maio 18, 2012

.............................................................. VIVER e MORRER em LONDRES




“Londres vai além de qualquer fronteira ou convenção. Ela contém cada desejo ou palavra 
já dita, cada ação ou gesto já feito, cada declaração áspera ou nobre  já expressa. 
É ilimitada. É Londres infinita.” 
PETER ACKROYD
(1949. Londres / Reino Unido)

REVISTA PREÁ
editor: Mário Ivo Cavalcanti 



Morar no estrangeiro nunca esteve presente nos meus objetivos de vida, nem mesmo em meus sonhos. Porém, em 1994, surgiu uma oportunidade concreta de trabalhar como assessor de comunicação de um grupo teatral na Galícia, Espanha. Resolvi arriscar, afinal, como disse Pablo Neruda, “morre um pouco a cada dia quem nunca arrisca algo novo”. O trabalho não deu certo, o diretor era um tirano. Coloquei a mochila nas costas, Rainer Maria Rilke no coração e parti, primeiro para Madri, depois Barcelona, Lisboa, Sintra, Tanger e, em 2000, estava em Londres, disposto a aprender uma nova língua e aberto a novas aventuras e desventuras durante esse tempo como peregrino nas terras do magnífico Charles Dickens. Alojei-me inicialmente em Wimbledon, um distrito ao sul de Londres, em um prédio vitoriano de dois andares com tijolos aparentes, simpático, embora povoado por corvos gordos e histéricos que me assustavam o tempo inteiro.

O que inicialmente me surpreendeu foi a população da capital inglesa: uma mistura de diferentes povos, culturas e religiões. São estimados em mais de 300 os idiomas falados nessa Torre de Babel. Tinha a sensação do que é estar na esquina do mundo e, por outro lado, a noção de como o mundo é minúsculo. Aos olhos de um observador distraído, Londres tem um estilo único: ruas inteiras de casas com a mesma fachada. Mas uma observação mais atenta mostra uma arquitetura herdada de diferentes momentos históricos: a Londres romana, a medieval, a elisabetana, a georgiana, a vitoriana, a moderna, etc. Para quem chega pela primeira vez tudo parece encantador: uma cidade organizada, funcional, com transporte público, lazer e policiamento eficientes. A Londres turística é umas das cidades mais visitadas do planeta. 
 
Realmente é uma bela capital e merece ser visitada. Porém, ir além do turismo, ou seja, mergulhar na vida cotidiana dos seus habitantes e na rotina dos subúrbios foi minha opção. O choque inicial aconteceu ao visitar, à noite, a praça onde viveu a minha escritora favorita, Virgínia Woolf, descobrindo um verdadeiro açougue humano. Vultos circulavam discretamente, não sendo possível enxergar seus olhos de bichos noturnos sedentos de sexo. Escondiam-se nas sombras, nos plátanos, nos arbustos, à espera da presa certa. Acontecia bem rápido. Nada de beijos, apertos de mãos ou conversas fiadas. Os ingleses se encontravam e copulavam ali mesmo. A liberdade era total. Foi quando eu constatei que aquela cidade era diferente de todas as cidades que eu conhecia.

Conheci também a Londres “barra-pesada” nos bairros de Harlesden e Brixton, onde vivem predominantemente indianos, caribenhos e africanos. Juntam-se a esta população mais antiga, imigrantes vindos dos mais diferentes países e uma inacreditável quantidade de brasileiros nas ruas, nas lojas e no transporte público. Normalmente escutava alguém conversando em português. Harlesden e Brixton são bairros de pobres num país rico.  A Londres que o turista não faz questão de conhecer ou nem sabe que existe: indiana, negra e multicultural; sofrida, explorada e cansada. Os custos de moradia não são baixos. Geralmente os imigrantes dividem quartos e pagam uma média de 50 libras por semana.  Eu compartilhava um antigo casarão com uma canadense, um francês, um italiano e uma argentina. Uma verdadeira piração, eles só pensavam em sexo, drogas alucinógenas e encher a cara de vinhos baratos. Já o meu objetivo era absorver a arte local. Quando não estava no cursinho de inglês de última qualidade ou lendo no Hyde Park, freqüentava os fabulosos museus, shows pop’s ou eruditos gratuitos, teatros, galerias de arte, bibliotecas etc. Participei de encontros literários alternativos, li poemas meus ao lado do velho beatnick Lawrence Ferlinghetti e, totalmente pelado, diante de um público numeroso, interpretei poemas de Hilda Hilst e Ferreira Gullar no projeto “The Naked Poets”
 

