morvan frança por antonio nahud. 2014 |
A luz que de ti me vem
devolvo-a
amorosamente
a tudo quanto existe
ALBERTO de LACERDA
(Moçambique. 1928 - 2007)
Fotos:
MAX WANGER
MAX WANGER
(Los Angeles, EUA. 1978)
e ANTONIO NAHUD
e ANTONIO NAHUD
1
separação
TEMPOS que MUDAM
O pessimista deve inventar para
si mesmo, a cada dia, outras razões para existir; é uma vítima do “sentido” da
vida.
E.M. CIORAN
(Rășinari, Romênia. 1911 - 1995)
Não é fácil se refazer de uma história romântica. O fim da ronda do amor é como um sonho minado. Falo com conhecimento de causa, eu vivi em um campo de relâmpagos. Hoje, no fundo do coração, guardo a ternura - durante uns poucos anos - de um jovem fotógrafo de Minas Gerais. Creio
que ele jamais soube como me esforcei para tornar nosso encontro sagrado, e sua
própria existência menos tristonha. Entre o que vou revivendo e lembrando, entre
eu que vivo aqui em cima e o moço cabeludo que morre lá embaixo, há poesia. “Me
contradigo? Muito bem, me contradigo”, diz um verso de Walt Whitman. No momento, deitado em uma rede de veludo azul, deixo de lado a leitura do poeta e fico a observar um pássaro no alto
da mangueira. Ele não
é real, empoleira-se no jardim da memória. Esse jardim, resgatado de uma casa que nos abrigou, não é senão uma terra perdida no que se foi para sempre. Talvez a nostalgia, repentina e lírica, resulte de um presente em que compreendo alguma coisa do amor, não muito, desembaraçando-me do ressentimento.
Alguns fatos foram riscados pelo tempo, pela mente, pela medicação
que apagou precisamente o que poderia ser desagradável, dando destaque ao
lisonjeiro. De longe, parece mais convincente. À volta do jardim, até os limites da
emoção, a memória voa revendo movimentos dos
cabelos selvagens de MORVAN, surtos de criatividade, beijos na penumbra, olhares significativos,
apertos de mãos às escondidas. Para além dos jogos telúricos, a fabulosa trajetória do nosso destino juntos algumas vezes esteve por um fio. O amado era exasperado, frágil como se fosse feito de cristal, e ousado, com conceitos originais que se diluíam na desordem
dos dias.
Como eu e tantos outros, marcava nos livros frases que considerava expressivas, como a de Friedrich Nietzsche encontrada dia desses: “O desespero é o preço pago pela autoconsciência.”. Ele existia no limite do mar inacessível. Banhava-se no niilismo. Sobrevivia porque estava em seu poder morrer quando lhe fosse conveniente. Nas semanas iniciais da união, em uma repentina crise de lágrimas, revelou-se indefeso, desiludido, rebelde - situação estranha que me deixou perturbado. Muito se passou, inclusive diversos anos. De consistente, permaneci com a ética da importância do estar vivo.
Como eu e tantos outros, marcava nos livros frases que considerava expressivas, como a de Friedrich Nietzsche encontrada dia desses: “O desespero é o preço pago pela autoconsciência.”. Ele existia no limite do mar inacessível. Banhava-se no niilismo. Sobrevivia porque estava em seu poder morrer quando lhe fosse conveniente. Nas semanas iniciais da união, em uma repentina crise de lágrimas, revelou-se indefeso, desiludido, rebelde - situação estranha que me deixou perturbado. Muito se passou, inclusive diversos anos. De consistente, permaneci com a ética da importância do estar vivo.
A luz solar nas dunas pinta o panorama com cores prateadas. Caminho
pela praia urbana, pertinho de casa, apreciando o mar calmo, e em vez de falar
sozinho sem propósito ou de lamentar a ausência, anoto recordações. Ainda não sei se confesso só pra mim ou pra nós dois. Para MORVAN degustar essas impressões sentimentais eu teria
que saber onde está, e faz tempo que não sei. Em todo caso, está bem longe. Não
sei bem se tais reminiscências são apropriadas, mas tenho confiança na importância do amor porque é
sinal de transcendência. Depois de colados um ao outro por diversos anos, eu quis
liberá-lo do que para ele talvez fosse um enigma, sem imaginar que o
condenava ao desassossego. Queria que navegasse sozinho para que deixasse
de pensar na vida como um fardo, um sacrifício.
