante extensão, como um período propenso para o amor, o dinheiro e o “sonho americano”, temas que aborda criticamente.
 
Apesar do sucesso de “O Grande Gatsby”, foi só a partir dos anos 50, muito tempo após a morte do autor, que passou a ser reconhecido como um dos melhores romances norte-americanos. Ainda na Riviera, os Fitzgerald fizeram amizade com Gerald e Sarah Murphy, um casal que, fruto de uma herança, vivia de forma luxuosa. Eles foram modelos para Dick e Nicole Diver em “Suave é a Noite / Tender Is the Night”. Em 1926 foi publicada a terceira coletânea de contos do autor, “Todos os Jovens Tristes / All the Sad Young Men”, recebendo críticas favoráveis. Nos oito anos que se seguiram não seria publicada outra obra literária.
f. scott fitzgerald

Bebendo de forma desesperada, Fitzgerald tornava-se por vezes abusivo, e Zelda comportava-se frequentemente de forma tempestuosa. Acabavam brigando publicamente. Em 1926, distanciados, voltaram para os Estados Unidos. Fitzgerald continuou a escrever histórias que exploravam os problemas maritais e a influência da Europa nos norte-americanos. Entre elas, “Babilônia Revisitada”, que remete para o contexto histórico, econômico e social em que viveu.
 
Depois de “O Grande Gatsby”, a vida de luxo do escritor ficou marcada pelo alcoolismo, por longas crises de bloqueio criativo e pela esquizofrenia da esposa, que em 1930 sofreu um colapso nervoso e acabou por ser hospitalizada, passando os anos seguintes recebendo tratamento em diferentes clínicas em PARIS e na Suíça. Durante este período, ele vivia entre as duas cidades, e a filha Scottie ficava com uma governanta em PARIS. Para financiar o tratamento de Zelda, escrevia contos para revistas, uma vez que ele não conseguia ganhar dinheiro tão rapidamente como o gastava. Com a recuperação, ainda que temporária, de Zelda, regressam aos EUA.
 
Em 1932, Zelda sofreu um segundo colapso, seguido de um terceiro, dois anos mais tarde, prolongando a sua situação de internamento. “Suave é a Noite” (1934), o seu último livro publicado, é sobre um psiquiatra em PARIS, nos anos 20, e o seu casamento conturbado com uma paciente rica cuja lenta recuperação esgota a sua vitalidade. Fracassou comercialmente, talvez pela estrutura cronológica desordenada, mas ganhou reputação ao longo do tempo, tornando-se num dos seus trabalhos mais conhecidos e comoventes.
 
O dinheiro que recebeu com a venda de “Suave é a Noite” não resolveu os problemas financeiros e Fitzgerald viu-se obrigado a continuar com a escrita de contos, publicando a sua quarta coletânea. “Toque em Reveille / Taps at Reveille” (1935) recebeu críticas sobretudo positivas e é nele que se vê impresso o conto “Babilônia Revisitada”. Entre 1935-37, o escritor encontrava-se muitas vezes doente e alcoolizado, e possuía imensas dívidas. Este período ficou conhecido como “O Colapso / The Crack-Up”, tal como o ensaio que escreveu em 1936 no qual analisa a sua própria falência emocional.

Durante os anos que se seguiram, as hospitalizações de Zelda levaram Fitzgerald a perder a esperança e desistir de viver ao lado dela, deixando-a e partindo para Hollywood em 1937, para trabalhar na indústria cinematográfica. O contato com a esposa manteve-se, ocasionalmente, através de visitas, enquanto a relação com a filha seguia através de cartas, uma vez que esta foi para um colégio interno. Apesar do seu envolvimento com a indústria cinematográfica, nomeadamente na Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), ele não se sentia parte da cultura “de sonhos” de Hollywood. O seu esnobismo literário fazia da relação com o mundo do cinema algo tenso e desdenhoso que, não obstante, era uma relação de dependência.
antonio nahud e o rio sena

Nos anos que se seguiram, ele lutou contra a depressão e o alcoolismo, e tentou renovar a sua carreira literária, alcançando algum sucesso econômico como roteirista e críticas positivas. Em Hollywood, apaixonou-se por Sheilah Graham, uma colunista social famosa, com a qual viveu serenamente o resto da sua vida, ainda que em certas ocasiões se tornasse inconveniente devido a embriaguez. Depois da MGM o despedir, trabalhou como roteirista freelance e escreveu contos para a “Esquire”, acabando, em 1939, por ser hospitalizado devido a problemas de saúde relacionados com o consumo de álcool.
 
Em 1939 iniciou um romance sobre Hollywood, “The Love of the Last Tycoon”, o qual permaneceu incompleto devido à sua morte a 1 de dezembro de 1940, aos 44 anos. O manuscrito da obra foi editado por Edmund Wilson, amigo de Fitzgerald e crítico do trabalho do autor, resultando na publicação em 1940, sob o título “O Último Magnata / The Last Tycoon”, que recebeu críticas positivas. O escritor faleceu devido a um ataque cardíaco, acreditando-se um fracasso. No entanto, tornou-se um dos autores mais celebrados da literatura norte-americana, em grande parte como consequência do sucesso póstumo de “O Grande Gatsby”.
 
Escreveu cerca de 160 contos, ensaios e artigos, entre eles “Babilônia Revisitada”, que trata da relação entre passado, presente e futuro, entre arrependimento e mágoa e entre o dinheiro, o amor, e a procura de redenção. Escreveu este conto após o colapso nervoso de Zelda, em 1930, e é através de Charlie Wales, que tenta se redimir dos seus excessos. A obra explora a vida glamorosa dos norte-americanos em PARIS na década de 20, através da retrospectiva crítica e nostálgica acerca deste período. Confira:
 

A ÚLTIMA VEZ que VI PARIS
 
F. Scott Fitzgerald
Tradução de Ruy Castro
 
I
 
E onde está o senhor Campbell?”, perguntou Charlie.
 
