março 09, 2025

******************* ANTÔNIO LOPES: a ARTE da CRÔNICA



 

Olhava o mar, a noite imensa, o céu de estrelas.
JORGE AMADO
(1912 – 2001. Itabuna / Bahia)
Terras do Sem-Fim (1943)
 
Em cada lugar deixei
um pouco do que fui
daquele que não serei.
Como juntar essas coisas
que outros nomes se dão
na palma de uma só mão.
Se são vastos estuários
e esses rios agrários
desembocam no coração.
Se são rostos, contrações,
esgares, risos, apelos,
lágrimas, incomunhões.
Se a poeira cobriu tudo
nas dobras do coração?
TELMO PADILHA
(1930 – 1997. Itabuna / Bahia)
 
Ilustrações:
GLAUCO RODRIGUES
(1929 – 2004. Bagê / Rio Grande do Sul)
 
 
Com publicações que retratam fielmente o cenário e o povo do sul da Bahia, ANTÔNIO LOPES (1941. Triunfo, Pageú de Flores / Pernambuco) é um excelente escritor. Para quem deseja conhecer histórias grapiúnas e se emocionar com reflexões de vida, com um toque de deboche e de crítica social, os títulos publicados por ele levam a um mergulho inquietante nas emoções e no comportamento humano. Pensando no seu admirável talento com as palavras, planejei essa entrevista para conhecermos um pouco mais o escritor e para destacar a sua significância no nosso panorama literário. De fértil atuação jornalística, ele trabalhou em diversos jornais, além de publicar 9 livros, desde o primeiro em 1999, “Buerarema Falando para o Mundo”.
 
Perdeu cedo os pais e foi adotado pelo primogênito da família, João Lopes. Sob seus cuidados, mudou-se para a baiana Buerarema, no tempo em que ainda era Macuco (seu nome enquanto distrito de Itabuna), cercada de matas e cacaueiros. Estudou o primário e o ginásio. Adulto, em São Paulo, fez parte da equipe de Samuel Wainer no histórico jornal “Última Hora”. Em 1964, em pleno Regime Militar, retornou ao sul da Bahia. Descoberto pelo poeta Telmo Padilha, foi trabalhar com ele na “Tribuna do Cacau”. Conviveu com os grandes jornalistas e escritores grapiúnas da época, atuando nos jornais “SB – Informações e Negócios”, “A Região” e “Agora”. Trabalhou em rádio, televisão, assessoria e deu aulas de português, história e redação. Tem duas filhas e quatro netos. Tomou posse em 2001 na Academia de Letras de Ilhéus.
 
De texto simples, humorado e leve, com uma linguagem envolvente, conduz o leitor ao inevitável prazer da leitura, narrando experiências, histórias, viagens, filmes, músicas, anedotas e livros. Segundo a professora Evelina Hoisel, titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), “impressiona a argúcia com que ele articula a matéria vivida em relatos engenhosamente construídos, recorrendo ao diálogo com um variado repertório de escritores, de artistas, de obras literárias, cinematográficas e musicais.” Leitor das suas crônicas no jornal “Agora” e da sua coluna “Universo Paralelo” no blog “Pimenta
, aprecio o escritor ANTÔNIO LOPES desde os anos 80. Curto o seu bom humor, simplicidade e sabedoria. Confira nossa entrevista.
 
01
entrevistador
Todo escritor tem algo para contar de sua relação inicial com a literatura. Qual é seu caso? Como começou?

Lopes

Tanto tempo depois, ainda me sinto corar, se me chamam de “escritor”. Creio que sou um “jornalista de batente” (se ainda há quem conheça esta expressão) que, para o bem ou para o mal, publicou livros. Não senti aquele borbulhar do gênio a que se refere Castro Alves, apenas precisava preencher uma página do “Agora” e resolvi contar estórias.
 
02
entrevistador
Sua literatura é mais intuitiva, ou mais racional, ou é uma fusão entre as duas coisas?

Lopes

Não saberia dizê-lo. Talvez seja filha da necessidade, não do talento, inspiração ou elucubrações de teorias.
 
03
entrevistador
Revelou recentemente desencanto com a literatura e a humanidade, mas seu bom humor é conhecido. Como é o trabalho do escritor bem humorado e desencantado que tem de retratar um ofício e um povo?