Meu objetivo era um só, que ficasse bem e, por que não, em paz. “Estamos nos separando. Será que sobreviveremos?”,
perguntei honestamente. Ele riu sem rir, beijou-me, e revidou: “Não está
bem da cuca. Se cuide.”. Eu disse: “Siga sua felicidade.” E foi embora para
sempre. Foi-se embora como se nada tivesse a ver comigo, como se não fosse mais
seu. A partir daí, entre nós, não houve mais do que a separação. Passando a
conviver com desconhecidos, no deserto existencial, não dizia o que sentia, encoberto, apático. O coração atrapado na teia da solidão. Eu pressentia, na época, que ele respirava
crepúsculos.
A iniciativa foi minha para que fosse para longe, enfim, como ele
queria, caminhar sem ninguém. Nunca pedi que mudasse hábitos. Nem ele interferiu na minha ilha literária. Naquelas semanas finais do romance, houve um lampejo, um frenesi. O que sei é que ele desejava mudar, e foi o caso
de ajudar a fazê-lo. MORVAN permaneceu o mesmo, da primeira a derradeira das nossas horas,
intacto, entre o denso, o amor e a fossa. Infelizmente, o amor que nos uniu não evitou a
separação. Acreditei que sabia ler o que não está
escrito. Enganamos=nos, resultando em uma farsa sofrida.
Homem de bom coração, procurava ser um sujeito simples. Ranzinza, repetia:
“Inveja, vazio, indiferença - de tudo isso se compõe a vitalidade social.” Conservo
CDs repletos de fotografias nossas. Dividimos espaços, desejos e quimeras.
A chegada dele da universidade costumava ser uma das melhores atrações do dia.
Entre sopa, cuscuz, macaxeira, coalhada, ovos, café, aconteciam as mais
extraordinárias conversas. A gente falava sobre qualquer coisa, às vezes
brotavam saraus poéticos feito flores brutas. Na intimidade, ele fazia escárnio da mesquinhez, da afetação, e principalmente do vazio dos colegas e conhecidos.
Lembro-me do abraço robusto e dos afagos trocados, do afeto no olhar e nos
gestos. Eu nunca vou me esquecer.
Fecho os olhos e me vêm montes de livros, migalhas de cultura e de
beleza, os jantares regados a vinho e o papo ameno, depois de uma sessão dupla
de filmes (eu escolhia um clássico, ele um atual). Certa vez encantou-se pela
antiga comédia “O Fantasma Apaixonado”, de 1947. Assistimos duas vezes, rindo como meninos travessos. Na trama, a viúva Lucy Muir (diva Gene Tierney) e
sua filha (Natalie Wood) mudam-se para um chalé na costa inglesa assombrado
pelo fantasma do antigo proprietário, um capitão da Marinha (excelente Rex
Harrison). Lucy fica sem dinheiro, e o fantasma resolve ajudá-la a escrever um
livro baseado em suas aventuras, gerando uma atração além do céu e da terra. Essa adorável produção da Fox, dirigida pelo mestre Joseph L. Mankiewicz, fez parte da nossa vivência enamorada, enfeitiçada por intermináveis tertúlias cinematográficas, religiosas, políticas, literárias,
filosóficas. Varávamos noites celebrando a palavra, a arte e o querer bem.
Dizia-se ateu, mas tenho dúvidas. Não apreciava políticos,
considerando Lula da Silva um verme. Falava que só mesmo o
comprometimento - ou melhor, o fanatismo - ideológico podia justificar a
inocência do ex-presidente petista. “Há coisas que eu não tenho provas”,
desabafava. “Não tenho provas porque os jornais que informam sobre Lula
são jornais do sistema, um sistema de esquerda, socialista.” Renegava o Partido das Trevas, desconsiderando o jeito de pensar e agir da
sigla. Não valorizava os populistas de esquerda ou direita, aqui e em lugar nenhum. No fundo, não tinha real interesse político.
