maio 30, 2024

......................... CLARICE LISPECTOR: Uma MULHER DIFERENTE

 


“Quando aprendi a ler, devorava os livros, e pensava que era como árvore, como bicho, coisa que nasce.”
 
“Eu nunca sei de antemão o que eu vou escrever. Tem escritores que só se põem a escrever quando têm o livro todo na cabeça. Eu não. Vou me seguindo e não sei no que vai dar.”
 
Ilustrações:
PAUL DELVAUX
(1897 – 1994. Wanze / Bélgica)

 
 
Em 20 de outubro de 1976, um ano antes de seu falecimento, CLARICE LISPECTOR (Chechelnyk, Ucrânia. 1920 – 1977) foi entrevistada na sede do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Atuaram como entrevistadores a escritora Marina Colasanti, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna e o diretor do MIS, João Salgueiro. Infelizmente não há registro em vídeo. Confira.
 
AFFONSO ROMANO de SANT’ANNA (ARS) - Clarice, vamos começar com alguns dados biográficos?
 
Eu nasci na Ucrânia, mas já em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que nem aparece no mapa, chamada Tchetchelnik, para eu nascer, e vieram para o Brasil, onde cheguei com dois meses de idade. De modo que me chamar de estrangeira é bobagem. Eu sou mais brasileira do que russa, obviamente.
 
ARS - As pessoas te chamam de estrangeira por causa do sotaque?
 
Por causa do “erre”. Pensam que é sotaque, mas não é. É língua presa.
 
JOÃO SALGUEIRO (JS) - Você tem irmãos, Clarice?

 
Duas irmãs: Elisa Lispector e Tania Kaufmann. Bem, aqui no Brasil fomos para o Recife… Olha, eu não sabia que era pobre...
 
MC - Você nunca disse isso, inclusive. Eu nunca li isso dito por você.
 
Eu era muito pobre. Filha de imigrantes.
 
ARS - O que seus pais faziam na Ucrânia?
 
O meu pai trabalhava na lavoura e, quando chegou no Brasil, ele foi trabalhar com representação de firmas.
 
ARS - Mas havia alguma formação artístico-literária na família que tivesse te levado à literatura?
 
Nenhuma. Agora, no dia do casamento do meu filho, Paulo Gurgel Valente, uma meio tia minha, que estava no casamento, chegou junto a mim e me deu a melhor coisa do mundo. Ela disse: “Você sabe que sua mãe escrevia? Ela escrevia diários”.
 
ARS - Desses diários você não tem notícias? A família não guardou?
 
Não, nada. Minha mãe era paralítica e eu morria de sentimento de culpa, porque pensava que tinha provocado isso quando nasci. Mas disseram que ela já era paralítica antes. Nós éramos bastante pobres. Eu perguntei um dia desses à Elisa, que é a mais velha, se nós passamos fome e ela disse que quase. Havia em Recife, numa praça, um homem que vendia uma laranjada, na qual a laranja passava longe, e um pedaço de pão. Era o nosso almoço.
 
MC - Você não tinha lembrança disso?
  
Não tinha consciência. Era tão alegre que escondia a dor de ver minha mãe assim. Eu era tão viva!
 
MC - Em outros depoimentos e entrevistas, você sempre transmitiu a ideia de uma infância muito despreocupada, muito rica.
 
Era como eu me sentia. Inclusive, eu morava em um andar de um prédio na praça Maciel Pinheiro, que hoje está tombado, porque é muito bonito e velho mesmo. Morávamos lá, e eu descia, ficava na porta e, a toda criança que passasse, conforme fosse, porque meu instinto me guiava, eu perguntava: “Quer brincar comigo?”. Algumas aceitavam, outras não.
 
MC - Quanto tempo você ficou no Recife, Clarice?
 
Até os doze anos de idade.
 

ARS - E as suas primeiras leituras literárias começaram, mais ou menos, em que época?
 
Logo que eu aprendi a ler. Bom, antes de aprender a ler e a escrever eu já fabulava. Inclusive, eu inventei com uma amiga minha uma história que não acabava. Era o ideal, uma história que não acabasse nunca.
 
ARS - Uma amiga imaginária, não?
 
