Ilustrações: LEONOR FINI
É próprio da arte perscrutar o ser humano, transcender os limites do racional, seja qual for o suporte da criação. É próprio da literatura relatar, fantasiar, entreter, emocionar, assim como questionar, derrubar certezas e até perturbar o leitor. Algumas obras nos levam do prazer à indignação e podem também passar pelo tédio, ou nos levar à reflexão. Jamais se poderá, entretanto, acusar a literatura honesta de gerar indiferença. Assim, alguns livros como “O Beijo da Mulher Aranha / El Beso de la Mujer Araña”, do argentino MANUEL PUIG (1932 - 1990), tocam em pontos pontos nevrálgicos em que dores pessoais se mesclam à realidade política, sexualidade e a um indelével passado. Publicado em 1976, este romance só foi traduzido para o português em 1980, dentro do boom editorial que tomou conta do Brasil depois da abertura política. Em dois anos atingiu a soma de onze edições e virou um verdadeiro best-seller nacional.
No seu estilo impermeável a classificações,
investindo em ousadas inovações formais, o autor narra a história de dois
prisioneiros que compartilham a cela de uma prisão situada em algum país da
América Latina. Um deles, Valentín Arregui, é um militante político; o outro,
Luís Molina, é um homossexual condenado por corrupção de menores. Valentín e
Molina travam uma relação complexa, que se desenvolve dentro de uma atmosfera
onírica, alimentada pelo cinema hollywoodiano dos anos 1940. O livro não só
colocava na ordem do dia o passado político recente da América Latina, como
sinalizava para o preconceito pequeno-burguês da esquerda latino-americana da época
quando o tema em questão era o universo homossexual. Quatro anos depois, “O Beijo da Mulher Aranha” (1985) estreou no
cinema dirigido por Hector Babenco e concorreu ao Oscar de Melhor Filme,
perdendo para “Entre Dois Amores / Out of Africa”. Sônia Braga faz a Mulher
Aranha, Raul Julia interpreta Valentín, e William Hurt, Molina, em atuação
magistral, que lhe deu o Oscar de Melhor Ator. O livro seria também adaptado
pelo próprio autor para o teatro.
manuel puig |
Cheguei ao encontro marcado com um exemplar de “Púbis
Angelical” (1979), pedindo imediatamente o autógrafo do escritor. MANUEL PUIG,
em um misto de português e espanhol, escreveu na folha de rosto do meu
exemplar: “Para el guapo Antonio, com mui gracias por seu interesse em minha
obra, Manuel Puig”. Na verdade, este era o primeiro livro que adquirira dele, só
conhecia a sua literatura de resenhas e entrevistas em jornais e revistas. Sabia
da linguagem coloquial, técnica cinematográfica e da utilização de elementos da cultura popular, como letras de tangos e boleros. Sabia também que sua
literatura procurava desvendar os dramas mais latentes do ser humano, seus
preconceitos e desejos reprimidos, sua asfixia diante da monotonia do cotidiano
e suas tentativas de fuga, pela via imaginária, pelo erotismo ou pela
nostalgia. No mesmo dia, li de uma só vez, sem parar, a história desafiante, uma
fusão de thriller e ficção científica. Tudo se passa na cabeça da protagonista,
uma mulher educada para ser objeto sexual e que, depois do feminismo, procura
decidir o seu próprio destino. Nos meses seguintes, conheceria toda a obra do
escritor, identificando-me com seus personagens que tentam escapar ao tédio e à opressão, seja por uma via mítica – a incorporação ao cotidiano das ilusões hollywoodianas -, seja pelo erotismo.
Durante meses assistimos filmes no MAM, lanchamos na
Confeitaria Colombo e caminhamos juntos no calçadão de Copacabana. Ele se
queixava da poluição das praias, da deterioração do Rio e da crítica literária
brasileira pouco estimulante. Lembrava do tempo em que trabalhou como assistente
de Vittorio De Sica e René Clement. Citava André Gide e William Faulkner como escritores
favoritos e dizia não se identificar com os escritores brasileiros. Nunca aceitei
seus insistentes convites sexuais. Não por pudor, mas por certa repulsa física.