Achava que doutrinação não constrói nada de bom. Retratou a universidade em São João del-Rei como refúgio de
socialistas-comunistas, professores e alunos doutrinados, personagens de George Orwell. O estudante fazia de conta que estava tudo
bem, na onda da galera, acompanhando colegas em manifestações e palestras,
dormindo em acampamento do MST. No entanto, não se deixou iludir. Os argumentos
eram incisivos: “Lula, Dilma e companhia são a escória que deixou o Brasil de
joelhos perante criminosos de colarinho branco e bandidos de rua que assaltam e
matam pessoas inocentes.” Tinha uma birra homérica da Dilma. “É só vê-la discursar
para perceber que a esquerda é uma farsa”, gozava. “Eleger um troço desse não
dá.” Também não apreciava Aécio. Não tinha a menor consideração.
Companheiro lúcido, cúmplice, apaixonado. Talvez ele volte, apesar de tudo,
dizia pra mim mesmo após a separação. Até não saber mais nada sobre ele, seguindo a rotina terrivelmente fatigado, decepcionado.
2
suicídio
ELE DEBAIXO da TERRA, EU em CIMA
O fim só a Deus pertence e não tem corpo.
ANTÓNIO BARAHONA
(Lisboa, Portugal. 1939)
A morte transforma tudo. Enquanto um homem for vivo não se sabe
exatamente aquilo o que ele é. Uma vez morto, fora do espetáculo, passa a ser
retrato 3X4 no museu imaginário da história da humanidade. Naquela manhã, a janela escancarada da sala exibia a infinita vegetação da reserva militar. Vista do alto, parecia miragem. Ninguém
visível nas proximidades. Rilke, black persa, nosso felino, mostrava-se
inquieto, e não era o habitual. Fala-se que o infortúnio aconteceu na noite de 7 de
julho de 2016. Enforcou-se à beira-mar, em Galinhos, no bucólico vilarejo que
nos fazia afortunados. A notícia nefasta me feriu fatalmente. Fui cortado a
navalha. Ele morto. Rilke olhando para mim. Podia olhar quanto vezes quisesse,
ele estava morto. Por mais que eu chorasse, não acreditava. Mas acabou. Ele
não estaria aqui outra vez. Deixou mensagem despedindo-se, mais ou menos assim, não me recordo bem: “Meu
caminho terminou. Aqui eu paro. Está tudo bem. Ninguém tem culpa. Cansei da
humanidade”.
morvan por a. nahud. lagoa encantada, bahia. 2013 |
O dia se arrasta vagaroso, enquanto
envelheço na nômade solidão das aves. Por onde anda? Que caminho tomou e
que escolha fez? Perde a sensibilidade, o bom senso, o olhar crítico ou a razão quem convive com o amor e que repentinamente dele abre mão como um pássaro que voa? Nos conhecemos em um verão potiguar, e como gente criativa, era
natural o interesse pelas linguagens artísticas. Frequentávamos os espaços
culturais da cidade, discutindo, com sensibilidade, aquilo que víamos.
O orgulho era o seu ponto débil, teimando em se distanciar de
Deus, das regras sociais, do sistema, dos sentimentos conservadores. Era uma questão de temperamento. “Mas isso é orgulho”, eu dizia, alfinetando. E insistia: “é um
tanto estúpido, uma atitude ingênua, uma atitude romanesca.” Fugitivos do
convencional urbano, procurávamos lagoas paradisíacas, e depois do banho rejuvenescedor, já relaxados,
a gente deitava na areia, de mãos dadas, como anjos vencidos, em silêncio, e só
despertávamos do transe pelos raios ofuscantes do sol. Ele aproveitava a oportunidade para captar imagens únicas. Sua sensibilidade estética
me fascina. O efeito etéreo e mágico de sua obra a torna única e inconfundível. São fotografias minimalistas
e mágicas que só podem ser definidas no superlativo. Nessas aventuras longe da capital, devorávamos com excelente apetite provisões de frutas e vinho. A vida nos parecia como é (ou devia ser): cheia de beleza e boa de viver. Para nossa desilusão, nem sempre foi assim.
