IMAGENS:
ANALU PRESTES
(1952. Santos / São Paulo)
Dizia
o mineiro Guimarães Rosa que se lê CLARICE LISPECTOR (1920 - 1977. Chechelnyk / Ucrânia) “para a vida,
para viver”. Ao mesmo tempo em que ousava desvelar as profundezas de sua alma
em escritos, ela costumava evitar declarações íntimas nas entrevistas que concedia,
tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Parecia
Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf. Autora de uma escrita
estranha, de uma narrativa de uma beleza que dói. Escreveu
romances, crônicas, histórias infantis, contos. Indagou as questões da condição
humana, como o amor, o nascimento, a morte, o desejo, a vida, o ato de escrever,
o silêncio, a indignação. Como bem descreve Caetano Veloso ao falar sobre o
sentimento que a sua leitura provoca: “perfeitos momentos da literatura
brasileira moderna, perfeitos momentos da vida nas palavras, perfeitos
momentos.” Lembro-me
quando comecei a ler CLARICE LISPECTOR. Pensei: ninguém escreve como ela. Literatura
aberta e multifacetada que permite plurais interpretações. De origem ucraniana, a escritora estreou
aos 23 anos, em 1943, com o premiado romance “Perto do Coração Selvagem”. Na
busca pela melhor forma de escrever sobre os assuntos que lhe interessavam,
utilizou recursos como o fluxo de consciência, e criou uma sintaxe peculiar e
inovadora. Sua
obra figura entre as mais importantes da narrativa literária brasileira e universal.
Influenciada por autores como Franz Kafka, James Joyce e Virginia Woolf, deixa
transbordar intimismo visceral e possui dimensão filosófica que atrai psicanalistas, críticos, filósofos
e outros leitores. Autora dos clássicos “A Paixão Segundo G.H.” (1964) e “A
Hora da Estrela” (1977), entre outros.
Nos
últimos anos de vida estava bastante fraca. Andava anotando coisas em
pedacinhos de papel, cheques, guardanapos e até mesmo maços de cigarros. Sofrera
muito com as sequelas do incêndio que quase lhe custara a mão com que escrevia.
Faleceu aos 57 anos, em 1977. Ao contrário do que acontece com muitos escritores,
seus livros não foram esquecidos e seguem por aí, sendo reeditados e fascinando
leitores em todo o mundo. Livros
e mais livros analisam sua escrita, e seu pensamento visceral. Frases, textos e trechos de sua
intensa produção circulam pela Internet. CLARICE LISPECTOR ainda está viva,
pois, como ela disse, “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas,
continuarei a escrever”. No entanto, devido ao seu caráter multifacetário e seu
universo de olhares, formatos e interpretações, há muito fragmento e citação dela
mal utilizados. Ela está sendo mal lida, lida em pedaços, numa esnobação involuntária
aos seus livros complexos. A escritora,
que reconhecia ser um mistério para si mesma, continua sendo um
mistério para seus leitores, ainda que textos confessionais possibilitem vislumbres de sua densa personalidade.
CLARICIANAS
“Agora
sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da
solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama.”
— em
“Água Viva”.
“Quando
criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um
ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro
lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas
importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer:
parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.”
— em
“Aprendendo a Viver”.
“Sou
uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me
trazido também alguma recompensa.”
- em preâmbulo de entrevista com Pablo Neruda, 1966.
“O
que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros
e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma
árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o
mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso
fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.”
— em
“Água Viva”.
“Sou
o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia
ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que
imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob
uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova
que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade. […] Não sou
madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
— em
“Aprendendo a Viver”.
“Outra coisa que não parece ser entendida
pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo,
não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser
intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a
intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má
leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li
as obras importantes da humanidade.”
— em
“Aprendendo a Viver”.
“Sou tão misteriosa que não me entendo.”
— em
“Aprendendo a Viver”.
“É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel
mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer
povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina
que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos
houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa
rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma
continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode
falar do silêncio como se fala da neve.”
— em
“Onde Estivestes de Noite”.