“Foi para a Suíça. Ele está muito doente, senhor Wales.” “Que pena. E George Hardt?”, continuou Charlie. “Voltou para a América, para trabalhar.” “E que fim levou o Pássaro da Neve?” “Esteve aqui na semana passada. O amigo dele, senhor Schaeffer, está em Paris.” Apenas dois nomes familiares numa longa lista de um ano e meio antes. Charlie rabiscou um endereço em seu bloco e rasgou a página. “Se encontrar o senhor Schaeffer, dê-lhe isto”, disse. “É o endereço de meu cunhado. Ainda não me instalei num hotel.” Na verdade, não estava desapontado por encontrar Paris tão vazia. Mas o marasmo no bar do Ritz era estranho e imponente. Já não era um bar americano — sentia-se elegante ali, e não como se fosse o dono. Era um bar que voltara a pertencer à França. Pressentiu o marasmo assim que desceu do táxi e viu o porteiro, antes em frenética atividade àquela hora, fofocando com um chasseur na porta dos empregados. Ao passar pelo corredor, ouviu apenas uma única voz entediada, vinda da toalete feminina, em outros tempos tão ruidosa. Quando se encaminhou para o bar, atravessou os seis metros de carpete verde com os olhos fixos à frente, por força de hábito; depois, com o pé plantado no batente da porta, virou-se e contemplou a sala, encontrando apenas um par de olhos que surgiu por cima de um jornal, num canto. Charlie perguntou pelo barman Paul, que, nos últimos dias de alta na Bolsa, vinha para o trabalho em seu carro fabricado sob medida — só que, educadamente, desembarcando na esquina mais próxima. Mas Paul estava hoje em sua casa de campo, e era Alix quem lhe passava as informações. “Agora chega”, disse Charlie. “Ando devagar, esses dias.” Alix felicitou-o. “O senhor estava exagerando na dose há uns dois anos.” “E pretendo continuar devagar”, Charlie assegurou-lhe. “Já estou assim há um ano e meio.” “Como estão as coisas nos Estados Unidos?” “Há meses que não vou à América. Estou com uns negócios em Praga, fazendo umas representações. Eles não me conhecem por lá.” Alix sorriu. “Lembra-se da noite da despedida de solteiro de George Hardt?”, disse Charlie. “Por falar nisso, que fim levou Claude Fessenden?” Alix baixou o tom de voz para uma confidência: “Está em Paris, mas não vem mais aqui. Paul não permite. Deixou uma conta de trinta mil francos, pendurou todos os drinques e almoços, e quase sempre o jantar, durante mais de um ano. Quando Paul finalmente lhe disse que ele tinha de pagar, Fessenden deu-lhe um cheque sem fundos”. Alix sacudiu a cabeça com tristeza. “Não entendo isso, um sujeito tão bacana. Agora está todo inchado...” Suas mãos estão redondas como uma maçã. Charlie observou um grupo de mulheres estridentes instalando-se num canto. Nada as afeta, pensou. As ações sobem e descem, as pessoas vadiam ou trabalham, mas elas continuam firmes. O lugar o oprimia. Pegou os dados e apostou um drinque com Alix. “Chegou há muito tempo, senhor Wales?” “Há uns quatro ou cinco dias, para ver minha garotinha.” “Ahhh... O senhor tem uma filha?” Lá fora, os neons vermelho-fogo, azul-gás e verde-fantasma piscavam enfumaçados através da chuva tranqüila. Era um fim de tarde e as ruas estavam vivas; os bistrôs refulgiam. Na esquina do Boulevard des Capucines, tomou um táxi. A Place de la Concorde se movia em rósea majestade; cruzaram o Sena, e Charlie sentiu a súbita atmosfera provinciana da Rive Gauche. Charlie mandou o táxi seguir pela Avenue de l’Opéra, que estava fora de seu caminho. Mas queria ver a hora azul se espalhar sobre a magnífica fachada e imaginar que as buzinas dos táxis, tocando interminavelmente os primeiros compassos de “La plus que lente”, eram os trompetes do Segundo Império. O portão de ferro da livraria Brentano estava sendo fechado, e as pessoas já começavam a jantar atrás da bem aparada cerca-viva do Duval. Ele nunca jantara num restaurante barato em Paris — jantar com cinco pratos, a quatro francos e cinqüenta, mais dezoito centavos se houvesse vinho incluído. Por alguma razão, gostaria de ter experimentado. Ao rodar pela Rive Gauche e sentindo seu súbito provincianismo, pensou: Estraguei esta cidade para mim. Eu não percebia, mas os dias foram correndo, um atrás do outro, dois anos se passaram e tudo acabou, inclusive eu. Ele tinha trinta e cinco anos e boa aparência. A mobilidade irlandesa de seu rosto era contrabalançada por uma ruga profunda entre os olhos. Ao tocar a campainha da casa do cunhado na Rue Palatine, a ruga se aprofundou até repuxar suas sobrancelhas; sentiu uma espécie de cãibra no estômago. Por trás da empregada que lhe abriu a porta, surgiu uma adorável garotinha de nove anos que gritou “Papai!” e voou, debatendo-se como um peixe, para dentro de seus braços. Ela puxou a cabeça dele por uma orelha e colou seu rosto ao do pai. “Minha gatinha.” “Ah, papai, papai, papai, papai, pápi, pápi, pápi!” Ela o conduziu à sala, onde a família o esperava, um menino e uma menina da idade de sua filha, sua cunhada e o marido dela. Cumprimentou Marion com voz cuidadosamente modulada, para não demonstrar nem desprazer nem fingido entusiasmo, mas a resposta dela foi francamente morna, embora suavizasse sua expressão de inalterável desconfiança concentrando seu olhar na criança. Os dois homens deram-se as mãos de maneira amistosa e Lincoln Peters descansou a sua por um momento no ombro de Charlie. O aposento era acolhedor e confortavelmente americano. As três crianças se moviam com intimidade por ali, brincando sobre os retângulos amarelos que levavam aos outros quartos; a animação das seis horas manifestou-se nos estalos ansiosos da lareira e nos sons de azáfama francesa na cozinha. Mas Charlie não relaxava; seu coração mantinha-se rígido dentro do corpo e ele só absorvia confiança de sua filha, que de tempos em tempos chegava-se a ele, segurando nos braços a boneca que ele lhe trouxera. “Extremamente bem”, declarou em resposta a uma pergunta de Lincoln. “Há muitas empresas por lá estagnadas, mas a nossa vai melhor do que nunca. Bem demais, na verdade. No mês que vem, vou trazer minha irmã dos Estados Unidos para me ajudar na casa. Meu rendimento no ano passado foi maior do que no tempo em que tinha dinheiro. Sabe, os tchecos...” Sua gabolice tinha um propósito específico; mas, em pouco tempo, ao sentir alguma impaciência nos olhos de Lincoln, mudou de assunto: “Belas crianças você tem, bem-educadas, bons modos.” “Honoria também é uma menina e tanto.” Marion Peters voltou da cozinha. Era uma mulher alta, com olhos preocupados, que no passado exibira uma fresca beleza americana. Charlie nunca fora sensível a ela e sempre se surpreendia quando as pessoas comentavam como tinha sido bonita. Desde o começo houvera uma antipatia instintiva entre eles. “Bem, o que achou de Honoria?”, ela perguntou. “Maravilhosa. Estou espantado em ver como cresceu nesses dez meses. Todas as crianças me parecem muito bem.” “Não recebemos um médico em casa há um ano. Que tal estar de novo em Paris?” “É engraçado ver tão poucos americanos por aqui.” “Estou achando ótimo”, disse Marion com veemência. “Agora, pelo menos, já se pode ir a uma loja sem ter de fazer pose de milionário. Sofremos como todo mundo, mas, num todo, agora está muito mais agradável.” “Mas foi bom enquanto durou”, disse Charlie. “Éramos uma espécie de realeza, quase infalíveis, com uma aura de magia. No bar, esta tarde”, hesitou, percebendo seu erro, “não havia ninguém que eu conhecesse.” Ela o olhou com ar penetrante. “Achei que já tivesse se fartado de bares.” “Só fiquei um minuto. Tomo um drinque todas as tardes, não mais que isso.” “Não quer beber alguma coisa antes do jantar?”, perguntou Lincoln. “Tomo apenas um drinque à tarde, e já tomei o de hoje.” “Espero que você se limite a isso”, disse Marion. Seu desprazer era evidente na frieza com que falou, mas Charlie apenas sorriu; tinha planos mais importantes. A agressividade de Marion dava-lhe uma vantagem, e ele sabia esperar. Queria que eles tomassem a iniciativa de discutir o que o trouxera a Paris. Durante o jantar, não conseguia se decidir sobre se Honoria se parecia mais com ele ou com a mãe. Seria uma sorte ela não combinar os traços de ambos que os tinham levado ao desastre. Uma grande onda protetora o acometeu. Pensou que sabia o que fazer por ela. Acreditava em personalidade; se pudesse, daria um salto para trás, sobre toda uma geração, e voltaria a confiar na personalidade como um elemento eternamente valioso. Tudo se desgastara. Saiu logo depois do jantar, mas não foi para casa. Estava curioso por ver Paris à noite, com olhos mais claros e lúcidos que os de outros tempos. Comprou um strapontin para o Casino e foi ver Josephine Baker fazer seus arabescos de chocolate. Uma hora depois foi embora e caminhou na direção de Montmartre, subindo a Rue Pigalle até a Place Blanche. A chuva parara e havia algumas pessoas em roupas de noite, desembarcando de táxis em frente aos cabarés, e cocottes desfilando sozinhas ou em pares, e muitos negros. Passou por uma porta iluminada da qual brotava música e parou ali, com uma sensação de familiaridade; era o Bricktop’s, onde já perdera muitas horas e muito dinheiro. Algumas portas à frente, descobriu outros antigos rendezvous e, imprudente, pôs a cabeça para dentro. Imediatamente uma ansiosa orquestra começou a tocar, uma dupla de dançarinos profissionais atirou-se a seus pés e o maître veio correndo, gritando: “A turma já está vindo, senhor!”. Mas ele se retirou no ato. Só mesmo muito bêbado, pensou. O Zelli’s estava fechado e os sinistros e desolados hotéis ao redor estavam escuros; subindo a Rue Blanche, havia mais luz e um grupo coloquial de franceses do bairro. A Poet’s Cave desaparecera, mas as duas grandes bocas do Café of Heaven e Café of Hell ainda bocejavam, ou devoravam, como ele percebeu, o magro conteúdo de um ônibus turístico — um alemão, um japonês e um casal de americanos que olhou para ele com ar amedrontado. Já se fartara do afã e da inventividade de Montmartre. Constatou que, ali, a oferta de vício e extravagância se dava numa escala tremendamente ingênua, e só então se deu conta do significado da palavra “dissipar” — dissipar no ar; transformar qualquer coisa em nada. Às altas horas da madrugada, cada deslocamento de um lugar para outro era um gigantesco salto humano, e pagava-se um preço cada vez mais alto pelo privilégio de movimentos mais e mais lentos. Ele se lembrou das notas de mil francos dadas a orquestras para tocarem uma única canção, das notas de quinhentos francos atiradas a porteiros por terem chamado um simples táxi. Mas esse dinheiro não tinha sido em vão. Mesmo as quantias mais loucamente desperdiçadas haviam sido dadas como oferenda ao destino, para que ele se lembrasse das coisas que realmente mereciam ser lembradas, coisas de que ele agora sempre se lembraria — sua filha sendo tirada dele, sua mulher, que fugira para um túmulo em Vermont. No fulgor de uma brasserie, uma mulher dirigiu-se a ele. Ele lhe pagou alguns ovos e café, e, evitando seu olhar cheio de promessas, deu-lhe uma nota de vinte francos e tomou um táxi para o hotel.
 