morvan-jim |
Fã absoluto de Jim Morrison, poeta e vocalista da banda de rock
psicodélico “The Doors”, indiretamente influenciei o moço mineiro a amá-lo. Ao
visitar Paris, não deixo de ir ao túmulo do roqueiro, no Cemitério do
Père-Lachaise, lendo Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud.
Certa vez, surpreso diante do show doméstico, aplaudi com ênfase MORVAN interpretando sensualmente poemas
do roqueiro. Pena que não permitiu ser filmado. Em um aniversário meu, à fantasia, surgiu de Jim. Parecia
reencarnação. Ao saber da sua morte, coloquei Jim nas alturas,
dancei e chorei, chorei e dancei, como chorei, pelos menos uns cinco dias estupidamente aos
prantos. Jorrava como se fosse água.
3
assombro
O TEMPO não APAGA
Em nada te acrescento; o meu amor
Não pode adiantar-te ou comover-te.
Aqui estão os meus fins nas tuas mãos.
Ensina-me os meus sins com os teus nãos.
DANIEL JONAS
(Porto, Portugal. 1973)
nó
Estremeci, como se alguém me tivesse tocado no ombro. Não era
ninguém, e o dia acordava na ponta dos pés. Ainda embalado
com as encantações da noite, senti estar sendo observado. Não planejei
encontros póstumos, mas o inacreditável nascia no fato de senti-lo próximo. Procurei
não deixar me dominar pelo assombro, permanecendo tranquilo. Não senti
medo. Desconfiava que os seus dias na Terra seriam curtos. Andava
por um triz. Eu costumava inventar artifícios para empolgá-lo. Ele era inadaptado, apreciador e defensor das diversas
manifestações culturais, voltado para os aspectos sensíveis e humanistas. Inteligente, respeitava e defendia as minorias. Eram reveladoras nossas
incursões pelo interior do Rio Grande do Norte. Dois amantes ávidos de poesia e
aventuras, algumas inocentes, outras nem tanto.
Lembro-me dos passeios a bordo do barco “Paraíso Perdido”. De motocicleta, desbravamos
caminhos rurais no Nordeste brasileiro. Estacionada a moto na paisagem bonita, ali ficávamos curtindo os cenários e imaginando, entre
outras coisas, um futuro cada vez mais plural, livre de preconceitos e
armadilhas. Possivelmente menos provinciano. Semanas após o infeliz enforcamento, passou a visitar-me
em sonhos, calafrios, sombras, sussurros, sinais. Tudo perfeitamente telúrico, atraente e misterioso como um thriller de Amenábar. Se eu falasse detalhadamente sobre
isso, se eu o fizesse, o que eu falaria? Eu falaria sobre devaneios lambuzados
de erotismo? Aconteceu muitas vezes, mudando apenas o panorama, às vezes mar,
outros na montanha ou floresta. Nos sonhos, beirando o aquático, repetem-se águas (mar, rio, fonte), luz solar e uma pequena, antiga e encantadora cidadela.
Falo sobre a veracidade dos fatos. Falo sobre um conto de amor e perda. Falo sobre uma separação amarga e uma
morte grotesca. A passagem da vida a não-vida é triste. MORVAN um dia desapareceu. Partiu para
todo o sempre ciente de que o mundo continuaria com os mesmos oceanos à volta, as
mesmas fomes, as mesmas injustiças, as mesmas mentiras, os mesmos prejuízos. Nenhum outro amor me marcou tanto. No dia a dia, ao pensar nele, de imediato me vem uma sensação de bons sentimentos e um poema anônimo, que ouvi dos seus próprios lábios:
esperar que voltes é tão inútil como o
sorriso escancarado dos mortos na
necrologia dos jornais
e no entanto de cada vez
que
a noite se rasga em barulhos no elevador e
um telefone se debruça de um sexto andar
sinto que ainda ficou uma palavra minha
esquecida na tua boca
e que vais voltar
para
a
devolver
A história de um amor cristalino e do pior dos infortúnios chega ao fim. Então adeus. Adeus. Adeus, MORVAN.