Lopes
 
O humorista é um indignado, na definição de Millôr Fernandes, humorista e gênio. Assim, talvez meu bom humor não me faça o bem que faz a meus eventuais leitores. Para quem, como eu, não tem obrigação de fazer rir, as coisas engraçadas que emergem do texto são casuais. Não pretendo ser engraçado, mas me mostrar indignado com o que está no meu entorno, e dizer isto com certa leveza. Quando o Brasil “nasceu”, Gil Vicente já espalhava em Portugal que “ridendo castigat mores”. A gente não corrige nada, mas se diverte um pouco.
 
04
entrevistador
Sou seu leitor desde sempre. Seus livros são sinceros e trabalhados, do ponto de vista da linguagem...

Lopes

Suponho carregar comigo toda aquela carga de vaidades comum aos deste meio. Cito de memória, sujeito a pedradas à esquerda e à direita: “Que proveito alguém tem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol? Tudo é vaidade.” Penso que o foco maior de quem escreve deva ser mudar o mundo, não jogar confetes, serpentinas e lantejoulas em si mesmo. “Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais maravilhoso do que eu?” – parece ser o mantra de muitos escritores, que se acham acima dos mortais comuns. Machado de Assis, que todo mundo conhece pelo menos de nome, já disse não ser homem de recusar elogios, pois “eles fazem bem à alma e ao corpo.” De minha parte, sem querer desdenhar dos que me elogiam (e são tão poucos!), gosto de lembrar Marques Rebelo, citado por Hélio Pólvora: “A única crítica que, de fato, tem importância, é a dos amigos.” Quanto à linguagem, a que você se referiu, tenho a obrigação, como jornalista, do zelo pelas palavras, pois elas são meu instrumento de trabalho.
 
05
entrevistador
Em sua literatura, ao que parece, o predominante é contar com personagens da realidade. É algo pensado?

Lopes

Acho que reedito os “heróis” e companheiros da minha infância e juventude: Zeca de Agripino, Zito Calango, Dr. Elias, Pastor Freitas, Mundinho Cangalha e outros (em Buerarema) e, no lendário I.M.E. de Ilhéus, Horizontina Conceição, Wilson Rosa, Washington Landulpho, Wilson Trindade, Antônio Cruz (o único ainda vivo dessa geração) e Milton Santos (de quem fui aluno à distância – e sou ainda hoje). Eles surgem naturalmente em meus textos, que são textos, basicamente, de memorialista.

06
entrevistador
Tem preferências entre seus livros?

Lopes

Hora do lugar comum: “livros são como filhos...”
 
07
entrevistador
O que pensa a respeito da literatura brasileira?

Lopes

O meu conceito é muito pessoal, provavelmente inaceitável pelos poderosos do meio. Creio que o Brasil precisa de uma ficção mais participativa, em oposição à literatura “arte pela arte”. Uma abordagem à Jorge Amado, Lima Barreto e Graciliano Ramos, ficção de denúncia e coragem, arte literária mais engagée, mais voltada para as aspirações do Brasil e do seu povo. Isto com a elegância de Machado de Assis, a criatividade de José Cândido de Carvalho e Guimarães Rosa, e uma pitada de lirismo de Rubem Braga e Vinícius de Moraes.
 
08
entrevistador
O fato de a língua portuguesa ser pouco difundida impede que nossa cultura seja mais conhecida?

Lopes

Brasileiro, todos sabem, tem eterno complexo de vira-lata. O inglês é a voz do império, a linguagem do colonizador, língua de barbares, que substituiu o francês civilizado. Tanto assim que nossa alma de colonizados recebe, a cada dia, nova “contribuição” do inglês, já quase fazendo Camões refém de Shakespeare. Tem gente chamando o norte de north, aniversário é niver e as escolas (supremo desserviço à cultura nacional) não tomam conhecimento do Saci-Pererê e da Mula-sem-Cabeça, mas fazem festa de Halloween, idiotizando mais ainda a classe média deslumbrada. É imperioso ter à mão um dicionário, para quando nos afrontarem com coach, cash back, fake news e babaquices do tipo. À parte as sugestões de xenofobismo, imagino que Machado de Assis teria outro destino mundial, se escrevesse em inglês. Ou, como tinha domínio do francês literário (traduziu “Os Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo), bem poderia ter feito “Mémoires Posthumes de Bras Cubas”, para disputar o Nobel. Para “Dom Casmurro” (“Monsieur Grincheux?”) vale a mesma observação.
 
09
entrevistador

Com quem se identifica na literatura nacional?

