outubro 27, 2022

................................................. CLARICE e GULLAR - ENTREVISTA


“A arte existe porque a vida não basta.”
FERREIRA GULLAR
 
Ilustrações:
HENRI MATISSE
(1869 – 1954. Le Cateau-Cambrésis / França)
 
 
De volta para o Brasil, o poeta encontra os cariocas mais agitados, mais apressados, como se não soubessem o que vai acontecer no minuto seguinte. Sou fervente admiradora de FERREIRA GULLAR (1930 - 2016. São Luís, Maranhão), desde os tempos de “A Luta Corporal” (1954) até esse escandalosamente belíssimo “Poema Sujo” (1976). Nossos mútuos contatos se fizeram no tempo da primeira revista “Senhor”, para a qual nós dois escrevíamos. Mas eu tinha um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário poder verbal, eu seria aniquilada.
 
Éramos um pouco distantes um do outro, e eu desconfiava que ele rejeitava a minha “literatura”. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do que ele escrevia e escreve. Nesta entrevista, ele me assegurou que a desconfiança antiga era errada. Aleluia! Ele esteve em minha casa. Verifiquei que, praticamente, não mudou, tem o rosto como que talhado em madeira. Madeira sensível, madeira-de-lei. É pessoa extremamente simpática e com ar de bondade.
 


CLARICE LISPECTOR: “Fatos & Fotos”, 1977
 
Há quanto tempo você não vinha ao Brasil?
 
Há cinco anos e oito meses. Voltei no dia 10 de março deste ano.
 
Que diferenças você notou entre o Rio de antes e o de agora?
 
O de hoje me parece mais frenético do que o de antes. É uma impressão um tanto subjetiva, de uma pessoa que apenas acaba de chegar. Sinto isso no comportamento das pessoas e no próprio aspecto da cidade, que parece mais um canteiro de obras. As pessoas estão mais agitadas, mais apressadas – como se não soubessem o que vai acontecer no minuto seguinte. Não há um ponto da cidade onde eu chegue e não veja buracos, terra e pedras, tudo amontoado e, às vezes, como se ali estivesse para sempre. Outra coisa que noto também é o distanciamento maior entre as classes sociais. Eu, que não tenho carro e que ando de ônibus, percebo que os usuários desses veículos são quase exclusivamente pessoas muito modestas. As outras devem estar no seu próprio carro. É uma sensação um pouco parecida com a que eu sentia em Lima, no Peru, onde o contraste social é enorme.
 
O mesmo eu senti na Colômbia, Gullar, onde havia multimilionários e o resto era completamente abandonado por todos, inclusive pelo governo. Lá a miséria é maior do que no Brasil, porque, com o frio, tudo piora.
 
É claro, o clima do Brasil é uma das sortes nossas, Clarice.


Você tem reencontrado aqui os seus grandes amigos?
 
Claro, e esta é uma das grandes alegrias da volta. Mas alguns desapareceram para sempre, como Leo Vitor, o Vianinha e Paulo Pontes.
 
Você já foi ao Maranhão, depois que voltou?
 
Não, no momento não tenho condições para ver minha terra natal. Aqui me aguardavam problemas muito graves de família que exigem solução urgente e minha total dedicação. Mas, assim que eu puder, irei a São Luís para rever minha mãe, meus irmãos e minha cidade.
 
Olhe, Gullar, no “Poema Sujo” você me fez sentir uma criança diante de uma selva ou de um altíssimo monumento. E quando você falou em “noites envenenadas de jasmim” – pois bem, senti-me de volta a Recife, que é a minha terra.
 
É, suponho que o jasmim é algo muito forte. Assim o senti em Valparaíso, quando tomei um susto em relação ao intenso perfume dessa flor. Também então eu fui transportado de novo à minha cidade e infância. Em Lima, perto da casa onde morava, havia um muro, de onde se debruçava um jasmineiro.
 

Em que cidades você morou, durante seu tempo de exílio?
 
A maior parte do tempo na América Latina, mas estive também em Paris e Roma. Depois morei em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.
 
Como é que você se sustentava nesses lugares?
 
Como a maior parte do tempo eu vivi sem a família, não necessitava de muito dinheiro para me manter. Escrevi para revistas brasileiras e dei aulas de português. Eventualmente, fazia palestras sobre arte e literatura brasileiras.
 
Você encontrou aqui, na sua volta, facilidade de arranjar um bom emprego?
 
Durante todo o tempo de minha ausência, me mantive profissionalmente vinculado ao jornal “O Estado de S. Paulo”, onde eu fora redator desde 1962. Ao voltar, o diretor da sucursal do “Estado”, Villas Boas, que me recebeu no aeroporto, foi logo dizendo: “Como é? Amanhã você já estará na redação.” Bem, no dia seguinte não, mas na semana seguinte recomecei a trabalhar.
 

Qual a sua função no “Estadão”?
 
Sou copidesque, isto é, reescrevo o que os outros escrevem.
 
Marques Rebelo me disse uma vez que reescrever era mais simples que escrever. Quanto a mim, Gullar, eu discordo, pois minhas frases já vêm prontas. Em você, como se processa o ato criador? Você reescreve?
 
Não, só me sento para escrever quando sinto que a coisa está praticamente pronta dentro de mim. Depois que escrevo, faço, como você, eventualmente, algumas emendas, mas é só.
 