O escritor tinha uma afetação contida e nervosa que me desanimava. No entanto, nessas
conversas preciosas, muito aprendi com ele. Lembro do susto quando ele me disse estar convencido de que “o homossexualismo não existe, e o heterossexualismo
tampouco. São projeções da mente reacionária. A sexualidade é uma atividade tão importante quanto dormir e comer, portanto sem transcendência moral. A sexualidade
é jogo, prazer que se esgota nele mesmo. Rótulos foram criados pelo domínio
burgues-religioso. Sou completamente contra a identidade sexual”. Já autor de contos
e versos inseguros, pedi que desse uma olhada num livro meu, “Sangue Ruim”, premiado
em concurso literário na Bahia. Dias depois, recebi os originais de volta com a
seguinte consideração escrita à mão na primeira página: “La poesia de Antonio
Nahud es todo um desafio a la imaginación, un regalo para los sentidos.
Brillante y extravagante. Es dúctil, cromática, igual de sabrosa en la
evocación lírica que en el testimonio social”.
antonio nahud fotografado por manuel puig |
Quanto às notas de rodapé, isso remetia ao seu
universo da infância. Nascido e crescido em General Villegas, nos pampas
argentinos (só aos 13 anos se mudaria para Buenos Aires), ele, sendo
homossexual, sofrera com a falta de informação sobre a sua orientação afetiva.
Na sua juventude a medicina se dividia sobre o tema. Uns, defendiam que era uma
doença mental; outros, deficiência de testosterona. Assim, ao escrever o
romance ele pensara em jovens, também nascidos e vivendo no interior da
Argentina, que se descobrem homossexuais. Ao ler o livro, eles teriam as
informações mais recentes defendidas tanto pela medicina quanto pela
psicanálise sobre o tema. Desejava que estes jovens hipotéticos sofressem e se
angustiassem menos do que ele quando se descobriu gay.
rita hayworth, a atriz favorita de puig |
No nosso último encontro, ele insistiu para que eu
fosse trabalhar com ele no México. Seria seu assistente pessoal,
além de parceiro da paixão cinematográfica mútua. Preferi continuar os estudos
na Bahia. No mesmo ano, ele publicou seu último romance, “Cai a Noite Tropical
/ Cae la Noche Tropical”. Um ano depois, deixou o Brasil para morar no México,
estabelecendo-se com sua mãe, Male Puig, nas montanhas de Cuernavaca. Começou a escrever a novela “Humedad
Relativa: 95%”, mas não chegou a concluí-la. Em 1990, para a minha tristeza,
MANUEL PUIG morreu repentinamente, possivelmente de complicações da AIDS. Acabava de completar 58 anos. Ficaram os seus livros, que revelaram para mim que
a literatura argentina não era apenas Jorge Luís Borges e Júlio Cortazar. Preciso voltar a lê-los.
TODA A OBRA DE MANUEL PUIG
A TRAIÇÃO DE RITA HAYWORTH (1968)
BOQUINHAS PINTADAS (1969)
THE BUENOS AIRES AFFAIR (1973)
O BEIJO DA MULHER ARANHA (1976)
PÚBIS ANGELICAL (1979)
MALDIÇÃO ETERNA A QUEM LER ESTAS PÁGINAS
(1981)
SANGUE DE AMOR CORRESPONDIDO (1982)
CAI A NOITE TROPICAL (1988)
7 comentários:
Excelente!
Você conheceu o Manuel Puig ?!? Uauu...! Lí só o "Buenos Aires Affaire" - ele é impressionante.
Achei no mínimo interessante o que achava Puig da sexualidade ("sou completamente contra a identidade sexual"): ele antecipou todos os manifestos da Teoria Queer que encontramos hoje tão em voga. Ou se não antecipou, foi coetâneo sem o saber, o que já o torna um tanto original sim. No mais, uma matéria deliciosa de ser lida, com informações preciosas que só poderia ter vindo de um adepto do jornalismo literário, com suas conficções tão intramuros - e verdadeiras. Abç.
Puig foi um escritor que li com admiração. Hoje em dia não sei se o releria com prazer, se não terá ficado datado, como se diz. Mas o filme que saiu de seu livro "O beijo da mulher-aranha" foi dos meus favoritos, nos anos 1980. E eu gostei de ler as revelações tuas neste texto. Parabéns.
Eu li o livro. Eu vi o filme. Sabe, sempre acontece de eu imaginar como seria maravilhoso poder "discutir" criaturas literárias - as que me intrigam e me apaixonam - com os seus criadores, vivos ou mortos.
Meu caro Antonio Nahud, a cada dia temos nova e boas referências suas. Uma bela caixa de surpresas. Você é um iceberg cultural. Um 2015 especialmente feliz para você. Forte abraço.
magnifico ... gostei de ler
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