II
 
Ao acordar, era um belo dia de outono. A depressão da véspera passara e ele gostou das pessoas nas ruas. Ao meio-dia, sentou-se com Honoria no Le Grand Vatel, o único restaurante que não associava a jantares com champanhe e longos almoços que começavam às duas e terminavam num vago e borrado crepúsculo. “E agora, que tal alguns legumes? Você não devia comer legumes?” “Não sei, acho que sim.” “Então, aqui temos épinards e chou-fleur e cenouras e haricots.” “Eu quero chou-fleur.” “Não prefere dois legumes diferentes?” “Todo dia só como um no almoço.” O garçom fingia gostar muito de crianças. “Qu’elle est mignonne la petite! Elle parle exactement comme une française.” “E a sobremesa? Vamos esperar para ver?” O garçom desapareceu. Honoria olhou para o pai com ar expectante. “O que vamos fazer?” “Primeiro, vamos àquela loja de brinquedos na Rue Sainte-Honoré, comprar o que você quiser. Depois vamos a um show de vaudeville no Empire.” Ela hesitou. “Gostei da idéia do vaudeville, mas não da loja de brinquedos.” “Por que não?” “Porque você já me trouxe esta boneca.” Ela estava com a boneca. “E já tenho muitos brinquedos. E não somos mais ricos, somos?”
zelda e fitzgerald