Não. Real. A história era assim: eu começava, tudo estava muito difícil; os dois mortos. Então entrava ela e dizia que não estavam tão mortos assim. E aí recomeçava tudo outra vez. Depois, quando eu aprendi a ler, devorava os livros, e pensava que livro era como árvore, como bicho, coisa que nasce. Não sabia que havia um autor por trás de tudo. Lá pelas tantas eu descobri que era assim e disse: “Isso eu também quero”. No “Diário de Pernambuco”, às quintas-feiras, publicava-se contos infantis. Eu cansava de mandar meus contos, mas nunca publicavam, e eu sabia por quê. Porque os outros diziam assim: “Era uma vez, e isso e aquilo.” E os meus eram sensações.
 
ARS - Desses contos, guardou alguma cópia ou publicou em algum lugar?
 
Não, não guardei nada.
 
MC - Você também escreveu uma peça de teatro infantil quando tinha nove anos, não é isso?
 
Quando tinha nove anos, vi um espetáculo e, inspirada, em duas folhas de caderno, fiz uma peça em três atos, não sei como. Escondi atrás da estante porque tinha vergonha de escrever.
 
ARS - Qual era o nome dessa peça?
 
“Pobre Menina Rica”.
 
ARS - Você ia ao colégio normalmente ou estudava em casa?
 
Eu estudava no Grupo Escolar João Barbalho, que é uma escola pública no Recife. Depois, fiz o exame de admissão para o ginásio. Era apertadíssimo, mas passei. Fiz até o terceiro ano lá. Depois vim para cá. Estudei num coleginho vagabundo que dava dez a todo mundo. Quando eu era pequena, era muito reivindicadora dos direitos da pessoa, então diziam que eu seria advogada. Isso me ficou na cabeça e, como eu não tinha orientação de nenhuma espécie sobre o que estudar, fui estudar advocacia.
 
ARS - Chegou a entrar na faculdade?
 
Entrei e muito bem colocada! E traduzindo latim, que agora nem se usa mais.
 
ARS - Fez advocacia até que ano? Terceiro ano?
 
Não, eu terminei o curso. No terceiro ano eu reparei que nunca lidaria com papéis e que a minha ideia — veja o absurdo da adolescência — era estudar advocacia para reformar as penitenciárias. O terceiro foi o último ano do direito penal. Aliás, San Tiago Dantas dizia que quem vai ser advogado por causa de direito penal não é advogado: é literato. Então eu vi que aquilo já não me interessava e arranjei um emprego em um jornal. Só terminei o curso porque uma colega minha, que também escrevia e nunca mais escreveu, tinha muita raiva de mim e um dia me disse: “Você está escrevendo agora, mas tudo que você começa nunca acaba”. Isso me deu um susto e eu depressa acabei o curso. E nem fui à formatura. Eu já estava até casada, com meu ex-marido, Maury Gurgel Valente, que é hoje embaixador do Brasil junto a ALALC (Associação Latino-Americana de Livre-Comércio), no Uruguai.
 
MC - Que jornal foi esse em que você foi trabalhar?
 
O jornal “A Noite”. Já não existe mais. Eu fazia tudo, menos crime e nota social. Reportagem, entrevista. Depois eu trabalhei no “Diário da Tarde”, que desapareceu também. Parece que eu fecho os jornais.
 
ARS - No “Diário da Tarde” você fazia todas as seções também?
 
Lá eu fazia uma página feminina assinando como Ilka Soares, a atriz. Metade do dinheiro era para ela, metade era para mim. E ela bem que gostava: o nome dela aparecia todos os dias e não tinha trabalho nenhum. Mas era divertido mesmo, a gente consultava muita revista, via o modo de pintar o olho.
 
MC - De uma certa maneira, Clarice, desde que você trabalhou no “A Noite” você tem estado sempre com um pé na imprensa, porque depois você fez…
 
Uma coluna no “Jornal do Brasil.”
 

MC - Antes disso você fez a revista “Senhor”, não é isso? Quanto tempo?
 