Lopes

Gostaria de ver esta pergunta respondida por outros, pois, creio, ao autor sempre falta isenção. Telmo Padilha diz que me aproximo muito de Stanislaw Ponte Preta. “Irmão em talento, inteligência e seriedade”, escreveu, de próprio punho, na folha de rosto de “O Melhor de Stanislaw Ponte Preta”, José Olympio Editora / 1989. Dedicatória que guardo no fundo do peito esquerdo, para ler, bandeiramente, naqueles dias em que esteja triste, mas triste de não ter jeito. No duro, mesmo, eu gostaria de ser José Cândido de Carvalho, criador daquele coronel Ponciano de Azeredo Furtado, que, com um par de frases bem pontuadas e virguladas, é capaz de subverter a língua portuguesa e pôr o humorismo pelo avesso. Enquanto o lobisomem não vem.
 
10
entrevistador
Existe o prazer da escrita ou é um processo doloroso?

Lopes

Há muita pose, caras e bocas sobre este assunto, até com uns exemplos bem gritantes: Fernando Sabino gostava desta frase, de autoria discutida: “Escrever é fácil; basta abrir uma veia”; já João Ubaldo Ribeiro fez ótimos textos sobre a dificuldade que tinha com o computador. Conversa. Será que um eletricista sofre muito pra colocar uma tomada na parede? Um pedreiro tem problemas pra assentar ladrilhos? Uma costureira não consegue (sem “abrir uma veia”) pregar os botões de uma camisa? Não, não e não. Logo, por analogia, escritores escrevem. Simples. O mais é devaneio. Fernando escrevia facilmente (e falava ainda mais facilmente), enquanto João Ubaldo, ao contrário de ter problemas com a maquininha infernal, era fera em computação. Eu, ex-cronista da província, sem choro nem vela, digo e provo que escrever me deleita.
 
11
entrevistador
Trabalhar no jornalismo atrapalhou sua literatura?

Lopes
 
Não creio que o jornalismo atrapalhe a literatura. Creio que ele é uma fase, uma etapa daquela. No meu caso pessoal, que não é único, os dois temas se confundem: o jornalismo é minha literatura. E vice-versa.
 
12
entrevistador
Como foi sua temporada em São Paulo, no jornal “Última Hora”, com o lendário Samuel Wainer?

Lopes

Foi menor do que eu gostaria que fosse, pois a UH” consolidava um modelo de redigir notícias nascido no Diário Carioca, que revolucionaria a composição da página e a relação jornal-leitor: a “pirâmide invertida”, que, lamentavelmente, há veículos por aqui que ainda não descobriram. O tempo era de política fervilhante, a mudança no ar, estudantes e sindicatos em pé de guerra. Ao contrário de hoje, quando grupinhos de jovens discutem a novela das nove, na época, se você via um grupo reunido, ele estava discutindo política, reformas de base, Revolução cubana, essas coisas. A UH era um jornal moderno, inovador, corajoso (Wainer o definia como “de oposição à classe dirigente”), engajado com reformas sociais, que nasceu para apoiar Getúlio e, nos sessenta, apoiava Jango, herdeiro do getulismo. Os generais derrubaram Jango, fecharam o jornal, que andou de mão em mão – até um general foi seu dono, em certo momento, Samuel Wainer foi pro Chile, depois, Paris. Eu militava na Polop, no estilo “Maria vai com as outras”, sem maiores tintas de teoria política (esta parte era com Moniz Bandeira, Vânia Bambirra, Teotônio Jr., Eder Sader e outros – todos intelectuais conceituados, com livros publicados etc.). Com o golpe, eles escolheram o exílio ou a clandestinidade. Fui demitido da Rhodia (trabalhava lá durante o dia e, à noite, na UH) por não contribuir com a campanha “Ouro pelo bem do Brasil” e pregar contra tal campanha.  Demitido, senti que o círculo se fechava, escafedi-me pra Buerarema, após a prisão (e soltura) do companheiro do Banco do Brasil, com quem dividia um apartamento. Esse apartamento nos foi cedido pela linguista Evelin Singer (ex-mulher do economista Paul Singer), que se mudara para Londres.
 
13
entrevistador

E o trabalho com o poeta Telmo Padilha na “Tribuna do Cacau”? O que recorda dessa época de juventude?