“Nunca fomos, querida. Mas hoje você pode ganhar o que quiser.” “Está bem”, ela suspirou, resignada. Quando havia sua mãe e uma babá francesa, ele tendia a ser rigoroso; agora ele se expandia e tentava exercitar uma nova tolerância; tinha de ser pai e mãe para ela, e não fechar nenhum canal de comunicação. “Quero conhecê-la melhor”, disse, com voz grave. “Primeiro, permita que eu me apresente. Meu nome é Charles J. Wales, de Praga.” “Ah, papai!”, ela caiu na risada. “E quem é a senhorita?”, ele insistiu, e ela aceitou o papel imediatamente: “Honoria Wales, Rue Palatine, Paris”. “Casada ou solteira?” “Não, casada não. Solteira.” Ele apontou para a boneca. “Mas vejo que tem uma criança, madame.” Sem querer perdê-la, puxou a boneca contra o peito e pensou rápido: “Sim, já fui casada, mas não estou casada agora. Meu marido morreu”. Ele continuou depressa: “E qual é o nome da criança?” “Simone. Em homenagem à minha melhor amiga na escola.” “Fico satisfeito de saber que está indo bem na escola.” “Fiquei em terceiro lugar este mês”, ela se gabou. “Elsie”, esta era sua prima, “ficou em décimo oitavo e Richard foi um dos últimos.” “Você gosta de Richard e Elsie, não gosta?” “Ah, sim, gosto muito de Richard e gosto dela também.” Com cuidado, e casualmente, ele perguntou: “E tia Marion e tio Lincoln... de quem você gosta mais?” “Ah, do tio Lincoln, acho.” Ele estava cada vez mais tomado por sua presença. Ao entrarem, um murmúrio de “Que linda!” os seguira, e agora as pessoas na mesa ao lado dedicavam seus silêncios a ela, admirando-a como se fosse algo não mais consciente que uma flor. “Por que eu não moro com você?”, perguntou Honoria. “Porque mamãe morreu?” “Você precisa continuar aqui e aprender mais francês. Seria difícil para o papai cuidar de você tão bem.” “Já não preciso que cuidem tanto de mim. Faço tudo sozinha.” Quando saíram do restaurante, ele foi abordado por um homem e uma mulher. “Ora, o velho Wales!” “Olá, Lorraine... Oi, Dunc.” Súbitos fantasmas do passado: Duncan Schaeffer, um amigo dos tempos de faculdade. Lorraine Quarrles, uma loura bonita de uns trinta anos e uma da turma que havia feito os meses se transformarem em dias nos tempos de opulência, três anos antes. “Meu marido não pôde vir este ano”, ela disse, em resposta à pergunta dele. “Estamos para lá de pobres. Prometeu me dar duzentos dólares por mês e disse que eu me virasse com essa fortuna... Sua filha?” “Que tal voltar e se sentar conosco?”, convidou Duncan. “Não posso.” Estava feliz por ter uma desculpa. Como sempre, sentiu a atração provocante e passional de Lorraine, mas seu ritmo agora era diferente.
antonio nahud

“E que tal jantar?”, ela perguntou. “Não estou livre. Me dê seu telefone que eu ligo quando puder.” “Charlie, acho que você está sóbrio”, ela disse, com ar crítico. “Sinceramente, acho. Dunc, dê-lhe um beliscão para ver se ele está sóbrio.” Charlie indicou Honoria com a cabeça. Os dois riram. “Qual é o seu endereço?”, perguntou Duncan, cético. Ele hesitou, não querendo dar o nome do hotel. “Ainda não me instalei. É melhor eu telefonar para vocês. Estamos indo a um show de vaudeville no Empire.” “Ótimo! É exatamente do que estou precisando!”, exclamou Lorraine. “Quero ver palhaços, acrobatas e malabaristas. Vamos também, Dunc.” “Temos algumas coisas para fazer primeiro”, disse Charlie. “Talvez nos encontremos por lá.” “Está bem, seu esnobe... Até logo, garotinha linda.” “Até logo.” Honoria fez um gesto gracioso. Um encontro desagradável. Gostaram dele porque viram que ele estava bem, que estava sério; queriam vê-lo de novo porque ele agora parecia mais forte do que eles e porque queriam sugar um pouco dessa força. No Empire, Honoria recusou-se orgulhosamente a sentar sobre o casaco dobrado de seu pai. Já era uma pessoa com seu próprio código, e Charlie viu-se cada vez mais absorto pelo desejo de incutir um pouco de si em sua filha, antes que ela se cristalizasse definitivamente. Mas era impossível vir a conhecê-la em tão pouco tempo. No intervalo, encontraram Duncan e Lorraine no lobby, onde uma banda estava tocando. “Que tal um drinque?” “Está bem, mas não no bar. Vamos para uma mesa.” “O pai perfeito.” Ouvindo Lorraine sem prestar atenção, Charlie observava os olhos de Honoria percorrerem a sala e se perguntava o que ela via. Seus olhos se cruzaram e ela sorriu. “Gostei daquela limonada”, ela disse. O que ela tinha dito? O que ele esperava? Ao voltarem de táxi para casa, puxou-a para si até que a cabeça dela descansasse em seu peito. “Querida, você às vezes pensa na mamãe?” “Sim, às vezes”, ela respondeu de um jeito vago. “Não quero que você a esqueça. Tem uma foto dela?” “Acho que sim. Tia Marion tem. Por que você não quer que eu a esqueça?” “Porque ela amava muito você.” “Eu também a amava muito.” Ficaram em silêncio por um momento. “Papai, quero morar com você”, ela disse de repente. Seu coração deu um pulo; era aonde ele desejava chegar. “Mas você não está feliz aqui?” “Estou, mas gosto mais de você do que de todo mundo. E você gosta de mim mais do que de todo mundo, agora que mamãe morreu, não é?” “Claro que sim. Mas você não vai gostar de mim sempre desse jeito, querida. Você vai crescer e conhecer alguém da sua idade e se casar e se esquecer do papai.”
 

“É, é verdade”, ela concordou tranqüilamente. Ele não entrou. Ficara de voltar às nove da noite e queria se conservar fresco e novo para o que tinha a dizer. “Assim que tiver acabado de entrar, vá à janela e me dê um adeuzinho.” “Está bem. Até logo, pápi, pápi, pápi, pápi.” Esperou na rua escura até que ela aparecesse, calorosa e fulgurante, na janela do andar de cima, e beijou à distância os dedos que lhe acenavam na noite.
 