Enquanto durou a revista “Senhor”. Todo mês publicavam alguma coisa minha. Muito antes, quando eu tinha quatorze para quinze anos, eu escrevi um conto e levei para uma revista que se chamava “Vamos Ler”, do Raimundo Magalhães Júnior. Então, fiquei lá, em pé. Eu era o que sou mesmo, uma tímida arrojada. Eu sou tímida, mas me lanço. Dei o conto para ele ler e disse: “É para o senhor ver se publica”. Ele leu, olhou e disse: “Você copiou isso de alguém? Você traduziu isso de alguém?”. Eu respondi que não e ele publicou. Depois houve um jornal chamado “Dom Casmurro”, para onde eu levei também algumas coisas, também sem nenhum conhecimento. Aí, eu cheguei lá e eles ficaram encantados, me acharam linda, que eu tinha a voz mais bonita do mundo e publicaram. Não pagavam nada, é claro.
 
ARS - O lançamento do seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, em 1944, causou um certo impacto na crítica brasileira.
 
Virgem Maria, se causou. Minha irmã Tania juntou as críticas, um livro grosso desse tamanho.
 
MC - Você partiu para esse livro com uma estrutura de romance já visualizada ou trabalhou primeiro formando pedaços que montou num romance?
 
Eu tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecidos escritores, não tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade, me ocorriam ideias e eu dizia: “Tá bem, amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber ainda que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. E assim, enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel em branco. E a ideia? Não tinha mais. Então, eu resolvi tomar nota de tudo o que me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso, que então eu conheci, que eu estava com um montão de notas assim, separadas, para um romance. Ele disse: “Depois faz sentido, uma está ligada a outra”. Aí eu fiz.
 
ARS – Lúcio Cardoso sugeriu alguma coisa, tecnicamente, em termos da construção do romance?
 
Não. A coisa é a seguinte: eu misturei as minhas leituras sem a mínima orientação. Havia uma biblioteca popular de aluguel na rua Rodrigo Silva, na cidade, e eu escolhia os livros pelos títulos. Resultado: misturava Dostoiévski com livro de moça, que hoje não existe mais. E de repente, quando fui escrever, não tinha nada a ver com o que eu tinha lido. Mas eu tinha que arriscar.
 
 
clarice e o marido maury gurgel valente
MC - O título “Perto do Coração Selvagem” é tirado de Joyce, se não me engano.
 
É de Joyce, sim. Mas eu não tinha lido o Joyce. Eu vi essa frase que seria como uma epígrafe.
 
ARS - O que a crítica sempre exaltou no seu trabalho é que você surgiu com um estilo pronto: não era um estilo em progresso. Em “Perto do Coração Selvagem” você já era Clarice Lispector e era ainda uma menininha de dezessete, dezoito anos.
 
Engraçado que eu não tenha tido influências. Já estava guardado dentro de mim. Eu já tinha escrito contos antes disso.
 
ARS - Há uma influência que parece que você mesma reconheceu uma vez, se não de influência direta, pelo menos de leitura constante sua, que era “O Lobo da Estepe”, do Hermann Hesse.
 
Li aos treze anos. Fiquei feito doida, me deu uma febre danada, e eu comecei a escrever. Escrevi um conto que não acabava mais e que eu não sabia como fazer muito bem, então rasguei e joguei fora.
 
MC - Você rasga muita coisa?
 
Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha empregada tem ordem de deixar qualquer pedacinho de papel com alguma coisa escrita lá como está.
 
MC - Você estava falando que começou escrevendo contos de criança, mas essa é uma atividade paralela e de vez em quando você publica um.
 
Hoje mesmo eu fui entrevistada por quatro meninas de onze anos do Santo Inácio, com fotografias e perguntas e perguntas por causa do “A Mulher que Matou os Peixes” e se era verdade que eu gostava de bichos. Eu disse: “É claro! Eu também sou bicho!”.
 
MC - E o que faz com que você escreva livros infantis esporadicamente?
 
Bom, primeiro meu filho Paulo, em Washington, onde morei.
 
JS - Quantos filhos você tem?
 