“Assim
a falta de desejo dava silêncio ao coração do homem. Procurou a sua própria
fome: mas era o silêncio quem lhe respondia. Ele estava experimentando o que
era pior que tudo: não querer mais. O primeiro momento foi muito ruim, mal
calculou ele que não querer era tantas vezes a forma mais desesperada de
querer.”
- em
“A Maçã no Escuro”.
“Não
tenho medo nem das chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas. Pois eu
também sou o escuro da noite.”
— em
“A Hora da Estrela”.
“É
preciso parar. Estou com saudades de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais
ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu? Preciso fazer um
retiro espiritual e encontrar-me enfim – enfim, mas que medo – de mim mesma.”
- em
“A Descoberta do Mundo”.
“Saudade
é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a
saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa
toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos
sentimentos mais urgentes que se tem na vida.”
— em
“A Descoberta do Mundo”.
“Não
ter nenhum segredo - e no entanto manter o enigma”
- em “Onde
Estivestes de Noite”.
“De
repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és?
Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de
complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.”
— em
“Um Sopro de Vida”.
“Ouça:
respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é
ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único
meio de viver.”
— em
carta a uma amiga, 1947.
“Que
se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.”
— em
“A Hora da Estrela”.
“Não
entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre
limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais
completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não
entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não
entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um
desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a
inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que
não entendo.”
— em
“A Paixão Segundo G.H”.
“É
difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo
de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.”
— em
“A Paixão Segundo G.H”.
“Estou procurando, estou procurando. Estou
tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não
quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa
desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma
coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso
quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque
saberia depois para onde voltar: para a organização anterior.”
- em “A
Paixão segundo G.H”.
“O
prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao
insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a
possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição
irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte
fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável
que chega a se parecer com a grandeza da morte.”
- em
trecho da crônica “O Nascimento do Prazer”.
“Liberdade
é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”
— em “Perto
do Coração Selvagem”.
“Uma das coisas que aprendi é que se deve
viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de,
se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra
para a frente.”
— em
“Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”.
“Amar
os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se
der amor e às vezes receber amor em troca.”
— em
“Aprendendo a Viver”.
“E
quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é
coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.”
— em
“A Hora da Estrela”.
“Não quero a meia-luz, não quero a cara
benfeita, não quero o expressivo. Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro
da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é
preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.”
- em “A
Paixão Segundo G.H”.
“É
sempre assim que acontece – quando a gente se revela, os outros começam a nos
desconhecer.”
- em “A
Maçã no Escuro”.
“Minha
alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita,
prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma
saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que
não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.”
—
último bilhete, escrito no hospital da Lagoa, RJ, em 1977.
ROMANCE
PERTO do CORAÇÃO SELVAGEM. 1944.
O
LUSTRE. 1946.
A
CIDADE SITIADA. 1949.
A
MAÇÃ no ESCURO. 1961.
A
PAIXÃO SEGUNDO G.H. 1964.
Uma
APRENDIZAGEM ou LIVRO dos PRAZERES. 1969.
ÁGUA VIVA.
1973.
A
HORA da ESTRELA. 1977.
Um
SOPRO de VIDA. 1978.
CONTOS
ALGUNS CONTOS. 1952.
MISTÉRIO em SÃO CRISTÓVÃO. 1952.
LAÇOS de FAMÍLIA. 1960.
A
LEGIÃO ESTRANGEIRA. 1964.
FELICIDADE
CLANDESTINA. 1971.
A
IMITAÇÃO da ROSA. 1973.
A VIA
CRUCIS do CORPO. 1974.
ONDE
ESTIVESTES de NOITE? 1974.
A
BELA e a FERA. [Publicação Póstuma]1979.
INFANTO-JUVENIL
O
MISTÉRIO do COELHO PENSANTE. Uma ESTÓRIA POLICIAL PARA CRIANÇAS. 1967.
A
MULHER QUE MATOU os PEIXES. 1968.
A
VIDA ÍNTIMA de LAURA. 1974.
QUASE de VERDADE. [Publicação Póstuma], 1978.
COMO
NASCERAM as ESTRELAS. [Publicação Póstuma], 1987.
CORRESPONDÊNCIA
CARTAS
PERTO do CORAÇÃO / FERNANDO SABINO, CLARICE LISPECTOR. [Organização Fernando
Sabino]. 2001.