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Ele costumava copiar poema à mão, deixando em local estratégico para que eu, ao acaso, o encontrasse.
Acertava na seleção, pois apreciei todos eles. Além de galante, a atitude de MORVAN era proveitosa: ao desconhecer a maioria dos bardos, eu procurava garimpar sua poética. Confira
abaixo onze deles. Excelentes, e praticamente desconhecidos no Brasil.
POEMA 1
31, 23, WHATEVER
Tenho 31 anos e estou cansado.
Todos os sítios me vão parecendo, finalmente,
igualmente maus.
Todas as pessoas, incluindo as que gostam de mim,
insuportáveis.
Não encontro sentido nem para o que faço
nem para as coisas que deixo por fazer.
Olho para os outros
com a absoluta certeza de quem vê
não semelhantes,
serenos, resignados, envilecidos extraterrestres.
Olho para mim
e sinto-me como se não tivesse outros com quem partilhar.
Para onde quer que eu olhe,
a insuportável mentira que faz ninho, germina, destila
este tempo, este país, este modo de viver
a que chamam
progressista, tolerante, solidário, democrático,
avançado, europeu, e melhor e melhor
que todos os existidos,
que todos os possíveis.
Este modo de viver
onde falta tudo o que foi nomeado.
Que desfez a classe trabalhadora sem uma única bala,
que encarcerou as consciências sem uma única grade,
que me afasta sem um único cassetete,
que me exclui sem um ferro candente,
sem sequer uma estrela amarela na lapela.
Este tempo
de trajes novos,
de Imperadores.
ANTONIO ORIHUELA
(Moguer, Espanha. 1965)
POEMA 2
Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha de manhã à noite, insone
surda como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma vã palavra,
um grito mudo, um silêncio.
Assim os vês, cada manhã
quando te inclinas só
ante o espelho. Oh querida esperança,
naquele dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar uns lábios fechados.
Desceremos o remoinho, mudos.
CESARE PAVESE
(Santo Stefano Belbo, Itália. 1908 - 1950)
Outros virão depois de nós,
Mais pacientes, mais teimosos,
Mais fortes ou mais hábeis.
Hão-de saber extrair à terra
Mais do que nós.
E hão-de ter como suporte
O canto que foi cantado
Quando era a nossa vez.
EUGÈNE GUILLEVIC
(Carnac, França. 1907 - 1997)
POEMA 4
NÃO é QUE MORRA de AMOR, MORRO de TI
Morro de ti, amor, de amor de ti,
da urgência da minha pele de ti,
da minha alma de ti e da minha boca
e do insuportável que sou sem ti.
Morro de ti e de mim, morro de ambos,
de nós, desse,
desgarrado, partido,
me morro, te morro, nos morremos.
Morremos no meu quarto em que estou só,
na minha calma em que faltas,
na rua onde o meu abraço vai vazio,
no cinema e nos parques, nos elétricos,
nos lugares onde o meu ombro serve de almofada à tua cabeça
e a minha mão tua mão
e tudo isso te sei como eu mesmo.
Morremos no sítio que emprestei ao ar
para que estejas fora de mim
e no lugar onde o ar se acaba
quando te deito a minha pele por cima
e nos conhecemos em nós, separados do mundo,
ditosa, penetrada e também interminável.
Morremos, sabemo-lo, ignoram-no, nos morremos
entre os dois, agora, separados
de um para o outro, diariamente,
caindo-nos em múltiplas estátuas
em gestos que não vemos
em nossas mãos que nos necessitam.
Nos morremos amor, morro em teu ventre
que não mordo nem beijo
nas tuas coxas dulcíssimas e vivas
na tua carne sem fim, morro de máscaras
de triângulos obscuros e incessantes.