Lopes

Sem concessões ao detestável “antigamente era melhor”, foi um tempo muito bom, quando o jornalismo, feito no contato entre as pessoas, tinha alguma poesia. Trabalhávamos com a gana de quem tem o mundo para salvar. Telmo – mesmo muito tempo após sairmos da Tribuna do Cacau” e seguirmos nossos rumos – era uma espécie de irmão mais velho: mostrava-se preocupado com o que eu fazia, quanto ganhava, que problemas enfrentava. Certa vez, ele coordenador da Comunicação da Ceplac, tentou me levar pra Brasília e trabalhar com ele. É claro que não conseguiu, pois eu não era funcionário da Ceplac e não havia meios legais para o contrato. Estivemos juntos até o dia de sua morte trágica, num acidente de automóvel. É curioso que ele é premonitório, no poema “A Caminho da Fazenda”, ao dizer: “No pó da estrada / Entre Itabuna e Macuco / Eu me perdia...” Ah, a falta que Telmo me faz!...
 
14
entrevistador
Crônica é o que mais gosta de ler e escrever?

Lopes

É o gênero literário mais próximo do jornal, quase um divisor entre o jornalismo e a literatura propriamente dita. Daí, minha identificação e o cometimento de algumas crônicas.
 
15
entrevistador
Quem você gosta de ler?

Lopes

Como Jorge Araújo em “Tear de Aracnídeos, “leio postes, casas comerciais, bulas, receitas, jornais, letreiros, tudo, até a ausência de senso da arte simples, da vida breve”. Certa vez perguntei a Telmo Padilha se ele estava lendo muito, ele me respondeu: “Relendo muito”. É verdade que tenho o vício de reler. Ando sempre às voltas com Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, José Lins do Rego... “O Coronel e o Lobisomem” eu não sei quantas vezes li. Mas também leio os novos, quando me motivam, e (para desespero de certos intelectuais), revisito Agatha Christie, Simenon, Raymond Chandler e outros do gênero.
 
16
entrevistador
Como seria uma lista contendo os três melhores livros baianos?

Lopes

Tenho dificuldade com listas (que semeiam injustiça), mais ainda listas pequenas (que semeiam mais injustiça do que as grandes). Mas aqui vai minha escolha, submetida às pedradas de hábito: “Terras do Sem-fim” (Jorge Amado), “As Velhas” (Adonias Filho) e “A Solidão do Cavaleiro no Horizonte” (Marcos Santarrita).
 
17
entrevistador

Como se insere seu recente “A Bela Assustada entre suas obras?

Lopes

Com “A Bela Assustada” eu quis fazer uma antologia pessoal, uma espécie de testamento, canto de cisne, essas coisas de velhice. Em meio ao processo, percebi que “antologia pessoal” era muita arrogância, quis tirar esta expressão, a professora Evelina Hoisel (que me honrou com o prefácio) disse que eu merecia, sim, uma antologia pessoal. Deixei-me (um tanto facilmente) convencer e, assim, nasceu o livro “A Bela Assustada – Antologia Pessoal + Inéditos”, que a Editus recusou-se a publicar, seguindo a abalizada opinião de uma economista da UESC. Argumentei que meu texto deveria ser submetido à apreciação, pelo menos, de algum estudante de Letras, mas, força é força; direito é direito. Publiquei pela A5, em 2021.
 
18
entrevistador
Se preocupa com a fama, o reconhecimento, a imortalidade e outros delírios típicos de muitos escritores?

Lopes

Continuo achando que quem vive de escrever possui tanta dignidade e direitos quanto um eletricista ou encanador, não mais, às vezes menos. Mas como sou muito jovem – e a Fiocruz não inventou vacina contra a imbecilidade – talvez um dia venha a contrair esse delírio a que você se refere. Quem sabe, serei aquele “poeta federal” de Carlos Drummond de Andrade, que tira ouro do próprio nariz.
 
19
entrevistador
O que é jogar com a palavra, ser um jogador da palavra como o escritor?

Lopes

Não sei se conheço a regra desse jogo, aquilo que os franceses chamam “Le mot juste”, coisa de Flaubert, parece. Imagino ser preciso escolher a palavra, às vezes tirar-lhe a poeira, pô-la no lugar certo. Alguém disse que o adjetivo é inimigo do substantivo, acho exagero. O substantivo pode estar de braço dado com o adjetivo. Noutras vezes, como as pessoas, sai-se melhor sozinho do que mal acompanhado.
 
20
entrevistador
É leitor de poesia? Já escreveu poesia?