III
 
Eles o esperavam. Marion sentou-se atrás do aparelho de café num sóbrio vestido de noite preto que era uma leve sugestão de luto. Lincoln andava de um lado para o outro com a animação de quem falava havia horas. Estavam tão ansiosos quanto ele para chegar logo ao assunto. Ele abriu a conversa de saída. “Imagino que saibam o que quero falar com vocês... o verdadeiro motivo pelo qual vim a Paris.” Marion distraía-se com as estrelinhas pretas de seu colar e franziu a testa. “Estou louco para ter de novo um lar”, ele continuou. “E estou louco para ter Honoria comigo. Sou grato a vocês por terem acolhido Honoria por causa de sua mãe, mas agora as coisas mudaram”, hesitou e disse, enfático, “mudaram radicalmente comigo, e gostaria de pedir que reconsiderassem o assunto. Seria tolice minha negar que há três anos eu estava me comportando mal...” Marion o encarou com olhos duros. “... mas isso já passou. Como disse, tenho me limitado a um drinque por dia há mais de um ano, e tomo esse drinque deliberadamente, para que a idéia do álcool não cresça na minha imaginação. Estão entendendo?” “Não”, disse Marion sucintamente. “É uma espécie de desafio a que me proponho. Mantém as coisas no lugar.” “Eu entendo”, disse Lincoln. “Você não quer admitir que o álcool exerce muita atração sobre você.” “Mais ou menos isso. Às vezes me esqueço e não bebo nada. Mas tento tomar um. De qualquer maneira, não posso me dar ao luxo de beber na minha atual posição. As pessoas que represento estão mais do que satisfeitas comigo, e pretendo trazer minha irmã de Burlington para me ajudar a manter a casa, e quero muito que Honoria more lá. Vocês sabem que, mesmo quando eu e a mãe dela não estávamos nos dando bem, nunca deixamos que nada interferisse com Honoria. Sei que ela gosta de mim e sei que sou capaz de cuidar dela. Bem, é isso. O que vocês acham?” Ele sabia que agora seria a sua vez de apanhar. Duraria uma hora ou duas, e seria difícil, mas, se ele regulasse seu inevitável ressentimento para a atitude casta de um pecador regenerado, poderia fazer prevalecer seu ponto de vista. Fique calmo, disse a si mesmo. Você não quer ser aceito. O que você quer é Honoria. Lincoln falou primeiro: “Temos discutido o assunto desde que recebemos sua carta há um mês. Gostamos de ter Honoria conosco. Ela é uma coisinha querida e estamos felizes de poder ajudá-la, mas, naturalmente, esse não é o problema...” Marion interrompeu de repente. “Quanto tempo vai ficar sóbrio, Charlie?”, perguntou. “Para sempre, espero.” “Como pode ter certeza?” “Vocês sabem que nunca bebi demais até que parei de trabalhar e vim para cá sem nada para fazer. Então Helen e eu começamos a andar com...”
antonio nahud

“Por favor, deixe Helen de fora. Não suporto ouvir você falar dela desse jeito.” Ele a encarou com amargor; nunca soube até que ponto as duas irmãs gostavam uma da outra. “Só bebi durante um ano e meio — desde a época em que cheguei aqui até o dia em que... desabei.” “Tempo suficiente.” “Tempo suficiente”, ele concordou. “Meu dever é com a Helen”, ela disse. “Tento imaginar o que ela gostaria que eu fizesse. Sinceramente, desde a noite em que fez aquela coisa terrível, você deixou de existir para mim. Não posso evitar. Ela era minha irmã.” “Está certo.” “Quando estava morrendo, ela pediu que eu cuidasse de Honoria. Se você não estivesse internado na época, poderia ter ajudado.” Ele não tinha resposta. “Nunca vou me esquecer da manhã em que Helen bateu à minha porta, ensopada e tremendo, dizendo que você a trancara do lado de fora de casa.” Charlie agarrou-se às laterais da cadeira. Estava sendo mais difícil do que ele esperava; queria desfechar uma longa explicação, porém disse apenas: “A noite em que a tranquei...”, mas ela interrompeu: “Não quero falar nisso”. Após um momento de silêncio, Lincoln disse: “Estamos nos desviando do assunto. Você quer que Marion abra mão de sua guarda legal e lhe entregue Honoria. Acho que o importante é se ela tem ou não confiança em você”. “Não censuro Marion”, disse Charlie, lentamente, “mas agora ela pode ter inteira confiança em mim. Minha ficha era boa até três anos atrás. Claro que, sujeito às vicissitudes humanas, posso sofrer uma recaída a qualquer momento. Mas, se esperarmos muito, vou perder a infância de Honoria e minha chance de ter um lar.” Balançou a cabeça. “Vou terminar perdendo-a, entende?” “Sim, entendo”, disse Lincoln. “Por que não pensou nisso antes?”, disse Marion. “Acho que pensava, de vez em quando, mas Helen e eu estávamos nos entendendo muito mal. Quando consenti que ela ficasse com a guarda de Honoria, estava derrubado numa clínica e o mercado se fechara para mim. Sabia que tinha me comportado mal e que, se isso trouxesse alguma paz para Helen, eu concordaria com qualquer coisa. Mas agora é diferente. Estou bem. Estou me comportando bem pra cacete, pelo menos até...” “Por favor, modere a língua na minha presença”, disse Marion. Charlie olhou-a espantado. A cada observação, o desapreço de Marion por ele parecia mais aparente. Convertera todo o seu medo da vida num muro que interpusera entre eles. Essa reprovação tão sem sentido podia ser fruto de algum aborrecimento que tivera com a cozinheira horas antes. Charlie preocupou-se com a perspectiva de deixar Honoria nesse ambiente de hostilidade contra ele; mais cedo ou mais tarde, tal hostilidade iria transpirar, uma palavra aqui, um gesto de cabeça ali, e vestígios dessa desconfiança seriam irrevogavelmente plantados na cabeça de Honoria. Mesmo assim, apagou a fúria de seu rosto e trancafiou-a dentro de si; marcara um ponto, porque Lincoln percebera o absurdo do que Marion dissera e lhe perguntara o que havia de mal na palavra “cacete”. “Outra coisa”, disse Charlie. “Agora estou em condições de propiciar a ela alguns benefícios. Vou levar uma governanta francesa para Praga. Vou alugar um novo apartamento...” Parou ao se dar conta de que estava estragando tudo. Eles não aceitariam bem o fato de que seu rendimento era, de novo, o dobro do deles.
 

