setembro 20, 2015

........................ CLARICIANAS: no CORAÇÃO das COISAS


Dizia o mineiro Guimarães Rosa que se lê CLARICE LISPECTOR (1920 - 1977) “para a vida, para viver”. Ao mesmo tempo em que ousava desvelar as profundezas de sua alma em escritos, ela costumava evitar declarações íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Parecia Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf. Autora de uma escrita estranha, de uma narrativa de uma beleza que dói.

Escreveu romances, crônicas, histórias infantis, contos. Indagou as questões da condição humana, como o amor, o nascimento, a morte, o desejo, a vida, o ato de escrever, o silêncio, a indignação. Como bem descreve Caetano Veloso ao falar sobre o sentimento que a sua leitura provoca: “perfeitos momentos da literatura brasileira moderna, perfeitos momentos da vida nas palavras, perfeitos momentos.”

Lembro-me quando comecei a ler CLARICE LISPECTOR. Pensei: ninguém escreve como ela. Literatura aberta e multifacetada que permite plurais interpretações. De origem ucraniana, a escritora estreou aos 23 anos, em 1943, com o premiado romance “Perto do Coração Selvagem”. Na busca pela melhor forma de escrever sobre os assuntos que lhe interessavam, utilizou recursos como o fluxo de consciência, e criou uma sintaxe peculiar e inovadora.

Sua obra figura entre as mais importantes da narrativa literária brasileira e universal. Influenciada por autores como Franz Kafka, James Joyce e Virginia Woolf, deixa transbordar intimismo visceral e possui dimensão filosófica que atrai psicanalistas, críticos, filósofos e outros leitores. Autora dos clássicos “A Paixão Segundo G.H.” (1964) e “A Hora da Estrela” (1977), entre outros.


Nos últimos anos de vida estava bastante fraca. Andava anotando coisas em pedacinhos de papel, cheques, guardanapos e até mesmo maços de cigarros. Sofrera muito com as sequelas do incêndio que quase lhe custara a mão com que escrevia. Faleceu aos 57 anos, em 1977. Ao contrário do que acontece com muitos escritores, seus livros não foram esquecidos e seguem por aí, sendo reeditados e fascinando leitores em todo o mundo.

Livros e mais livros analisam sua escrita, e seu pensamento visceral. Frases, textos e trechos de sua intensa produção circulam pela Internet. CLARICE LISPECTOR ainda está viva, pois, como ela disse, “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever”. No entanto, devido ao seu caráter multifacetário e seu universo de olhares, formatos e interpretações, há muito fragmento e citação dela mal utilizados. Ela está sendo mal lida, lida em pedaços, numa esnobação involuntária aos seus livros complexos.

A escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continua sendo um mistério para seus admiradores, ainda que textos confessionais possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.


CLARICIANAS

“Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama.”
— em “Água Viva”.

“Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.”
— em “Aprendendo a Viver”.

“Sou uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também alguma recompensa.”
- em preambulo de entrevista com Pablo Neruda, 1966.

foto de analu prestes
“O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.”
— em “Água Viva”.

“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade. […] Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
— em “Aprendendo a Viver”.

“Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade.”
— em “Aprendendo a Viver”.

foto de analu prestes
 “Sou tão misteriosa que não me entendo.”
— em “Aprendendo a Viver”.

“É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve.”
— em “Onde Estivestes de Noite”.

“Assim a falta de desejo dava silêncio ao coração do homem. Procurou a sua própria fome: mas era o silêncio quem lhe respondia. Ele estava experimentando o que era pior que tudo: não querer mais. O primeiro momento foi muito ruim, mal calculou ele que não querer era tantas vezes a forma mais desesperada de querer.”
- em “A Maçã no Escuro”.


“Não tenho medo nem das chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas. Pois eu também sou o escuro da noite.”
— em “A Hora da Estrela”.

“É preciso parar. Estou com saudades de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu? Preciso fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim – enfim, mas que medo – de mim mesma.”
- em “A Descoberta do Mundo”.

“Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.”
— em “A Descoberta do Mundo”.


“Não ter nenhum segredo - e no entanto manter o enigma”
- em “Onde Estivestes de Noite”.

“De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.”
— em “Um Sopro de Vida”.

“Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver.”
— em carta a uma amiga, 1947.

foto de analu prestes
“Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.”
— em “A Hora da Estrela”.

“Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.”
— em “A Paixão Segundo G.H”.

“É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.”
— em “A Paixão Segundo G.H”.

foto de analu prestes
“Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior.”
- em “A Paixão segundo G.H”.

“O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte.”
- em trecho da crônica “O Nascimento do Prazer”.

“Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.
— em “Perto do Coração Selvagem”.


“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.”
— em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”.

“Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.”
— em “Aprendendo a Viver”.

“E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.”
— em “A Hora da Estrela”.


“Não quero a meia-luz, não quero a cara benfeita, não quero o expressivo. Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.”
- em “A Paixão Segundo G.H”.

“É sempre assim que acontece – quando a gente se revela, os outros começam a nos desconhecer.”
- em “A Maçã no Escuro”.

“Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.”
— último bilhete, escrito no hospital da Lagoa, Rio de Janeiro, em 7.12.1977.

foto de analu prestes
OBRA DE CLARICE LISPECTOR

ROMANCE

PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM. 1944.
O LUSTRE. 1946.
A CIDADE SITIADA. 1949.
A MAÇÃ NO ESCURO. 1961.
A PAIXÃO SEGUNDO G.H. 1964.
UMA APRENDIZAGEM OU LIVRO DOS PRAZERES. 1969.
ÁGUA VIVA. 1973.
A HORA DA ESTRELA. 1977.
UM SOPRO DE VIDA. 1978.