Lopes

Dentre meus defeitos, está o de ser mal leitor de poesia. Li os clássicos, na escola: Castro Alves, Olavo Bilac, Gonçalves Dias (cheguei a quase decorar o “Y-Juca-Pirama”...). Na vida adulta, quando fiz minhas escolhas, preferi a prosa. Li alguma coisa de Drummond, Fernando Pessoa, Paulo Leminsky, João Cabral de Melo Neto, Florbela Espanca – mas poderia ser muito mais. Escrever? Fiz, de brincadeira um ou outro haicai, um ou outro soneto satírico, na linha de Emílio de Menezes, nada de importante, não sei que fim levaram.
 
21
entrevistador

Como resumiria a história da literatura do sul da Bahia?

Lopes

Essa história, como a entendo, deu um freio, talvez de arrumação. Nossa literatura parece indecisa sobre que caminho seguir, como que aprisionada no tema do cacau, um ciclo esgotado na sua denúncia de exploração dos trabalhadores (Jorge Amado) e “bravura” dos coronéis de Adonias Filho. Sofremos de “regionalite”, doença que se cronificou, não dói mais.
 
22
entrevistador
Conheceu grandes escritores grapiúnas. Foi amigo de algum deles?

Lopes

Fui amigo de Telmo Padilha, Hélio Pólvora e Marcos Santarrita, que não estão mais entre nós. Sou irmão de Jorge Araújo e Aleilton Fonseca.
 
23
entrevistador
Não me esqueço do PACCE, do jornal literário “Cacau/Letras” e das antologias fundamentais de Tica Simões. Alguma ação cultural grapiúna marcou sua trajetória?

Lopes

Não. Pouco circulo. Não exerço grande atração, pareço ter espinhos, como se fosse herdeiro dos mandacarus do Pajeú de Flores. Mas não desconheço a importância do “Cacau/Letras” e do PACCE (publicou Kleber Torres, que, infelizmente, se afastou da atividade). Tica Simões é necessária, como pessoa e como intelectual.
 
24
entrevistador
Sete escritores da nossa região. Qual o seu livro favorito de cada um deles e a razão dessa preferência.

Adonias Filho
Florisvaldo Mattos
Hélio Pólvora
Jorge Amado
Jorge Medauar
Sosígenes Costa
Telmo Padilha

Lopes

“As Velhas” – Uma história de mulheres velhas e poderosas, deusas caducas, ferozes, venenosas, vingativas. Em clima de tragédia grega, Adonias propõe uma renovação do ciclo da literatura produzida na região do cacau. Os nomes dos personagens me encantam: Zefa Cinco, Lina de Todos, Tonho Beré, Zonga...
 
“Caligrafia do Soluço” – Sem esquecer que Florisvaldo Mattos é, igualmente, ensaísta de indiscutíveis méritos, pegue, ao acaso, qualquer dos seus muitos livros de poemas – e não haverá engano. São todos bons. Eu peguei “Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior”, no qual o autor reedita as poderosas metáforas que o notabilizaram como mestre da palavra, ao poetar sobre algumas de suas paixões, numa torrente de generosidade. Cá estão Rimbaud, Maradona, o jazz, Parker, Malraux, Picasso, Guernica, Pasolini, Carlos Nelson Coutinho, Verlaine, Sosígenes Costa, Fernando da Rocha Peres, Vera, Glauber Rocha, Godofredo Filho, Duke Ellington, além do chão nostálgico do sul baiano, onde o poeta nasceu. Destaco, consciente do risco que corro, os poemas “Rimbaud là-bas”, “Verlaine, 1891”, “Poema Preposicionado”, “Antropoema” e “Café Matinal” – sem esquecer o extraordinário (240 versos) “Caligrafia do soluço”, que dá título à seleção.
 
“Itinerários do Conto” – Em literatura, Hélio Pólvora só pode ser acusado de não fazer chover (mesmo poesia, que não era seu mister, ele fez, em certo momento da vida): atuou em conto, novela, crônica, romance, crítica de roda-pé, ensaio, tradução, crítica de cinema...  E leu muito, de Taunay a Guimarães Rosa, de Kipling a Camilo de Jesus Lima, de Hemingway e Faulkner a Eça de Queirós, Machado de Assis e Jorge Luís Borges, analisou Tchekhov, Virgínia Woolf, Edgar Poe, Murilo Rubião, Autran Dourado, D.H. Lawrence, Simões Lopes Neto... Convivi com ele e testemunho: era capaz, se mencionássemos o nome de um livro obscuro, ele nos apresentar, de imediato, uma visão do tema e do autor. Dava a impressão de que leu tudo. Para contrariar os que esperavam a escolha de “Os Galos da Aurora”, “O Grito da Perdiz” ou “Estranhos e Assustados”, fiquei com “Itinerários do Conto – Interfaces Críticas e Teóricas da Moderna Short Story”, livro de cabeceira, a que frequentemente recorro, tentando entender essa areia movediça que é a história curta. Se choco o amável leitor, saiba que estou em abrigo seguro: o crítico Aleilton Fonseca diz que “Itinerários..” é obra-prima.
 