“Realmente, você pode lhe dar mais luxos do que nós”, disse Marion. “Enquanto você torrava dinheiro, nós tínhamos de viver contando cada dez francos... Pelo visto, vai fazer isso de novo.” “Ah, não”, ele se apressou a dizer. “Aprendi muito. Trabalhei duro durante dez anos, vocês sabem, até que tive sorte na Bolsa, como tantas pessoas. Muita sorte. Parecia sem sentido continuar trabalhando, por isso parei. Não vai acontecer de novo.” Houve um longo silêncio. Todos se sentiam tensos e, pela primeira vez em um ano, Charlie teve vontade de tomar um drinque. Tinha certeza agora de que Lincoln Peters queria que ele ficasse com sua filha. Marion estremeceu subitamente; por um lado, via que os pés de Charlie estavam firmes no chão, e seu sentimento de mãe reconheceu a normalidade do que ele pedia; mas vivera por muito tempo com um preconceito — um preconceito fundado numa curiosa descrença na felicidade de sua irmã e que, diante do choque de uma noite terrível, transformara-se em ódio por ele. Tudo acontecera numa época de sua vida em que uma combinação de doença e circunstâncias adversas tornou necessário para ela acreditar numa vilania palpável e num vilão palpável. “Não posso esconder o que penso!”, ela gritou de repente. “O quanto você foi responsável pela morte de Helen, não sei dizer. É uma coisa entre você e a sua consciência.” Uma corrente elétrica de agonia correra por ele; por um momento, quase se pôs de pé, com um som aprisionado na garganta. Mas controlou-se. “Vamos com calma, Marion”, disse Lincoln, constrangido. “Nunca achei Charlie responsável por aquilo.” “Helen morreu de um problema cardíaco”, disse Charlie bem devagar. “Foi, problema cardíaco.” Helen falou como se a frase tivesse para ela outro significado. Então, no abatimento que se seguiu à sua explosão, ela o viu com clareza e percebeu que, de alguma forma, ele estava no controle da situação. Olhando para o marido, não encontrou nele um apoio e, abruptamente, como se o assunto já não tivesse importância, jogou a toalha. “Ah, faça o que quiser!”, gritou, saltando da cadeira. “É sua filha. Não sou eu que vou ficar no caminho. Se fosse minha filha, preferia vê-la mor...” Mas também conseguiu se controlar. “Vocês dois decidam. Não agüento mais isso. Estou me sentindo mal. Vou para a cama.” Saiu às pressas da sala; depois Lincoln disse: “Foi um dia difícil para ela. Você sabe como ela se sente em relação à Honoria...” Sua voz quase pedia desculpas. “Quando uma mulher põe uma idéia na cabeça...” “Claro.” “Vai dar tudo certo. Acho que ela está vendo que você... será capaz de sustentar a criança e, com isso, não podemos ficar no seu caminho ou no de Honoria.” “Obrigado, Lincoln.” “Acho melhor eu subir e ver como ela está.” “Vou embora.” Ainda estava tremendo quando chegou à rua. A caminhada da Rue Bonaparte até o cais restabeleceu-o e, ao cruzar o Sena, rejuvenescido sob os lampiões do quai, sentiu-se exultante. Mas, ao voltar para seu quarto, não conseguiu dormir. A imagem de Helen o assombrava. Helen, a quem ele amara tanto até que, insensatamente, os dois começaram a abusar desse amor e a rasgá-lo em tiras. Naquela terrível noite de fevereiro, de que Marion se lembrava tão vivamente, uma briga se arrastara por horas. Houve uma cena no Florida; ele tentou levá-la para casa e, então, ela beijou o jovem Webb numa mesa; a partir dali, aconteceu o que Marion histericamente descrevera. Quando ele chegou em casa, entrou e trancou a porta, furioso. Como poderia adivinhar que Helen chegaria uma hora depois, sozinha, que ela atravessaria uma tempestade de neve de sandálias, muito confusa para tomar um táxi? E depois o rescaldo, Helen escapando da pneumonia por um milagre e todo o horror subseqüente. Eles se “reconciliaram”, mas aquele foi o começo do fim, e Marion, que assistiu com os próprios olhos ao que imaginou ser uma das muitas cenas do martírio de sua irmã, nunca esqueceu. Reviver tudo isso trouxe Helen para mais perto dele e, à luz branca e suave que invade o semisono quando chega a manhã, Charlie viu-se falando de novo com ela. Helen dizia que ele tinha toda razão sobre Honoria e que, por ela, Honoria ficaria com ele. Disse que estava feliz por vê-lo bem e se comportando ainda melhor. Disse muitas outras coisas — coisas muito amáveis —, mas estava de vestido branco sentada em um balanço, e balançando cada vez mais depressa, de forma que ele não pôde ouvir tudo o que ela disse.
 