CORRESPONDÊNCIA
- CLARICE LISPECTOR. [organização Teresa Cristina Montero]. 2002.
CRÔNICA
VISÃO do ESPLENDOR. Impressões Leves. 1975.
PARA
NÃO ESQUECER. [Publicação Póstuma] 1978.
A
DESCOBERTA do MUNDO. [Publicação Póstuma]. 1984.
ENTREVISTA
De
CORPO INTEIRO. 1975.
A
ÚLTIMA ENTREVISTA de CLARICE LISPECTOR. 1992.
19 comentários:
Minha enorme Clarice,
Tantos dizeres, mas, melhor, tanto silêncio e beleza!
O que aspiro. Respiro em literatura.
Eterna Lispector!
"[...] há muito fragmento e citação dela mal utilizados. Ela está sendo mal lida, lida em pedaços, numa esnobação involuntária aos seus livros complexos." muito bom!
Belezas....
Essa emociona. Seus livros. Seu jeito de ser. Seu jeito de falar. De fumar. Era enigmática. Profunda. Linda. Pena ter ido tão cedo.
Existem pessoas realmente iluminadas!! Ela foi uma delas!
Relata o monge beneditino David Steindl-Rast, que quando criança sua brincadeira preferida era fitar os olhos de seu primo, sem piscar, ou seja, até lacrimejar. Segundo ele, em uma dessas ocasiões, através daqueles olhos infantis, teve a primeira experiência daquilo que Maslow chama de: 'experiências extremas ou místicas.' Em linhas gerais, através da retina de seu primo, o monge viu Deus. Não seria isso a religião enquanto experiência: ver através dos olhos, em meio à tanta cegueira? Daí a conclusão do monge: "Você deve estar presente para que eu possa me encontrar." Por fim, vendo estas fotos de Clarice - segura e igualmente ferina, com olhos búdicos; como a pantera rilkeana, sempre à espreita - pude confirmar a experiência do monge. Quem tem olhos de ver,veja
Já li todos de Clarice é um misto de poema e dor, mas alguns que contém uma esperança que não cessa, vontade de viver que nos deixa espevitados. Única!
Beleza
Devorei o texto, a alma já devoradamente conhecida desde a adolescência quando vi pela primeira vez a foto de uma mulher com olhos de cigana oblíqua, como dizia Machado de Assis, olhando pra mim e me pedindo para lê-la e nunca entendê-la, mas, compartilhar a sua fonte de entendimento das coisas que era esta mesma que muita gente, inclusive eu mesmo, bebe para alimentar uma sede que está depois do copo d'água, a sede de provar que o que bebemos foi uma solução de H2O que é parte da nossa própria composição, portanto, bebi a mim mesmo...ela tinha a fome e a sede universal e a comida e a água que todos precisamos depois da fome e da sede...enfim...Nunca entenderemos ou explicaremos este fenômeno existencial da literatura brasileira. Uma pessoa que como todos nós, não cabe em palavras, teses ou estudos científicos. Alma é um conglomerado de vibrações manifestadas pouco a pouco em cada um dos 300 bilhões ou mais de neurônios que carregamos na nossa bela caixinha de pensar, a qual demos o nome de cérebro. Texto CONTAMINADOR, VIRAL!
leio e releio do que já li e reli
Belas informações meu grande amigo Antonio Nahud.
Meus alunos, embora adolescentes, participaram desse mistério e fascínio!!!
Amei muito e li dela tudo quanto pude. Hoje em dia, há um excesso de interesse na teoria literária (especialmente sob ângulo feminino) e os "clariceanos" acabam sendo repetitivos, cansativos. Mas penso que Clarice pouco se importaria com ser um triunfo acadêmico, estava interessada era numa pesquisa radical do Ser. E por isso ainda é muito bom lê-la.
Excelente texto sobre esta maravilhosa escritora Clarice Lispector.... Uma escrita com Alma para a Alma
Muito boa!!!O primeiro dela que eu li na adolescência,foi:A paixão segundo GH.Pirei!!!
Lindíssima e misteriosa
Perfeito!
Escritora linda e talentosa... adoro!!! Bjo Nahud!
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