Entrevistado por ANTONIO NAHUD
(Lisboa, Portugal, 2002)
Jornal A Tarde / Cultural (BA)
Ilustrações:
CASPAR DAVID FRIEDRICH
Cada
lançamento de JOSÉ SARAMAGO provoca expectativas. Prêmio Nobel de Literatura de 1998, seu mais recente romance, “A
Caverna”, conclui uma festejada trilogia iniciada com “Ensaio Sobre a Cegueira”
e “Todos os Nomes”. Questiona a humanidade e sua
desrazão. “Entramos na era da burocracia absoluta, caminhamos para a ignorância.
O homem, cercado de informação, perplexo, perde sua capacidade de indignação,
de racionalidade mínima”, disse o escritor. Nasceu em 1922, na aldeia de
Azinhaga, Alentejo português, região sul do país, produtora de azeitona,
cortiça e trigo. Nunca pensou em se tornar escritor, comprando seu primeiro livro aos 18 anos. Aos 25, escreveu e publicou “Terra do
Pecado”, voltando à literatura depois dos 40, com os versos de “Poemas
Possíveis”, 1966. Trabalhou como mecânico, desenhista, editor, jornalista.
Em 1975, desempregado, resolveu tentar sobreviver como escritor. Deu certo. Publicado em 40 idiomas, escreveu também “Levantado do Chão”, “O Ano da
Morte de Ricardo Reis”, “História do Cerco de Lisboa”, “Memorial do Convento”, “O
Evangelho Segundo Jesus Cristo”, entre outros.
A primeira vez que entrevistei JOSÉ SARAMAGO foi em 1997, numa coletiva, no local onde o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado lançou em Lisboa o livro “Terra” (com prefácio do escritor português). Anos depois, estive no lançamento em praça pública de “A Caverna” (2001). Desta vez, combinamos a entrevista em um café com vistas para o majestoso Castelo de São Jorge. Cheguei 15 minutos antes do horário marcado. Ele estava esperando, acompanhado da esposa Pílar del Río. Da varanda alta, vê-se bonitas colinas, o rio Tejo, tufos de alfazema, pombas gordas e barulhentas. Sisudo, o escritor assina um exemplar de um dos seus livros para um garçom. Ele vive na vulcânica ilha Lanzarote, refúgio cercado de azul atlântico, nas Canárias. Visita mensalmente Lisboa. Suas mãos se movem expressivas, as sobrancelhas sobem e descem, o olhar triste como os fados de Amália Rodrigues. A entrevista inesquecível pelos sorrisos irônicos do escritor a cada pergunta.
O senhor tem uma relação difícil com
Portugal. Vive em outro país. Os portugueses, entretanto, insistem em anunciá-lo como seu representante oficial.
Eu não posso e nem quero representar Portugal. Nada do que penso transmite tal ideia. As circunstâncias me levaram a viver em Lanzarote. Como poderia continuar em Portugal depois da proibição de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”? Fiquei indignado, triste. Além do mais, Jorge de Sena vivia no Brasil e depois nos Estados Unidos, Eduardo Lourenço vive na França. Muitos outros escritores e poetas portugueses viveram ou vivem fora daqui. O importante é que pago os meus impostos. Nunca houve uma ruptura com o meu país. Não sou um exilado como dizem os meios de comunicação. Chegaram a me chamar do Salman Rushdie português.
Costuma visitar sua aldeia no
Alentejo?
Acredito que sou filho do tempo em que vivo e não do
lugar em que nasci. Digo isto porque a vila onde nasci não é a mesma após setenta anos. Estive lá um dia desses. Mudou completamente a paisagem. Havia extensões incríveis de
oliveiras que foram arrancadas. É outro mundo, não é o mundo da memória.
Vive atualmente numa ilha tranquila. Se sente distante do mundo?
Não
vivo distante do mundo. Estou sempre viajando, venho a Portugal todos os meses.
Escrevo livros que atestam que tenho um certo interesse e algumas ideias
sobre o mundo e os seres humanos.
Acredita na possibilidade de um mundo justo?