IV
 
Acordou feliz. A porta do mundo se abria de novo para ele. Imaginou planos, perspectivas, futuros para Honoria e para si mesmo, mas de repente ficou triste, lembrando-se dos planos que ele e Helen tinham feito. Ela não planejava morrer. Agora só o presente importava — trabalho para realizar e alguém para amar. Mas não para amar muito, porque ele sabia o mal que um pai pode fazer a uma filha ou uma mãe a um filho, por se ligar muito a eles; depois, quando saísse ao mundo, essa criança buscaria no parceiro de casamento a mesma ternura cega e, talvez fracassando em encontrá-la, se virasse contra o amor e a vida. Era outro dia claro e brilhante. Procurou Lincoln Peters no banco em que ele trabalhava e perguntou-lhe se podia contar em levar Honoria quando fosse para Praga. Lincoln concordou em que não havia razão para adiamentos. Exceto por uma coisa — a guarda legal. Marion queria retê-la por mais algum tempo. Estava aborrecida com a história e facilitaria as coisas se sentisse que a situação continuava sob seu controle por mais um ano. Charlie concordou, querendo apenas a criança visível, tangível. Depois, a questão da governanta. Charlie foi a uma agência sombria e conversou com uma bernense meio grossa e com com uma robusta camponesa bretã, nenhuma das quais ele conseguiria suportar. Falaria com outras no dia seguinte. Almoçou com Lincoln Peters no Griffons, tentando disfarçar a euforia. “Não há nada como o nosso próprio filho”, disse Lincoln. “Mas você precisa entender como Marion também se sente.” “Ela se esquece de quanto eu dei duro aqui por sete anos”, disse Charlie. “Só se lembra de uma noite.” “E há outra coisa”, hesitou Lincoln. “Enquanto você e Helen se esbaldavam pela Europa rasgando dinheiro, estávamos apenas sobrevivendo. Nunca fiquei rico porque nunca tive reserva suficiente para aplicar em nada, exceto em meu seguro de vida. Acho que Marion via nisso uma espécie de injustiça — você já nem mesmo trabalhava e ia ficando cada vez mais rico.” “Acabou tão rápido quanto começou”, disse Charlie. “Sim, e grande parte do dinheiro ficou nas mãos de chasseurs, saxofonistas e maîtres. Bem, a farra acabou. Só disse isso para contar como Marion se sentiu naqueles anos loucos. Se você aparecer hoje por volta das seis, antes que Marion se sinta muito cansada, podemos acabar de discutir os detalhes.” De volta ao hotel, Charlie encontrou um pneumatique que fora enviado ao bar do Ritz, onde ele deixara seu endereço com a intenção de encontrar um certo homem.
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QUERIDO CHARLIE: Você estava tão esquisito no outro dia, quando nos encontramos, que fiquei pensando se fiz alguma coisa que o ofendeu. Se fiz, não foi consciente. Na verdade, tenho pensado demais em você desde o ano passado e sempre achando que queria vê-lo de novo. Nós nos divertimos tanto naquela primavera maluca, como na noite em que você e eu roubamos o triciclo do açougueiro, e na noite em que tentamos ligar para o presidente e você estava de chapéu-coco e bengala de metal. Tudo parece tão antigo ultimamente, mas eu não me sinto nem um pouco antiga. Que tal nos encontrarmos hoje para lembrar os velhos tempos? Estou com uma tremenda ressaca neste momento, mas vou me sentir melhor à tarde e estarei esperando você por volta das cinco no bar do Ritz. Sempre sua, LORRAINE Seu primeiro sentimento foi de horror ao lembrar-se de que, realmente, já homem maduro, roubara um triciclo e pedalara com Lorraine por toda a Étoile quase ao nascer do sol. Em retrospecto, era um pesadelo. Deixar Helen na rua não combinava com nada que fizera na vida, mas o incidente do triciclo, sim, era um entre muitos. Quantas semanas ou meses de dissipação para chegar a esse estado de completa irresponsabilidade? Tentou visualizar como Lorraine então lhe parecia — muito atraente; Helen ficava triste com aquilo, embora não dissesse nada. Na véspera, no restaurante, Lorraine lhe parecera gasta, cediça, extenuada. Decididamente não queria vê-la e ficou feliz por Alix não ter dado a ela o endereço do hotel. Em compensação, era um alívio pensar em Honoria, pensar nos domingos que passaria com ela, em desejar-lhe bom-dia e em saber que ela estaria em casa à noite, prendendo a respiração no escuro. Às cinco horas, tomou um táxi e comprou presentes para todos os Peter — uma charmosa boneca de pano e uma caixa de soldadinhos romanos para as crianças, flores para Marion e grandes lenços de linho para Lincoln. Ao chegar ao apartamento, viu que Marion aceitara o inevitável. Ela o recebeu como a um recalcitrante membro da família e não mais como um forasteiro ameaçador. Honoria ficara sabendo que iria embora; Charlie gostou de ver que sua educação a fazia esconder sua excessiva felicidade. Somente ao subir-lhe no colo é que sussurrou seu deleite e perguntou “Quando?”, antes de sumir junto com as outras crianças. Por um minuto, ele e Marion viram-se sozinhos na sala e, num impulso, ele disse com certa ousadia: “Brigas de família são coisas amargas. Não seguem nenhuma regra. Não são como as dores ou as feridas; são mais como farpas na pele, que custam a sarar porque não há substância suficiente. Gostaria que eu e você nos déssemos melhor.” “Algumas coisas são difíceis de esquecer”, ela respondeu. “É uma questão de confiança.” Não havia resposta para isso e, em seguida, ela perguntou: “Quando pretende levá-la?”. “Assim que conseguir uma governanta. Espero que depois de amanhã.” “Isso é impossível. Tenho de pôr as coisas de Honoria em ordem. Não antes de sábado.” Ele consentiu. De volta à sala, Lincoln ofereceu-lhe um drinque. “Está bem, vou tomar meu uísque de hoje”, ele disse. Estava ameno ali; era um lar, com as pessoas ao redor da lareira. As crianças se sentiam seguras e importantes; a mãe e o pai estavam sérios, vigilantes. Tinham tarefas mais importantes relativas às crianças do que fazer sala à visita. Uma colher de remédio, afinal, era mais importante do que as tensas relações entre Marion e ele. Não eram pessoas medíocres, mas se deixavam levar demais ao sabor da vida e das circunstâncias. Perguntou-se se não podia fazer alguma coisa para livrar Lincoln da rotina de seu banco. Um longo toque da campainha da frente; a bonne à tout faire passou por eles e saiu pelo corredor. A porta se abriu em meio a outro longo toque, ouviram-se vozes e os três na sala se olharam expectantes; Lincoln moveu-se para fazer o corredor entrar no seu campo de visão e Marion se levantou. A empregada voltou, seguida de perto por vozes, as quais se materializaram na sala sob a forma de Duncan Schaeffer e Lorraine Quarrles. Estavam alegres, muito alegres — na verdade, morrendo de rir. Por um momento, Charlie ficou atônito; incapaz de entender como tinham descoberto o endereço dos Peter. “Ah-h-h!” Duncan apontou seu dedo canalhamente para Charlie. “Ah-h-h!” Os dois despejaram nova cascata de risos. Ansioso e desconcertado, Charlie apertou-lhes as mãos rapidamente e os apresentou a Lincoln e Marion. Marion respondeu com a cabeça, mal falando. Dera um passo para trás, em direção ao fogo; sua garotinha se postara a seu lado, e Marion pôs um braço em seu ombro. Com crescente aborrecimento pela intrusão, Charlie esperou que se explicassem. Depois de alguma concentração, Duncan disse: “Viemos convidá-lo para jantar. Lorraine e eu insistimos que todo esse misterinho, esse segredinho sobre o seu endereço precisa terminar.” Charlie aproximou-se deles, como se para forçá-los a recuar rumo ao corredor. “Desculpem, mas não posso. Digam onde estarão e prometo telefonar em meia hora.” Isso não lhes causou a menor impressão. Lorraine sentou-se no braço de uma cadeira e, focalizando seus olhos em Richard, gritou: “Ah, que gracinha de menino! Vem cá, menino”. Richard olhou para a mãe, mas não se mexeu. Com um perceptível dar de ombros, Lorraine voltou-se para Charlie: “Vamos jantar. Seus primos não vão dar a mínima. É tão difícil ver você. Ou ter você.” “Não posso”, disse Charlie, ríspido. “Vocês dois vão jantar e eu telefono depois.” A voz dela ficou subitamente desagradável. “Está bem, nós vamos. Mas ainda me lembro muito bem de quando você esmurrou minha porta, um dia, às quatro da manhã. Eu fui boazinha e te ofereci um drinque. Vamos, Dunc.” Ainda em câmera lenta, com rostos irritados e desfeitos e passos incertos, eles se retiraram pelo corredor. “Boa noite”, disse Charlie. “Boa noite!”, disse Lorraine enfaticamente. Quando ele voltou para a sala, Marion permanecia imóvel, só que agora seu filho estava de pé a seu lado, envolto por seu outro braço. Lincoln continuava balançando Honoria, como um pêndulo, de um lado para o outro. “Que atrevimento!”, disse Charlie. “Que verdadeiro atrevimento!” Nenhum dos dois respondeu. Charlie desabou numa poltrona, pegou seu drinque, devolveu-o à mesinha e disse: “Gente que não vejo há dois anos tendo o descaramento de...” Calou-se. Marion omitira o som “Ah!” num arquejo rápido e irado, virou-se de supetão e saiu da sala. Lincoln sentou Honoria cuidadosamente. “Crianças, vão lá para dentro tomar a sopa”, disse. Quando elas obedeceram, virou-se para Charlie: “Marion não está bem e não consegue agüentar choques. Esse tipo de gente a deixa fisicamente doente.” “Não lhes pedi para vir aqui. Eles arrancaram de alguém o seu nome e deliberadamente...” “Bem, foi uma pena. Não ajudou nada. Me dê licença por um minuto.” Sozinho, Charlie sentou-se, tenso. Podia ouvir as crianças jantando e conversando em monossílabos no aposento ao lado, já esquecidas da cena entre os mais velhos. Ouviu um murmúrio vindo da outra sala e depois o ruído de um telefone sendo tirado do gancho. Em pânico, foi para o outro extremo da sala, onde não conseguia ouvir nada. Um minuto depois, Lincoln voltou. “Escute, Charlie. É melhor cancelarmos o jantar esta noite. Marion não está bem.” “Está furiosa comigo?” “Mais ou menos”, ele disse, um pouco áspero. “Ela não é forte e...” “Mudou de idéia a respeito de Honoria?” “Neste momento está bem amarga. Não sei. Telefone para o banco amanhã.” “Gostaria que você explicasse a ela que nunca imaginei que essas pessoas viriam aqui. Estou tão indignado quanto vocês.” “Não dá para explicar nada a ela agora.” Charlie se levantou. Pegou o casaco e o chapéu e dirigiu-se para o corredor. Em seguida abriu a porta da sala de jantar e disse, com uma voz estranha: “Boa noite, crianças”. Honoria se levantou e deu a volta na mesa para abraçá-lo. “Boa noite, minha querida”, ele disse, e em seguida, tentando tornar sua voz mais terna, como se para conciliar alguma coisa: “Boa noite, meus filhos”.
 