“Terras do Sem-fim” – É nosso épico da conquista da terra, a fogo e sangue, lágrimas e pólvora, para abrir alas à lavoura cacaueira. Mas poderiam ser citados “São Jorge dos Ilhéus” ou “Capitães d´Areia”.
 
“Chuva sobre a tua Semente” – Não tenho lido Jorge Medauar, apesar da admiração que lhe tenho como escritor e militante político. Lembro do poema “Autobiografia”: Meu nome todo é Jorge Emílio Medauar / Filho de imigrantes árabes / Tenho ficha na polícia cidadão indesejável elemento agitador (...). Penso que “Autobiografia”, leitura de juventude, seja de “Chuva sobre a tua Semente”.
 
“Poesia Completa” – Introspectivo, que publicou pouco e logo foi esquecido, Sosígenes Costa foi “ressuscitado” num ensaio de José Paulo Paes. Antes, sei apenas de “Obra Poética”, vencedor do Jabuti de 1960. Na região, ganhou vigorosas análises de Aleilton Fonseca/Cyro de Mattos, Jorge Araujo, Hélio Pólvora, Heitor Brasileiro, Ruy Póvoas e Gerana Damulakis, dentre outras. Escolhi “Poesia Completa”, obra produzida por iniciativa regional. A Editora Mondrongo publicou “Cobra de Duas Cabeças” uma antologia de verso e prosa do “poeta grego da Bahia” (a expressão é de Gerana Damulakis) em 2015. Jorge Araujo, intelectual aparelhado como poucos, cita, em estudo sobre Sosígenes, o poema “Índio bom é índio morto”: Índio bom é índio morto / pensamento natural / de quem se apossou do porto / desta Índia Ocidental
(...) Fácil ver que parodiam, impunemente, Sosígenes Costa, com objetivo inverso ao poeta/poema. A ignorância nessa gente é uma arte.
 
“Poesia Encontrada” – Telmo Padilha é um desses valores que nossa região esqueceu. Somos campeões de injustiça. Mesmo com uma fortuna crítica imensa, invejável, tem o mais completo silêncio do meio intelectual. Até me gabo de ter feito minha parte, com a ajuda de Florisvaldo Mattos, repercutindo sua morte, em 1997.
 
25

entrevistador
Qual é o panorama atual da literatura grapiúna?

Lopes

Apesar do que disse lá atrás, sobre a “regionalite”, acredito (ou desejo acreditar) que a literatura aqui produzida floresce, na busca do sol, em nomes como, por exemplo, Rodrigo Melo, Ruy Póvoas e Pawlo Cidade. Hélio Pólvora e Cyro de Mattos, escritores de renome, publicaram romances um tanto “outonais”, sem obrigação de renovar o gênero. Enfim, gostaria muito de responder a esta pergunta daqui a dez anos.
 
26
entrevistador
Seu último livro saiu em 2021. Há algum outro título em vista?

Lopes

Não. Sou, definitivamente, um cronista aposentado, por força de escolha e empurrões.
 
27 
entrevistador
De que trata “Hélio Pólvora: Noites de Salto”?

Lopes

Em verdade, “Hélio Pólvora: Noites de Salto Alto” foi publicado em 2018, pela Editus. É livro meio natimorto, não fez carreira, por circunstâncias alheias à minha vontade. Reúne crônicas que Hélio Pólvora publicou no “A Tarde”, entre 2013 e 2015 – mais prefácio, introdução e notas deste locutor que vos fala. É só um livro de fã.
 
28
entrevistador
Nasceu em Triunfo, Pernambuco. Tem alguma conexão com ela? Chegou a visitá-la quando adulto?

Lopes

Não nasci propriamente na cidade de Triunfo, mas numa área rural do município. Região de miséria absoluta, em que as crianças têm o mau costume de morrer com menos de um ano de idade – antes disso, a seca, a verminose, ou a fome (quando não tudo isso em conjunto) as liquidava. Se eu me chamasse Milagre não seria rima nem solução, mas seria justo. Estive lá em 2007, mas já tinha perdido os laços.
 
29
entrevistador
O que acha de si mesmo como ser humano?

