outubro 05, 2014

..... ME SEGURA QU´EU VOU DAR UM TROÇO: WALY SALOMÃO


“Oh, sim, eu estou cansado
Mas não pra dizer
Que eu estou indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto (quem sabe)

Jards Macalé e Waly Salomão
Vapor Barato, 1970

Baiano de Jequié, WALY SALOMÃO (1943- 2003) era divertido, sagaz, inteligente. Eu o conheci por volta de 1985, 1986, madrugada de um carnaval soteropolitano. De juvenil eletricidade, eu celebrava a vida sob a proteção de Castro Alves. O poeta se aproximou, acompanhado de Dedé, musa na época de Caetano, e me disse: “Certo, baby, dispa as vestes d´alma, avacalhe o provincianismo com o pólen da beleza”, intrigando-me com sua figura carismática. Poucos dias depois, numa festinha pós-momesca, típicas de uma Salvador pop-cultural, fomos apresentados pelo amigo Pedrão, filho de Gilberto Gil. “Um encontro de poetas”, batizou. Tímido, não soube conversar, respondendo gaguejando sua pergunta sobre poetas favoritos. Se não me falha a memória, falei dos beats. Único, falante e avassalador, ele confessou devorar livros desde menino, “como traças. Na época, desconhecia a sua ousada produção poética.

Voltei a encontrá-lo no Grande Hotel da Barra, ao lado do poeta/compositor Antonio Cícero, irmão da cantora cult Marina Lima. Noitada de farra, maluca, dos anos sem juízo - se um dia cheguei a tê-lo. Clube masculino de excentricidades. WALY SALOMÃO relatou um possível primeiro encontro nosso na boate Noites Cariocas, no Rio de Janeiro, apresentados pelo diretor global Jorge Fernando. Não me lembrei. Contei para ele uma travessura no mesmo ano, aos 17 anos de idade, num verão de corações loucos. Ganhei no night-club “Belle de Nuit, Copacabana, o concurso Garoto Zona Sul”. A atriz Lady Francisco, Elke Maravilha e um histérico juiz de futebol foram os jurados. 

Conversamos também sobre outro momento inesquecível no Rio: o assédio do escritor argentino Manuel Puig. “Conheci-o na Cinemateca do MAM, após a sessão de um melodrama mexicano com a Maria Félix, e tomei um susto quando soube que escrevera A Traição de Rita Hayworth”. Ele caiu na gargalhada com as experiências juvenis. Antes da partida, alertou-me: “Um animal fareja os nossos sonos”.

Dez anos se passaram. Homem feito, convidado pela Embaixada Brasileira em Lisboa para a pré-estreia portuguesa de “Terra Estrangeira”, de Walter Salles, vibrei com uma das canções da trilha do filme: Gal Costa cantando “Vapor Barato”. A música, de 1970, composta por Waly e Jards Macalé, brilha em um dos melhores discos da cantora baiana: “Fa-Tal”. Lembrei-me de outros tempos, garoto, numa Itacaré mal iluminada, beira do cais, um hippie gaúcho cantando “Vapor Barato” lindamente. 

Por fim, assumi a ignorância sobre WALY SALOMÃO, procurando lê-lo e pesquisando sua trajetória esfuziante. Uma das personalidades mais transgressoras e fascinantes da cultura brasileira, íntimo do angustiado Torquato Neto, lançou com ele a antológica revista “Navilouca” nos anos do desbunde. Rabiscou os poemas, do que seria seu livro de estreia, “Me Segura qu´eu Vou Dar um Troço” (1971), numa cela do Carandiru, no Pavilhão 2, condenado por uso de maconha. Herdeiro do transe demiúrgico de um Glauber Rocha, personagem-chave do Tropicalismo, parceiro musical de Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso, Antonio Cícero, Adriana Calcanhotto e Itamar Assumpção. Autor de sucessos musicais como “Mal Secreto” e “A Voz de uma Pessoa Vitoriosa”.

Uma das figuras mais fecundas e heterogêneas da vanguarda brasileira. Não é à toa que Caetano Veloso, em música dedicada a ele, diz: “tua marca sobre a terra resplandece [...] e o brilho não é pequeno”. Ponta de lança de uma geração de poetas que resistiram à censura, contrariaram os princípios formais da tradição e pensaram a produção literária a partir de sua articulação com as outras artes. Sua escrita era permeável às diversas manifestações do inquieto cenário cultural no Brasil das décadas de 1970 e 1980. 

Seus versos continuaram se reinventando ao longo dos anos 1990 e 2000. Consolidaram o papel de poeta múltiplo em livros como “Algaravias”, lançado em 1996. Em “Gigolô de Bibelôs”, segundo livro, ecoa o seguinte verso: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. O desejo de abolir fronteiras e de se confrontar com os limites - entre o eu e o outro, a prosa e a lírica, a arte e a vida - é uma das marcas da obra de WALY SALOMÃO. Sua poesia é viagem sem volta: um “processo incessante de buscas”, como disse sobre seu trabalho poético-visual “Babilaques”.