Acredito
que temos que fazer algo para tornar o mundo mais justo. Precisamos buscar soluções para os
problemas. Efetivamente, não adianta a crença num mundo melhor se continuarmos
de braços cruzados, apenas acreditando em conceitos como esperança e utopia. É
preciso nos indignar. Ou melhor, deveríamos refletir seriamente sobre o que
está acontecendo no mundo, na economia, na ecologia. Tempos de desigualdade, indiferença, racismo.
Porque não sou pessimista, apenas enxergo a realidade. É só olhar o mundo para ver o
que está acontecendo: o desespero de milhões de pessoas vivendo miseravelmente. Aparentemente existe o protótipo de um mundo feliz, mas ele é feliz para poucos. O
mundo é um pesadelo, e poderia não sê-lo, existem muitas formas de
contornar a situação.
Também se enfada quando consideram sua literatura pessimista?
Não
gosto de discutir esse tema, não leva a nada. Não existe o pessimismo puro,
da mesma maneira que não existe o otimismo puro. O que posso dizer é que não
sou pessimista, apenas tenho uma visão do mundo bastante pessimista.
A literatura deve sensibilizar o leitor?
Não vamos embarcar em ilusões, no otimismo. Sensibilizar o leitor? Não sei
se o leitor quer ser sensibilizado. A missão do escritor, se existe alguma, é
não se calar. Deveria ser a missão de todas as consciências.
A sua criação não é fácil. Muita gente não consegue compreendê-la.
A ideia não é escrever pensando que todo mundo vai compreender sua literatura. A questão está em cada um de nós fazer da melhor maneira possível o que sabemos fazer. Seria um erro fazê-lo pior, podendo fazê-lo melhor. Acredito que a criação de um escritor deve estar ao alcance de todas as pessoas, para que elas procurem e possam entendê-la. O caminho é cultura ao alcance de todos. Sei que há livros meus que muita gente não entende, e tenho que declarar, muito humildemente, que há livros que não entendo, que não estão ao meu alcance.
Por que escreve romances?
Faço romances porque não aprendi a escrever ensaios. Mas não tenho imaginação. O romance, como eu o vejo, mudou muito, não é mais como os magníficos romances do
passado que contavam histórias sobre a vida das pessoas. Eu não o vejo como
um gênero literário, mas como um espaço criativo em que cabem o ensaio, o drama,
a filosofia, a ciência. Tenho a história que
quero contar limitada ao essencial. Então, sem perceber, entro com reflexões filosóficas, deixando os personagens de lado por
instantes. O autor se intromete, mas não estava previsto inicialmente.
O autor se funde ao
narrador?
Camilo José Cela disse numa entrevista
que após ganhar o Nobel foi preciso muita força de vontade e saúde para não se esgotar
completamente.
Verdade. Eu fiquei cansado. Não fazia outra coisa senão viajar. Foram muitos
congressos, entrevistas, lançamentos, apresentações, doutoramentos honoris
causa. Cela havia me avisado que o ano imediato ao prêmio é
perdido. Mas não me queixo.
A cultura se move geralmente por modas. Se eu afirmar que os brasileiros estão interessados na literatura portuguesa,
como é fato citando sua obra e a de Lobo Antunes, não estaria dando importância
a um modismo passageiro?
As
modas não são negativas. Sem moda seguiríamos como antes. É bom que surja algo
diferente, mesmo efêmero. Algo sempre permanece. Inclusive alguns autores
que estão na moda. Se
existe no Brasil a moda da literatura portuguesa, que eu não creio, passaremos a vender um pouco mais. Não deixa de ser interessante.
Fui
o primeiro Saramago da família. O empregado do registro civil fez uma
pequena confusão. Sou um Souza. Saramago é uma planta que nos tempos da minha
infância, e até antes, as pessoas da minha aldeia, em épocas de crise, digamos,
comiam. Gosto do meu sobrenome, não queria ser chamado de José de
Souza.
Finalizando. Escreve dia após dia?
Escrevo diariamente para desassossegar. Não desejo me abandonar à
comodidade. No fundo, o que procuro saber com a minha escrita é essa coisa tão simples e que não tem resposta: quem somos. Quando
esgotar o que tenho a dizer, terei a sensatez de parar de escrever.
3 comentários:
Grande escritor! Gostei.
Muito boa entrevista. Parabéns.
Profundas colocações que porecisam ser aprofundadas por cada um mergulhando no conteúdo!!!!!!!!!
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