Lopes

Não creio que sejamos bons juízes de nós mesmos. Sem me gabar muito, procuro não ser um canalha a mais no meio de tantos que estão à nossa volta.
 
30
entrevistador
Como é o cotidiano de Antônio Lopes? Onde mora? O que faz no dia a dia, na rotina doméstica?

Lopes

Após os 80 anos, abandonei o planejamento de vida, deixando que cada dia me surpreenda – e tenho sido acometido de uma espécie de síndrome de Judeu Errante, que me faz viver de mala às costas: em 2022, morei em Juiz de Fora; em 23, Ilhéus; voltei a Juiz de Fora em 2024 e hoje, estou em Ilhéus. Foi bom, para atestar quão atrasado é nosso meio, em todos os setores (educação, saúde, segurança, mobilidade urbana...). Anoiteço e não amanheço – e me divirto muito com isso, mesmo que meus amigos fiquem enlouquecidos. Na rotina doméstica, vivo sozinho, cuido de minhas coisas, evito contatos. Mas, se bem abordado, não mordo. Quem quiser me xingar pode usar a palavra “Misantropo”.
 
31
entrevistador
Vê filmes, viaja, aprecia plantas e animais, tem hábito diário de leitura e escrita?

Lopes

Leio, leio, leio. Só escrevo bilhetes. Às vezes acho que sou um ET: gosto de jazz e MPB (bossa-nova, sobretudo), sou quase especialista em Noel Rosa. Fujo das Netflix e Amazon Primes da vida, vejo filmes antigos, principalmente noir e faroestes. Não creio que haja algum bang-bang importante que eu não tenha visto. Mas, por favor, respeitem meus cabelos brancos e não me sugiram “faroeste italiano”, que não é filme, é crime contra a arte. Consta que Paulo Perdigão (diretor da TV Globo e estudioso de filosofia – tem um livro fundamental sobre Sartre) viu “Os Brutos Também Amam” (um título bonitinho, mas ordinário) mais de 90 vezes (até fez uma montagem, aparecendo na trama). Eu não chego a tanto, mas repito muito minhas escolhas. Se souberem de uma sessão de “Matar ou Morrer”, “El Dorado”, “Os Brutos Também Amam”, “Onde Começa o Inferno”, “O Último Pistoleiro”, “No Tempo das Diligências”, “Rastros de Ódio” ou “Bravura Indômita”, me chamem que eu vou. Correndo.Tenho boa relação com as plantas, sem fanatismo. Por exemplo, não converso com elas. De cachorro, gosto muito, mas não tenho nenhum. Até lembro uma frase atribuída a Machado de Assis (ele não a disse, mas poderia ter dito): “Quanto mais conheço as pessoas, mais gosto do meu cachorro”. E tem aquela história do gato de João Gilberto: por não aguentar mais as esquisitices do músico, um dia o gatinho disse “adeus, mundo cruel!” – e se atirou pela janela do oitavo andar. Não quero pôr em risco a vida de nenhum bicho de estimação - já suficientemente humilhado ao ser chamado de pet (argh!!!) .
 
32
entrevistador
Itabuna, Ilhéus e, sua cidade quase natal, Buerarema. Qual a visão que tem de cada uma delas no presente?

Lopes

Minha ligação mais estreita tem sido com Ilhéus, que deveria ser líder regional, pela posição histórica; no entanto, é o contrário: decadente, cada dia piora um pouco. Estamos perdidos, no mato sem cachorro e (como gostava de dizer Hélio Pólvora) sem espingarda.
 
33
entrevistador
Pra terminar, um aforismo marcante...

Lopes

Dentre os tantos que me ocorrem, fico com este, de um dos maiores best-sellers. É exemplo de concisão para um tempo em que a mídia parece não mais saber o que é economia de linguagem: “Não matarás!”
 

“Com as suas crônicas sobre Buerarema no semanário Agora, crônicas malandras e matreiras, ora lírico-sentimentais ora espinhentas como o mandacaru do seu brabo sertão pernambucano, está pondo Buerarema, com seus tipos populares, no mapa literário baiano e brasileiro.”
HÉLIO PÓLVORA
2001
 
 
TODA a OBRA de ANTÔNIO LOPES
 

BUERAREMA FALANDO PARA o MUNDO (1999)
 
SOLO de TROMBONE
(2001)
 
LUZ SOBRE a MEMÓRIA
(2001)
 
ESTÓRIA de FACÃO e CHUVA
(Trinta e Cinco Crônicas e Duas Louvações)
(2005)
 