V
 
Charlie foi direto ao bar do Ritz, com a furiosa ideia de encontrar Lorraine e Duncan. Mas eles não estavam lá, e ele se deu conta de que, de qualquer maneira, não podia fazer nada. Nem tocara em seu drinque na casa dos Peter e agora pediu um uísque com soda. Paul apareceu para cumprimentálo. “As coisas mudaram muito”, disse, com tristeza. “Nosso movimento caiu pela metade. Ouvi falar de tanta gente que voltou para os Estados Unidos e perdeu tudo, talvez não na primeira queda da Bolsa, mas na segunda. Seu amigo George Hardt foi um deles, pelo que sei. Vai voltar para lá?” “Não, estou trabalhando em Praga.” “Ouvi dizer que você também perdeu muito.” “Perdi.” E acrescentou, amargo: “Mas já tinha perdido muito na alta”. “Vendendo barato.” “Mais ou menos isso.” De novo a lembrança daqueles dias assolou-o como um pesadelo — as pessoas que eles tinham conhecido em viagens; e, depois, pessoas que não sabiam somar dois e dois ou pronunciar uma frase coerente. O homenzinho com quem Helen consentiu em dançar na festa do navio e que a insultara a três metros da mesa; as mulheres e as moças alcoolizadas e drogadas que eram arrastadas, aos gritos, para fora dos lugares públicos... ... Os homens que deixavam suas mulheres na rua em meio a tempestades de neve, porque a neve de 1929 não era neve de verdade. Se você não quisesse que fosse neve, bastava pagar. Foi ao telefone e ligou para o apartamento dos Peter; Lincoln atendeu.
 
“Estou telefonando porque esse assunto não me sai da cabeça. Marion disse alguma coisa mais definitiva?” “Marion não está bem”, Lincoln respondeu, abrupto. “Sei que não foi sua culpa, mas não posso permitir que ela sofra as conseqüências. Acho que deveríamos deixar o caso esfriar por uns seis meses; não posso me arriscar a forçá-la a nada neste momento.” “Entendo.” “Lamento, Charlie.” Ele voltou para sua mesa. O copo de uísque estava vazio, mas ele fez um sinal de negativo com a cabeça quando Alix olhou para ele, oferecendo-lhe outro. Não tinha muito a fazer agora, exceto mandar a Honoria algumas coisas; no dia seguinte, mandaria muitos presentes para Honoria. Pensou irritado que eles só lhe custavam dinheiro — tinha dado dinheiro a tanta gente... “Não, já chega”, disse para outro garçom. “Quanto foi?” Um dia ele voltaria; não podiam obrigá-lo a pagar para sempre. Queria sua filha e nada mais interessava. Já não era jovem, capaz de sustentar-se sozinho com belos sonhos e pensamentos. Tinha absoluta certeza de que Helen não gostaria de vê-lo só.


3 comentários:

Unknown disse...

Oi, amigo, quanto tempo, hein? Também quase não abro mais o face. Tudo em paz com você? Tem escrito muito? Vou salvar, para ler mais tarde e bem devagar. Vou também repassar para uma amiga que é professora de francês, adora Paris, onde também ficou por um tempo. Meu abraço fraterno e saudoso. Nadia

Armando Nobre disse...

Gosto muito de Fitzgerald, mas não conhecia esse conto. Muito bom. As fotografias também são excelentes. Parabéns pelo blogue.

António Cortez disse...

Excelente. Adorei o conto, adorei as imagens.