Depois de seis meses sem ter evoluído muito no inglês, andando com malandros italianos e espanhóis, mergulhei numa inesperada melancolia. Sentia falta do sol, das cores tropicais. Não compreendia o tempo cinzento, chuvoso e úmido. Nessa época calamitosa, escrevi meus melhores poemas - épicos, humanos. Eu me sentia morto, mas renascia subitamente diante de “A Alegoria do Amor”, de Paolo Veronese, na National Gallery. Eu me sentia morto, mas renascia subitamente diante de Nina Simone cantando em um pequeno teatro. Eu me sentia morto, mas renascia subitamente diante de Dame Judi Dench interpretando Shakespeare no Old Vic. Eu me sentia morto, mas renascia subitamente diante das gravuras espiritualizadas de William Blake. Eu me sentia morto, mas renascia subitamente diante dos templos gregos no Museu de História Natural. 

Passei um ano e meio nessa existência viciada na beleza artística. Terminei amigo da escritora Doris Lessing – prêmio Nobel de Literatura. Tomava chá com ela e saciava sua curiosidade sobre o Brasil. Tive um romance com o tolo Rupert Everett (de “O Casamento do Meu Melhor Amigo”). Ele me levava para elegantes casas de campo ou festinhas em Chelsea, Richmond e West Hampstead, bairros caros de Londres. Acostumado com uma alimentação ruim, vivendo a base de fish & chips (bacalhau frito com batatas fritas), com o ator provei maravilhosos pratos típicos da cultura inglesa, como o delicioso beef Wellington, yorkhire pudding ou cornish pasty. No entanto, geralmente sozinho, enxergava vultos assombrados – voando ou saindo da terra diante de meus olhos arregalados -, e passava horas nos bucólicos cemitérios, escrevendo como um demente.

Não tinha conhecidos brasileiros. Jamais ia aos eventos organizados pela Embaixada do Brasil. Sabia que era muito comum entre os brasileiros a máxima de que brasileiro não deve confiar em brasileiro que vive no estrangeiro. Sabia de histórias horríveis de conterrâneos legalizados que denunciavam patrícios em situação ilegal ao Home Office (órgão da imigração). A grande maioria dos brasileiros que vive em Londres não valoriza a cidade. Acaba entrando em um espiral de trabalho–casa e, no máximo, um churrasco de fim de semana com seus parceiros. Não sabe absolutamente nada que vá além do círculo da comunidade brasileira. Essas pessoas falam muito pouco inglês e conhecem quase nada da cultura local. Um desperdício. Eu fazia justamente o contrário, virando Londres de cabeça pra baixo e distante de qualquer churrascaria ou bar tupiniquins. Tinha o costume de freqüentar, sem sair de meu bairro, restaurantes espanhóis, mexicanos, italianos, franceses, árabes, turcos, japoneses, chineses, indianos, nepaleses e gregos. 
 
Não achava o povo inglês frio e antipático. Aprendi que toda metrópole tem um toque reservado. O que existe em Londres é a tal indiferença. Algo que pode ser muito bom, por um lado, já que ninguém se mete na sua vida, mas também ruim por nos fazer sentir isolados. Nessa terra, o frio predomina, o egoísmo é notório e o sonho da independência financeira não passa de uma mera utopia. O inglês típico é bastante sisudo, talvez por isso beba tanto para se soltar. E como bebe. É muito comum encontramos homens e mulheres completamente embriagados, jogados nas ruas e no metrô. O pub é uma instituição sagrada. Para saber como os ingleses são de verdade basta freqüentar um pub e interagir com as pessoas. Nesses bares clássicos, eles se soltam e celebrarem a vida.