Dois. Um está morando com o pai e o outro está casado, mora aqui no Rio, Pedro e Paulo Gurgel Valente. Quando eu estava escrevendo “A Maçã no Escuro”, em Washington, meu filho Paulo me pediu, em inglês, — eu falava em português com ele, mas ele falava comigo em inglês — que escrevesse uma história para ele, e eu respondi: “Depois”. Mas ele disse: “Não, já!”. Então tirei o papel da máquina e escrevi “O Mistério do Coelho Pensante”, que é uma história real, uma coisa que ele conhecia. Eu escrevi em inglês para que a empregada pudesse ler para ele, que nessa época não era alfabetizado ainda… Passado um tempo, um escritor paulista, eu nem sei o nome mais, que organizava livros infantis, me perguntou se eu tinha algum. Eu disse que não. De repente me lembrei que tinha a história do coelho e que era só traduzir para o português, o que eu mesma fiz.
 

JS - O seu segundo livro, “O Lustre”, é de 1946, não é?
 
É mas, antes mesmo de publicar, eu estava engajada com outra coisa, de modo que eu não sentia essas coisas que depois eu senti muitas vezes: um silêncio horrível, uma exaustão. Ali não. Quando escrevi “O Lustre”, apesar de ser um livro triste, tive um prazer enorme de escrever.
 
ARS - O “Água Viva”, um livro posterior, dá a impressão de uma coisa fluida e que teve um jorro só de elaboração. Ele passou por esse processo seu de coletar pedaços? Você foi escrevendo enquanto montou?
 
Não, também anotando coisas. Esse livro eu passei três anos sem coragem de publicar achando que era ruim, porque não tinha história, porque não tinha trama. Aí o Álvaro Pacheco leu as primeiras páginas e disse assim: “Esse livro eu vou publicar”. Ele publicou e saiu tudo muito bem.
 
ARS - É um dos seus livros mais transitáveis. Na semana passada, eu estava em Recife com Ariano Suassuna e ele disse que acha “Água Viva” um dos melhores textos que já leu até hoje.
 
Virge Maria! Eu conheço pessoas que leem e odeiam.
 
JS - Clarice, vamos fazer uma cronologia da sua obra: seu primeiro livro foi “Perto do Coração Selvagem”, em 1944; a seguir veio “O Lustre”, que já estava até escrito, mas só foi publicado em 1946; depois “A Cidade Sitiada”, em 1949.
 
“A Cidade Sitiada” foi, inclusive, um dos meus livros mais difíceis de escrever porque exigiu uma exegese que eu não sou capaz de fazer. Eu estava perseguindo uma coisa e não tinha quem dissesse o que era. É um livro denso, fechado.
 
ARS - Qual foi a motivação que te levou a escrevê-lo?
 
É a formação de uma cidade, a formação de um ser humano dentro de uma cidade. Um subúrbio crescendo, um subúrbio com cavalos, tudo tão vital. Construíram uma ponte, construíram tudo e de modo que já não era subúrbio. Então o personagem dá o fora. Depois de “A Cidade Sitiada” veio “A Maçã no Escuro”… Foi engraçado, porque eu escrevi por duas vezes dois livros ao mesmo tempo. “Laços de Família” e “A Maçã no Escuro” foram escritos ao mesmo tempo. Eu ia para um conto, escrevia e voltava para “A Maçã no Escuro”. Mais tarde, isso aconteceu de novo com um livro que não é grande coisa: “Onde Estivestes de Noite?” e não me lembro qual outro, que eu escrevi ao mesmo tempo.
 
ARS – “A Maçã no Escuro” sempre me impressionou. Dos seus livros, foi o que mais me impressionou
 
Foi o único bem estruturado que eu escrevi, eu acho. Se bem que “Água Viva” segue o mesmo curso.
 
ARS - Teu livro na verdade é uma grande parábola. É uma parábola do indivíduo em busca da consciência, em busca de sua linguagem.
 
Se fazendo. Tanto que a primeira parte se chama “Como Nasce o Mundo”. A segunda é “O Nascimento do Herói”, porque já era homem e queria ser herói. E a terceira é “A Maçã no Escuro”.
 
ARS - Ainda dentro deste livro, você faz leituras ou teve influência de existencialistas?
 