Gullar, vou lhe fazer uma pergunta muito difícil que eu mesma não saberia como responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a palavra escrita?
 
Em mim o poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer. Por exemplo, quando escrevi o poema sobre o Vietnã, a coisa se deu do seguinte modo: eu acordei, comecei a ler o jornal com suas tremendas notícias sobre a guerra. À porta de minha casa havia uma feira. Quando vi aquelas pessoas se dirigindo para as suas casas, com as cestas carregadas de verduras e frutas, deu-se o choque. Eu pensei: se fosse no Vietnã aquela senhora poderia encontrar a sua casa em chamas. Eu próprio havia marcado para sair de férias, um mês depois. Pensei: num país em guerra deve ser impossível planejar a vida, ir ao cinema, tudo pode ser desfeito de um momento para o outro. É a insegurança total. O choque emocional já por si provoca as palavras, eu em geral não me preocupo em escolhê-las, elas jorram.
 

Glauber Rocha disse que o “Poema Sujo” é o ponto culminante do concretismo. Qual é a sua opinião?
 
O “Poema Sujo” não tem nada a ver com o concretismo. Eu mesmo nunca fiz concretismo, já que meus poemas, naquela época, destoavam da concepção ortodoxa dos paulistas que lançaram o movimento. As coisas que escrevia, então, davam continuidade à minha própria experiência, onde já havia a utilização dos elementos visuais. O “Poema Sujo” incorpora toda a minha experiência formal e, no aspecto gráfico, se liga ao neoconcretismo. Conversando posteriormente com Glauber, soube que ele nessa frase, usando a expressão concretismo, incluía a poesia neoconcreta.
 
Sua poesia passou por sucessivas etapas, verdadeiras rupturas com as fases anteriores, e há quem diga que seu último poema rompe com tudo o que você fez antes. Como explica isso?
 
As rupturas são aparentes, ou melhor, de superfície. Sempre fiz literatura como um modo de entender a vida e a mim mesmo. A vida muda, eu mudo, as formas de expressão refletem essas mudanças. O “Poema Sujo” rompe com certa rigidez, a que a própria prática de escrever vai submetendo o escritor, este poema é mais livre, é sobretudo um reencontro comigo mesmo.
 
O “Poema Sujo” é um poema de exílio?
 
Não somente. Acredito que a condição de exilado penetra todo o poema e deve ter sido uma de suas motivações. Mas creio que o poema vai além disso – ele é uma tentativa de dizer tudo como se depois dele eu fosse morrer. O que ele significa exatamente, eu não sei.
 

Você está escrevendo atualmente algum poema?
 
Não. Em 1975 escrevi um curto poema sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer. Mas é praticamente inédito pois só foi publicado uma vez numa revista especializada de arquitetura.
 
Ah, se você soubesse de cor esse poema desconhecido, nós, que gostamos tanto de você e de Oscar, ficaríamos muito contentes...
 
Sei de cor, chama-se “Lições de Arquitetura”:

No ombro do planeta (em Caracas)
Oscar depositou para sempre uma ave uma flor
ele não faz de pedra nossas casas
faz de asas.
No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(Com seu traço futuro Oscar nos ensina que o sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos com matéria dura
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
Nos ensina a viver
no que ele transfigura
no açúcar da pedra
Ferreira Gullar
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve.
 
É uma beleza, Gullar, digna de Oscar. E o que é que você gostaria de ter escrito e não escreveu?
 
Um poema capaz de abarcar toda a história sofrida e obscura da gente brasileira.


QUEM foi FERREIRA GULLAR
 
O poeta de “Poema Sujo” e “Muitas Vozes” foi um dos criadores do neoconcretismo. José de Ribamar Ferreira, conhecido como FERREIRA GULLAR, aos 18 anos lançou o seu primeiro livro de poesias: “Um Pouco Acima do Chão”. Rumo ao Rio de Janeiro, onde se estabeleceu em 1951, passou a atuar como revisor de textos da revista “O Cruzeiro”. Escreveu ao longo de décadas, se debruçando no gênero poético e na temática das questões sociais. Também escreveu peças de teatro e roteiros de telenovela. Durante o regime militar se exilou na França, no Chile, no Peru e na Argentina. Em março de 1977 voltou do exílio. Nesta ocasião concedeu uma entrevista à Clarice Lispector para a revista “Fatos & Fotos”.
 
Fonte:
“Clarice Lispector – Entrevistas” (2007)
 
CINCO POEMAS de FERREIRA GULLAR
 
01

TRADUZIR-SE
 
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
 
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
 
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
 
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
 
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
 
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
 
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
 
02

CANTIGA PARA NÃO MORRER
 
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
 
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
 
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
 
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
 
03

POEMA SUJO
(trecho)
 
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro:
menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma?
claro mais que claro claro:
coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho
que o universo fabrica
e vem sonhando
desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva
igual a tua bocetinha
que parecia sorrir entre
as folhas de banana
entre os cheiros de flor
e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo
(não como a tua boca de palavras)
como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão
de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão
de tanta noite e tanto dia
 
04

Um INSTANTE
 
Aqui me tenho
Como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente.
 
05

NESTE LEITO de AUSÊNCIA
 
Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
 
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
 
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
 
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.

clarice lispector

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