Parti de Londres levando na bagagem histórias, aprendizado, amizades conquistadas e uma experiência de vida que me fez crescer. Aprendi muito em relação ao mundo, esta aldeia global que cada vez está mais complicada. Pude olhar, ver e sentir de perto uma Londres marcada por fronteiras. Vivi as fronteiras da língua, da raça, das etnias, do dinheiro... Ainda assim, a condição de exilado voluntário reforçou o idealismo poético de um viajante que não se cansa de se surpreender, de se emocionar com o que encontra ao longo do caminho. Desse modo, misturando países, línguas, costumes, angústias, alegrias e descobertas, insuflei frescura natural no coração inquieto, procurando o Graal dentro de mim e evitando o confinamento existencial claustrofóbico. Será que foi um desperdício de vida? Talvez. Como escreveu o poeta chinês Zhang Kejiu: “Quando a imobilidade não é satisfatória, somos livres para viajar”. E assim, fico imaginando como seria fértil um mundo sem fronteiras, onde as pessoas pudessem ir e vir, ficar ou voltar quando bem quisessem.
 
 


25 comentários:

A Arte de Inha Bastos disse...

Querido amigo,Antonio
Surpreendente texto,muito bom.Vou passar para uma amiga(Artista Plástca) que mora em Londres a mais de vinte anos,creio que ela vai gostar muito!
Um abraço carinhoso

LAU SIQUEIRA disse...

Muito bom, Antônio. Parabéns.

Reheniglei Rehem disse...

lido e apreciado :)

Lucas Galvão disse...

Excelente texto!!

Ivo Korytowski disse...

Gosto de Londres.

Ivo Korytowski disse...

Complementando o que disse antes, bonito este texto. Bonito como Londres.

Marlene Maria Schwertner disse...


"Londres é um lugar de infinitas possibilidades." -Peter Ackroyd

Marília Menezes disse...


Viajo nas suas crônicas. São excelentes.

Ivone Scotti disse...


Amei o texto, faz valer a pena a vida ter essas vivências incríveis, como turistas vemos apenas, mas quem consegue vivenciar o dia, dos lugares é um experiência impagável. Parabéns texto incrível!

Hidely de Abreu disse...


Trabalhei 18 anos no Bank of London, fui muitas vezes a Londres. Amo!

Mirian Izzo disse...


Amei Londres! E tinha acabado de conhecer Roma e Paris! Mas ficando 3 meses em Londres, fiz amizades interessantes! Saudades...

João José Carneiro Patriota disse...


Belas histórias, belo aprendizado.Eu tbm passei 12 anos da minha vida fora do Brasil e nada paga o aprendizado q eu trouxe.Sou seu fã, Nahud.Bless you.

Claudete Jorge Ferrer disse...


Adorei a Inglaterra, Na Época em fui até gostei mais de Londres do que de Paris!!
As Viagens pela Europa são inesquecíveis!! Melhor coisa da Vida é Viajar!! Pretendo voltar à Espanha onde tenho Parentes, Minha Pretensão agora seria ir até a Turquia, Terra de meus Ancestrais!!!
Boa Noite, Nahud!!!

Ivo Luz disse...


Eu digo sempre que Londres é a única cidade do mundo que se parece com os postais da própria Londres. É linda em detalhes, em minúcias. Fora o fato de ser a cidade mais cosmopolita do planeta. Pena que seja tão cara!

Adelia Alves disse...


Mergulhou na cultura! E essa sua bagagem cultural experiencia vale ouro para o resto da vida. E não tem ladrão que te roube.

Roseli Caruso disse...


Isso é muito bom. Amigo Nahud você tem muitas histórias pra recordar e contar. Saúde e paz no seu coração ❤🙋🏻‍♀️🌹🌻

Getulio Soares disse...


Morei dois meses lá e confesso que é a cidade que eu queria morar para sempre!!!!

Patricia BNunes disse...


Belas fotos e bela história 👏👏👏

Mary Ferreira disse...


Surpreendente texto, parabéns!!

Marília Menezes disse...


Crônica magnífica. Viajei.

Alexander Aravena disse...


Europa toda é uma aula de cultura, também morei por lá Barcelona e Zurick. O resto conheci passeando de moto, trem.... Mais também existe o outro lado, muitos bairros pobres, frieza em alguns países, racismo,e falta de higiene em muitos deles.

Jose Dalezio disse...


Estive em Londres em 22,23 recentemente 2024.A Inglaterra e realmente maravilhosa.

Lucy Onofre disse...


És rico em vivências

Ana Maria Moreira disse...


Isso ninguém te tira , essas lembranças maravilhosas !!

Rita Kruschewsky disse...


Amo Londres