Não. Nenhuma. Minha náusea inclusive é diferente da náusea de Sartre. Minha náusea é sentida mesmo, porque quando eu era pequena não suportava leite, e quase vomitava quando tinha que beber. Pingavam limão na minha boca. Quer dizer, eu sei o que é a náusea no corpo todo, na alma toda. Não é sartreana.
 
MC - Eu acho que é muito recorrente nos contatos de Clarice com o pessoal de literatura esse desencontro, porque os estudiosos de literatura têm dificuldade em admitir que o teu trabalho é de dentro para fora e não de fora para dentro. Teu trabalho realmente, como você mesma diz, se dita, se faz. E isto para os exegetas literários é uma coisa muito complicada porque eles procuram os caminhos “fora” que te levariam às coisas.
 
É, eu sei disso.
 

ARS - Então você tem na cabeça bastante dos seus textos escritos, apesar de você ter dito uma vez, uma coisa que me impressionou muito, que nunca releu um texto seu.
 
Eu ainda me lembro, mas eu nunca reli. Eu não releio. Eu enjoo. Quando é publicado já é como um livro morto, não quero mais saber dele. E quando leio, eu estranho, acho ruim, por isso não leio. Também não leio as traduções que fazem dos meus livros para não me irritar.
 
JS - Clarice, você publicou um livro de contos em 1952, não é?
 
Pelo Ministério da Educação, um livrinho fininho. Depois eu incluí esses contos em “Laços de Família”, porque esse outro livro praticamente não teve divulgação.
 
JS - Depois vem um livro em 1964, “A Paixão Segundo G. H.”.
 
Mas foi escrito em 1963. É curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi “A Paixão”, que não tem nada a ver com isso, não reflete!
 
ARS - Você acha que não?
 
Acho, em absoluto. Porque eu não escrevo como catarse, para desabafar. Eu nunca desabafei num livro. Para isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si.
 
JS - Em 1969, você publicou “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”. Você não gostaria de falar um pouco do livro?
 
É uma história de amor, e duas pessoas já me disseram que aprenderam a amar com esse livro.
 
JS - É um livro do qual você gosta muito?
 
Não.
 
JS - Então prefere algum outro — “Laços de Família”, por exemplo.
 
De “Laços de Família” eu estou meio enjoada, já está na sétima edição. Eu me lembro muito do prazer que eu senti ao escrever “A Maçã no Escuro”. Todas as manhãs eu datilografava, chegava a quinhentas páginas. Eu copiei onze vezes para saber o que é que estava querendo dizer, porque eu quero dizer uma coisa e não sei ainda bem ao certo. Copiando eu vou me entendendo e vou…
 
ARS - Quer dizer que o seu processo de produção, em síntese, é bastante complexo. Ao mesmo tempo em que joga com o elemento meio irracional, trabalha também na composição e montagem do texto e depois vai refazendo esse texto integral diversas vezes.
 
Não. Quando eu parto de uma ideia que me guia, eu não reescrevo, o que não quer dizer que não mexa muito nas palavras.
 
ARS - Você sabia que a Clarice é uma tremenda bruxa?
 
Ah, isso foi um crítico, não me lembro de que país latino-americano, que disse que eu usava as palavras não como escritora, mas como bruxa. Daí talvez o convite para participar do Congresso de Bruxaria da Colômbia. Me convidaram e eu fui.
 
JS - Há algum autor que tenha te influenciado mais?
 
Olha, que eu saiba, não.
 
JS - Você nunca sentiu um impacto violento com um livro?
 
Um pouco, às vezes. Senti com “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, que me fez ter uma febre real, “O Lobo da Estepe” também me virou toda. Meu primeiro emprego, quando eu tinha treze anos, ainda no ginásio, mas era professora particular de português e matemática… A propósito, por que eu estou falando nisso?…
 
JS - Influência literária. Qual era o autor que mais te influenciou.
 
Ah, bom! Então, com o primeiro dinheiro que eu ganhei, meu mesmo, entrei, muito altiva, numa livraria para comprar um livro. Aí mexi em todos e nenhum me dizia nada. De repente eu disse: “Ei, isso aí sou eu”. Eu não sabia que Katherine Mansfield era famosa, descobri sozinha. Era o livro “Felicidade”.
 