Morro do meu corpo e do teu corpo,
da nossa morte, amor, morro, morremos
no poço do amor a todas as horas,
inconsolável, aos gritos,
dentro de mim, quero dizer, te chamo
te chamam os que nascem, os que vêm
de trás, de ti, os que a ti chegam.
Nos morremos, amor, e nada fazemos
senão morrermos mais, hora após hora,
e escrevermos e falarmos e morrermos.
JAIME SABINES
(Tuxtla Gutiérrez, México. 1926 - 1999)
POEMA 5
PARA FAZER o RETRATO de UM PÁSSARO
Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
Agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta.
Esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
Às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel.
Depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar.
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar.
Então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.
JACQUES PRÉVERT
POEMA 6
A LIFE of ERRANDS
If You Are Lucky
You Will Grow Old
And Live
A Life of Errands.
You Will Discern
What People Need
And Provide It
Before They Ask.
You Will Drive Your Car
Here And There
Delivering and Fetching
And Neither The Traffic
Not The Weather
Will Bother You
In the Least.
You Will Whip Down
The 405
To San Diego
To Pick Up An Acorn
For Someone's Proverb
And So On And So Forth.
In Spite Of The Ache
In Your Heart
About The Girl You
Never Found
And The Fact That
After Years Of
Spiritual Rigour
You Did Not Manage
To Enlighten Yourself
A Certain Cheerfulness
Will Begin To
Arise Out Of Your Crushed
Hopes And Intentions.
How Thirstily
You Embrace Your
Next Commission:
To Sift Through
The Sunglasses
At A Lost And Found
In Las Vegas
Just A Few Hours
Across The Desert.
Your Hair Is White
You Have Breasts
And A Gut
Over Your Belt
You Are No Longer A Boy,
Or Even A Man
But A Sense Of Gratitude
Enlivens Every Move
You Make.
Yes, Sir, These Are The
Very Gold-Rimmed Pair
She Left In The Plastic Tray
Beside The Dollar
Slot Machines.
No, Sir, I Am Not Lying.
LEONARD COHEN
(Westmount, Canadá. 1934 - 2016)
POEMA 7
A luz no lago, esconde-se atrás do muro,
Invadem o quarto os cheiros misturados das flores.
Na borda do biombo, o pó que a borboleta espalhou,
Na janela lacada, a mancha amarela da abelha.
Deixa esses papéis oficiais para os escriturários,
Há um criado para cada funcionário público honesto.
Vamos de cavalgada ouvir os poemas um do outro.
Que há de tão urgente nesses assuntos em que perdes o coração?
LI SHANG-YIN
(Qinyang, China. 813 d.C. -
858 d.C.)
POEMA 8
como lobos em período de seca
crescemos por toda a parte
amamos a chuva
amamos o outono
um dia até pensamos
em enviar uma carta de agradecimento ao céu
com uma folha de outono como selo de correio
acreditávamos que as montanhas desapareceriam
os mares se dissipariam
apenas o amor seria eterno
de súbito separamo-nos
ela gostava de sofás compridos
e eu de longos navios
ela gostava de sussurrar e suspirar nos cafés
eu gostava de saltar e gritar nas ruas
e, apesar de tudo,
os meus braços vastos como o universo
estão à espera dele
MUHAMMAD AL-MAGHUT
(Salamiyeh, Síria. 1934 - 2006)
POEMA 9
«CÂNTICO NEGRO»
Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer
filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T'ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the
Underground.
RUI KNOPFLI
(Inhambane, Moçambique. 1932 - 1997)
POEMA 10
INÍCIO ESQUECIDO
Num tapete de água
vou bordando os meus dias,
os meus deuses e as minhas doenças.
Num tapete de verdura
vou bordando os meus sofrimentos vermelhos,
as minhas manhãs azuis,
as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também.
Num tapete de terra
vou bordando a minha efemeridade.
Nele vou bordando a minha noite
e a minha fome,
e a minha tristeza
e o navio de guerra dos meus desesperos,
que vai deslizando p’ra mil outras águas,
para as águas do desassossego,
para as águas da imortalidade.