COM o MAR ENTRE os DEDOS
(2015)
 
MANOEL LINS: O CANTO da ETERNA ESPERANÇA
(2017)
 
HÉLIO PÓLVORA: NOITES de SALTO ALTO
(2018)
 
A VIDA REFLETIDA
(2019)
 
A BELA ASSUSTADA
(2021)
 

CRÔNICA de ANTÔNIO LOPES
 
NÃO TENHO MEDO de MIM
 
Quem se isola voluntariamente dos alaridos do mundo é definido com uma palavra pouco bonita: misantropo. É alguém com uma doença chamada misantropia, sem gosto pela vida social, um tanto melancólico, com uma pitada de tristeza, um quase tédio ao gênero humano.
 
Sua divisa poderia ser a frase que Machado de Assis se esqueceu de fazer: “Quanto mais conheço a espécie humana, mais gosto do meu cachorro”. O pior é que os outros (eles são o inferno!) se metem a interpretar esses indivíduos, chegando a resultados deploráveis, pois lhes dão qualidades e defeitos inexistentes. Eles querem apenas se isolar. E, convenhamos, não é querer muito.
 
“Pai, não quero ficar sozinha comigo” – disse, para espanto geral, a filhinha de um velho amigo. Criança diz cada uma! Eu sou o contrário daquela menininha. Não tenho medo de mim, me enfrento, vivo em paz com meus esqueletos, tiro-os do armário, dou-lhes uma espanada misericordiosa, com eles converso (“Ora! – direis!…”) numa boa. Não sou dado a rapapés sociais, faltam-me (ai de mim!) talento e formosura para candidato a arroz de festa.
 
Às vezes me tranco com meus livros, discos, filmes e pensamentos, desligado o celular. E não sou único. Sei de outras gentes que preferem o silêncio ao barulho, o isolamento ao burburinho, o jazz ao arrocha, a conversa ao comício, a solidão à má companhia, a tevê desligada à novela.
 
O poeta português Herberto Helder é misantropo reconhecido, de carteirinha: não recebe ninguém, recusa honrarias (não foi receber o cobiçado Prêmio Pessoa), tem endereço pouco conhecido e quanto a dar entrevista, nem pensar. A família o defende da acusação de bicho do mato.
 
Alardeia que ele “não morde”, conversa bem e é dotado de bom humor, mas que não vê motivo para viver “em sociedade”. De um escritor só importa sua obra, ele diz. No Brasil, salientam-se como portadores desse distanciamento da humanidade os prosadores Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e outros (parece-me que, entre eles, Raduan Nassar, aquele de “Lavoura Arcaica”). Porém o caso mais notável é o de famoso cantor baiano.
 
João Gilberto, dizem, é dado ao isolamento. Tranca-se no quarto do hotel e ali passa dias distante do mundo, sem contato, sequer, com o garçom que lhe leva as refeições (dizem que a comida é colocada à porta e, mais tarde, o cantor a pega, sorrateiramente). Sua única companhia é o violão, que, todos sabem, não faz perguntas.
 
Reza o folclore que João teve um gato como companheiro de quarto, mas foi uma tragédia: o bichinho se suicidou, coitado, depois de ouvir o músico repetir o mesmo acorde durante três dias seguidos, madrugada adentro.
 
No quarto dia, quando João sacou a viola, o gatinho tomou a decisão radicalíssima de praticar o tresloucado gesto, abandonando este vasto mundo sem porteira e o acorde irritante: atirou-se pela janela do oitavo andar, dissipando, no atacado, suas folclóricas sete vidas.
 
A quem interessar possa: não toco violão nem tenho gato.
do livro “Com o Mar Entre os Dedos”
 


“Enquanto seu lobo não vem, é louvar a vida (ou que dela resta)”
ANTÔNIO LOPES
 

3 comentários:

Cyro de Mattos disse...

Ainda continuo me recuperando, as pessoas não entendem isso, são de uma perseguição canina diabólica.
Parabenizo-lhe pelos seus artigos sobre Hélio Pólvora e Antonio Lopes, embora discorde sobre algumas colocações, principalmente do cronista.
Fique com Deus,

Lurdinha Teles disse...

Ler é muito importante e eu tenho pecado em relação a esse hábito. Lopes cita vários nomes de escritores que conheci e conheço, inclusive Aleilton, meu aluno no Colégio Estadual. Amei conhecer Antônio Lopes.
Gratidão pelo carinho ❤️

Sérgio Sépulveda. disse...

Excelente entrevista.