ARS - Virginia Woolf, com quem o próprio Álvaro Lins tentou, parece, comparar você.
 
Não, não tinha lido, e só li “Orlando”.
 
JS - E Franz Kafka?
 
Kafka eu fui ler muito mais tarde, quando já tinha publicados muitos dos meus livros. Eu sinto uma aproximação muito boa, mas eu já tinha escrito livros antes de ler suas obras.
 
JS - Você chegou a conhecer o pintor Giorgio de Chirico?
 
Sim, conheci. Eu estava em Roma e um amigo meu disse que o De Chirico na certa gostaria de me pintar. Aí, perguntou e ele disse que só me vendo. Aí me viu e disse: “Eu vou pintar o seu retrato”. Em três sessões ele fez e disse assim: “Eu poderia continuar pintando interminavelmente esse retrato, mas tenho medo de estragar tudo”.
 
JS - Onde se encontra esse retrato hoje?
 
Está lá em casa.
 
MC - Ela tem uma boa coleção de retratos. Vários artistas pintaram Clarice.
 
O negócio é o seguinte: é que eu, ao que parece, tenho um rosto exótico. E isso atrai pintores.
 
MC - Clarice, como é que você conseguiu conciliar a sua personalidade tímida e a carreira diplomática, que você era obrigada a acompanhar?
 
Eu detestava, mas eu cumpria com minhas obrigações para auxiliar meu ex-marido. Eu dava jantares, fazia todas as coisas que se deve fazer, mas com um enjoo.
 
MC - E você escrevia paralelamente? Porque a vida diplomática ocupa muito.
  
Escrevia, atendia o telefone, as crianças gritando, o cachorro saindo e entrando. “A Maçã no Escuro” foi isso.
 
MC - A presença dos seus filhos é muito constante em contos, anotações, trechos. Você viveu sempre muito ligada com eles, não?
 
Sim, eu sou ligadíssima neles.
 
MC - E como eles vivem o fato de você ser escritora? Eles são seus leitores?
 
Não sei, nunca perguntei, mas Paulo, um dia desses falou de um conto meu, aí soube que ele leu. Porque o que eu sou, principalmente, é mãe deles, e não escritora. E deve ser chato à beça ter mãe escritora.
 
JS - Era bom viajar?
 
Olha, eu morria de saudades do Brasil. Eu estive fora do Brasil quase dezesseis anos. Quando não aguentava a saudade vinha ao Brasil. Quando eu estava lá, todo mundo me dizia: “Por que não manda os livros para uma editora no estrangeiro, para traduzir”. Eu dizia: “Agora não é tempo de traduzir, é tempo de trabalhar”. Não me interessa e nunca pedi a ninguém para me publicar fora do Brasil.
 
ARS - Quais foram suas últimas leituras? O que você leu recentemente, que tenha te impressionado mais. Mesmo de crítica literária, que eu sei que você lê para descansar.
 
É, eu gosto muito de ler ensaio. Mas devo confessar que há muito tempo que eu não leio.
 
ARS - Você acha que ler muito atrapalha o processo de criação?
 
Eu não diria que atrapalha, mas quando estou trabalhando eu não leio nada.
 

ARS - E quando você lê, mais poesia ou prosa?
 
Os dois. Sua poesia é muito boa, eu leio. E a Marina escreveu um livro muito bom, muito original, sem copiar de ninguém, sem modismos, inovações… Eu leio muito pouco. É um crime, mas é verdade.
 
ARS - Você já teve alguma tentativa explícita de escrever poesia? Porque o seu texto, a rigor, é em prosa mas “Água Viva” é um texto poético…
 
Todo mundo parece que começa com poesia, não é? Eu andei escrevendo umas folhas, mas jogava fora, porque não prestavam.
 
ARS - Você é convidada sistematicamente para fazer conferências, palestras. Você gosta?
 
Não gosto, mas pagam cachê e a viagem. Eu gosto muito de viajar. Aí eu faço, e depois há os debates…
 
ARS - Você sempre se deu bem com os prêmios ou já se irritou, se envolveu em polêmicas, desgastes…
 
Não ligava a mínima, nada, nada.
 
JS - Os prêmios não te afetam em nada? Vaidade? Satisfação?
 