THOMAS BERNHARD
(Heerlen, Países Baixos. 1931 - 1989)
POEMA 11
BASTA
Viver não basta queremos sonhar
em jardins encantados florestas com árvores
que transformam serras mecânicas em rosas e pão
Andar não basta queremos pairar
sobre ruas em que tanques e porta-aviões
se desfazem em leite e mel
Comer não basta queremos beijar
gente bela basta que
seja gente.
ULLA HAHN
(Kirchhundem, Alemanha. 1945)
25 comentários:
As imagens são impactantes.Ao escrever vc faz a catarse para liberar o espírito de quem partiu. Que ele encontre a paz.
A separação é só física! !!!!
Fico angustiada quando alguém perde a vontade de viver, mas dá para entender porque, às vezes, a gente prefere só existir. Tem hora que viver é cansativo.
Amado Antônio Nahud.
Quando amamos, andamos por avenidas desconhecidas e mesmo se quiséssemos
voltar não saberíamos, levados nas asas da ilusão esquecemos também de medir a profundidade. Despertamos numa outra
atmosfera, lá vem a dor, culpa etc.
são lições árduas, Lindas, dolorosas e tão
sublimes, que queremos sentir novamente o fascínio desse aprendizado.
Importante que não fique sentimento de culpa por essa "partida" 😑
Realmente viver e sobreviver neste Mundo e a maior prova de sabedoria,mas entendo pessoas que só conseguem ver a Exit saída.
Parabéns pelo bonito trabalho!
Dizem que o suicídio é um ato de covardia, mas penso o contrário. ..precisa-se de muita coragem para provocar uma partida sem volta
quando a pessoa está com problema mental não há nenhuma coragem.
Lembrei agora do bilhete de despedida de Dalida: "Perdoem-me. A vida me é insuportável". Só lamento que ela fosse amada por tantos mas nenhum conseguiu preencher seu vazio.
impossível entender a extensão dessa sua vivencia ,beijo no coração querido !
É fácil existir. Difícil é viver!
Amigo Antonio Nahud li seu texto. Só me resta o silêncio, foi o meu sentimento respeitoso ao amor de vocês
A ternura que sente é eterna.
Gostaria de ler seu livro. Sou de Salvador . Que livrarias encontro ? Qual a editora? Um abraço.
Sempre me abstive de comentários por nunca ter sido muito íntima de Morvan a ponto de entender a relação de vocês. Trabalhei com Morvan durante 6 meses numa pesquisa e ele sempre foi muito discreto apesar de transparente. A alma dele não era desse mundo, e o mundo pra ele parecia insuficiente. Me doeu muito a notícia da partida dele principalmente pq eu entendi perfeitamente. Obrigada por sempre trazer ele de volta em poesia, sempre amo muito ler os textos de amor que você sobre ele.
Que lindo amigo,nesse dia (da foto onde estou) ele estava tão feliz e paciente,falando da revista com tanto orgulho. Linda lembrança.
Rapaz, vendo essas fotos me veio à mente uma questão: alguma vez Morvan mencionou q.se suicidaria?
Texto lindo, amigo Antonio Nahud. Poético, saudosista, realista, profundo, triste, amargo e doce. Todavia magnífico.
Nunca entenderei como um homem lindo desse, pode tirar a própria vida...Vi a foto e sinceramente não tem como entender. Era um deus grego. Como esquecer, eim amigo?
😢 Beijo no coração.
Lindo meu amore.
Me faz pensar em luto e melancolia, Freud.
O texto é belíssimo, com a melancolia necessária, mas faz a gente viajar no amor de vocês e ver poesia, mesmo doida... Mas se não for assim não é amor.🌹um abraço Antonio Nahud.
Nossa. Conheci o Morvan. Éramos da mesma turma da faculdade
Nunca conheci pessoal mais inteligente que ele
Tanto que sentia vergonha de está em sua presença
Pq por vezes me considerava muito pequena diante de tanto conhecimento.
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