Presença inspiradora, caracterizado pela vitalidade, produziu o disco e o show “Antimonotonia” (1997), de Cássia Eller. Foi também performer, artista plástico, editor, videomaker. Filho de um sírio com uma sertaneja, era conhecido pela inteligência arrebatadora, doçura, energia destrutiva, humor anárquico. Na semana de sua posse na Secretaria Nacional do Livro, em Brasília, chocou mais uma vez com sua lucidez: “A maioria das pessoas analfabetas com quem converso tem faro, intuições, inteligência, e já percebo que pessoas de classe média que passam pela universidade são frequentemente tacanhas, sedimentadas em esquemas já prévios, não aprenderam o mínimo, que é pensar por si. Copiam esquemas importados e por isso são tristes, sofrem de complexos de inferioridade cultural. Planejava desenvolver uma política de “fome do livro”, como alavanca para a ascensão social.

gal costa e waly em 1974 (foto de teresa eugenia)
Poeta perturbador, originalidade hipnotizante, publicou seu último livro em 2001, “O Mel do Melhor”, dedicado ao iconoclasta Hélio Oiticica. Em 1996, ganhou o Prêmio Jabuti com “Algaravias”. Haroldo de Campos o saudou como “inventivo poeta e letrista pop-erudito”No cinema, interpretou o satírico poeta barroco do século 17, Gregório de Mattos, seu preferido, no filme ruim de Ana Carolina. WALY SALOMÃO, que assinava Sailormoon nos anos 1970, morreu aos 59 anos, lutando contra o câncer. Cheguei a entrevistá-lo via e-mail. Ele respondeu nove perguntas com poemas inéditos para cada uma delas. Preciso encontrar essa entrevista.


POEMAS de WALY

(01)
SENHOR DOS SÁBADOS

Uma noite
noites
noites em claro
noites em claro não matam ninguém
mas é claro, perdi a razão
gritei seu nome por toda a parte
do edifício em vão
quebrei vidraças da casa
estilhaços de vidro espatifados no chão
risquei paredes do apartamento
com frases roucas de paixão
ah que noche mas nochera
ah que noche mas ...
Dentro da escuridão do quarto
rasguei no dente seu retrato
minha alma ardia meu bem...
Volte cedo
antes que acenda a luz do dia
apague meu desejo num beijo
bem bom
meu bem volte cedo meu bem volte bem cedo


(02)

(Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia
na bagunça do dia a dia
Sequestraram a fonética
Violentaram a métrica
Meteram poesia
onde devia e não devia
Lá vem o poeta
com sua coroa de louro,
Agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta
do planeta!
(Malagueta!)


(03)

Não choro
meu segredo é que sou rapaz esforçado
fico parado calado quieto
não corro não choro não converso
massacro meu medo
mascaro minha dor
já sei sofrer
não preciso de gente que me oriente

Se você me pergunta
como vai
respondo sempre igual
tudo legal

Mas quando você vai embora
movo meu rosto do espelho
minha alma chora
vejo o Rio de Janeiro
vejo o Rio de Janeiro
comovo, não salvo, não mudo
meu sujo olho vermelho
não fico parado
não fico calado
não fico quieto
corro choro converso
e tudo mais jogo num verso
intitulado MAL SECRETO
e tudo mais jogo num verso
intitulado MAL SECRETO


(04)
AMANTE DA ALGAZARRA

Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto.
É ela! ! !
Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa,
Sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira.

Esta amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro
Vixe! ! !
Enquanto caminho a pé, pedestre — peregrino atônito até a morte.
Sem motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento:
Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto
E se apossou do estojo de minha figura e dela expeliu o estofo.

Quem corre desabrida
Sem ceder a concha do ouvido
A ninguém que dela discorde
É esta
Selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde.


(05)
TALISMÃ

minha boca saliva porque tenho fome
e essa fome é uma gula voraz
que me traz cativo
atrás do genuíno grão de alegria
que destrói o tédio
e restaura o sol
no coração do meu corpo
um porta-joia existe
dentro dele um talismã sem par
que anula o mesquinho, o feio e o triste
mas que nunca resiste
a quem bem o souber burilar

sim,
quem dentre todos vocês
minha sorte
quer comigo
gozar?

Minha sede não é qualquer copo d’água que mata
essa sede é uma sede que é sede do próprio mar
essa sede é uma sede que só se desata
se minha língua passeia
sobre a pele bruta da areia
sonho colher a flor na maré-cheia vasta
eu mergulho e não é ilusão
não, não é ilusão
pois da flor-de-coral
trago no colo a marca
quando volto triunfante
com a fronte coroada de sargaço e sal
sim,
quem dentre todos vocês
minha sorte
quer comigo
gozar?


Maria Bethânia lê o poema SARGAÇOS
de Waly Salomão



Um comentário:

Ricardo Mainieri disse...

Fiquei muito triste com a morte de Waly. Via nele um referencial de quem tinha a cultura como prioridade. Morreu, logo no justo momento, em que tendo um cargo público, podia fazer o que ninguém ousava fazer.
Dediquei um breve poema post-morten para ele. Ei-lo:

AO POETA BAIANO

Você agora zarpou
na Navilouca.

Como bom baiano
amou
polemizou
viveu a cultura
em suas últimas instâncias.

Cidadão de seu tempo
em suas várias faces
& disfarces
você desafiou as estruturas.

Porém a Navilouca
tinha de partir.

É você
Wally
foi escolhido o timoneiro

Ricardo Mainieri