Não, não sei explicar, mas prêmio é fora da literatura — aliás, literatura é uma palavra detestável —, é fora do ato de escrever. Você recebe como recebe o abraço de um amigo, com determinado prazer.
 
ARS - E as teses que são feitas sobre você em universidades, recebe visitas do estrangeiro?
 
Vem, vem sim. Há pouco tempo um jornalista uruguaio veio me entrevistar. Aliás, foi muito franco. Ele olhou os meus retratos e disse assim: “Você era linda! Você ainda é bonita, mas não tanto”. E eu disse: “Mas o tempo passa, não é?” Ele, então, me falou: “No começo você não é muito simpática, fica muito fechada e desconfiada; só depois é que você se torna simpática”. Mas uma coisa, pelo menos ele me disse: “Que pena a sua mão queimada, porque você tem mãos tão bonitas!”. Eu sou procurada sim, recebo muita gente. Eu tenho muita antologia, até no Canadá. Sempre me escrevem pedindo autorização, mas sem falar nunca em pagamento.
 
ARS - A Marina sempre diz que, num país mais organizado, desenvolvido, uma escritora como você teria, por causa do que escreve, em decorrência, um nível de vida bastante tranquilo.
 
Um livro que faça sucesso de crítica nos Estados Unidos enriquece o escritor! Um livro!
 
MC - Todos os seus fizeram sucesso e você continua fazendo conferências e traduções…
 
JS - Conferências e traduções que são duas coisas detestáveis.

 
Realmente detestáveis!
 
MC - Quando você vai ao Recife se sente em casa ou sua terra é o Rio?
 
Agora, minha terra é o Leme, onde moro desde 1959.
 
JS - Você, no contexto do mundo atual, se sente integrada na sociedade ou se sente solitária?
 
Olha, eu tenho amigos, amizades, mas escrever é um ato solitário. Fora do ato de escrever eu me dou com as pessoas.
 
JS - Quer dizer que não sente solidão?
 
Às vezes, às vezes, e até muito profunda. O Alceu Amoroso Lima escreveu uma coisa que foi muito repetida, que eu estava numa trágica solidão nas letras brasileiras.
 
MC - Há um tempo, nós estávamos conversando na tua casa, e você estava atravessando um período de crise de escrever. Quer dizer, você não queria escrever. Você tinha acabado o livro anterior a esta novela que está escrevendo agora. Você achava inclusive que não voltaria a escrever. Você dizia que a tua libertação seria poder não escrever.
 
É claro! É um fardo!
 
MC - E como você sai da crise?
 
Se eu já tenho notas para o próximo, não há crise. Agora, ficar num vazio de repente é uma dureza. É uma dureza. E eu não sei trabalhar me obrigando a trabalhar. Não consigo fazer nem um nada.
 
JS - E essa crise se manifesta como angústia, ansiedade?
 
Como um grande vazio, uma perdição.
 

JS - E logo que aparece outra ideia é afastada?
 
Eu já me reencontro de novo e trabalho.
 
JS - Você tem mais alguma coisa para dizer a respeito da sua obra?
 
Acho que não. Vocês fizeram boas perguntas, eu respondi. Quero somente que se saiba que hoje, 20 de outubro de 1976, está chovendo, eu estou com um vestido de camurça, estou com meus amigos Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti. E quero saber, que valor tem isso depois que eu morrer?
 
JS - O valor é fundamental porque o seu nome fica na literatura brasileira.
 
Ficará? Eu não escrevo para a posteridade não.
 
MC - Você disse que é um animal. Você é algum animal determinado?
 
Não. Os outros é que me acham com ar de tigre, de pantera. Outros me achavam parecida com garça, por causa das pernas compridas… Quando eu era pequena, eu tinha gato que não acabava mais.
 
MC - As pessoas devem achar que você é felina por causa dos olhos, mas não é, não. É porque você tem um comportamento interno e uma observação constante que é dos felinos.
 
É, eu concordo. Com o que eu conheço de gatos, eu concordo.
 
Entrevista publicada em “Outros Escritos” (Rocco), volume organizado por Teresa Montero e Lícia Manzo.
 



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