CONTOS

ALGUNS CONTOS. 1952.
MISTÉRIO EM SÃO CRISTÓVÃO. 1952.
LAÇOS DE FAMÍLIA. 1960.
A LEGIÃO ESTRANGEIRA. 1964.
FELICIDADE CLANDESTINA. 1971.
A IMITAÇÃO DA ROSA. 1973.
A VIA CRUCIS DO CORPO. 1974.
ONDE ESTIVESTES DE NOITE? 1974.
A BELA E A FERA. [Publicação Póstuma]1979.

INFANTO-JUVENIL

O MISTÉRIO DO COELHO PENSANTE. UMA ESTÓRIA POLICIAL PARA CRIANÇAS. 1967.
A MULHER QUE MATOU OS PEIXES. DESENHOS DE CARLOS SCLIAR. 1968.
A VIDA ÍNTIMA DE LAURA. 1974.
QUASE DE VERDADE. [Publicação Póstuma], 1978.
COMO NASCERAM AS ESTRELAS. [Publicação Póstuma], 1987.

foto de analu prestes
CORRESPONDÊNCIA

CARTAS PERTO DO CORAÇÃO / FERNANDO SABINO, CLARICE LISPECTOR. [Organização Fernando Sabino]. 2001.
CORRESPONDÊNCIA - CLARICE LISPECTOR. [organização Teresa Cristina Montero]. 2002.

CRÔNICA

VISÃO DO ESPLENDOR. Impressões Leves. 1975.
PARA NÃO ESQUECER. [Publicação Póstuma] 1978.
A DESCOBERTA DO MUNDO. [Publicação Póstuma]. 1984.

ENTREVISTA

DE CORPO INTEIRO. 1975.
A ÚLTIMA ENTREVISTA DE CLARICE LISPECTOR. 1992.

 

19 comentários:

Marlon Marcos disse...

Minha enorme Clarice,
Tantos dizeres, mas, melhor, tanto silêncio e beleza!
O que aspiro. Respiro em literatura.

Joviniano Netto disse...

Eterna Lispector!

Roberta da Cunha disse...

"[...] há muito fragmento e citação dela mal utilizados. Ela está sendo mal lida, lida em pedaços, numa esnobação involuntária aos seus livros complexos." muito bom!

Augusto B. Medeiros disse...

Belezas....

Jorge Luiz Fonseca disse...

Essa emociona. Seus livros. Seu jeito de ser. Seu jeito de falar. De fumar. Era enigmática. Profunda. Linda. Pena ter ido tão cedo.

Anna C. Porto disse...

Existem pessoas realmente iluminadas!! Ela foi uma delas!

Ivan Pessoa disse...

Relata o monge beneditino David Steindl-Rast, que quando criança sua brincadeira preferida era fitar os olhos de seu primo, sem piscar, ou seja, até lacrimejar. Segundo ele, em uma dessas ocasiões, através daqueles olhos infantis, teve a primeira experiência daquilo que Maslow chama de: 'experiências extremas ou místicas.' Em linhas gerais, através da retina de seu primo, o monge viu Deus. Não seria isso a religião enquanto experiência: ver através dos olhos, em meio à tanta cegueira? Daí a conclusão do monge: "Você deve estar presente para que eu possa me encontrar." Por fim, vendo estas fotos de Clarice - segura e igualmente ferina, com olhos búdicos; como a pantera rilkeana, sempre à espreita - pude confirmar a experiência do monge. Quem tem olhos de ver,veja

Caroline Chaves disse...

Já li todos de Clarice é um misto de poema e dor, mas alguns que contém uma esperança que não cessa, vontade de viver que nos deixa espevitados. Única!

Luiz Barbosa disse...

Beleza

Sergio Ricardo Prazeres Brandao disse...

Devorei o texto, a alma já devoradamente conhecida desde a adolescência quando vi pela primeira vez a foto de uma mulher com olhos de cigana oblíqua, como dizia Machado de Assis, olhando pra mim e me pedindo para lê-la e nunca entendê-la, mas, compartilhar a sua fonte de entendimento das coisas que era esta mesma que muita gente, inclusive eu mesmo, bebe para alimentar uma sede que está depois do copo d'água, a sede de provar que o que bebemos foi uma solução de H2O que é parte da nossa própria composição, portanto, bebi a mim mesmo...ela tinha a fome e a sede universal e a comida e a água que todos precisamos depois da fome e da sede...enfim...Nunca entenderemos ou explicaremos este fenômeno existencial da literatura brasileira. Uma pessoa que como todos nós, não cabe em palavras, teses ou estudos científicos. Alma é um conglomerado de vibrações manifestadas pouco a pouco em cada um dos 300 bilhões ou mais de neurônios que carregamos na nossa bela caixinha de pensar, a qual demos o nome de cérebro. Texto CONTAMINADOR, VIRAL!

Edna Saldanha disse...

leio e releio do que já li e reli

Ulisses Soares Marinho disse...

Belas informações meu grande amigo Antonio Nahud.

Wilma Regina Ciasca disse...

Meus alunos, embora adolescentes, participaram desse mistério e fascínio!!!

Chico Lopes disse...

Amei muito e li dela tudo quanto pude. Hoje em dia, há um excesso de interesse na teoria literária (especialmente sob ângulo feminino) e os "clariceanos" acabam sendo repetitivos, cansativos. Mas penso que Clarice pouco se importaria com ser um triunfo acadêmico, estava interessada era numa pesquisa radical do Ser. E por isso ainda é muito bom lê-la.

Clara Maia disse...

Excelente texto sobre esta maravilhosa escritora Clarice Lispector.... Uma escrita com Alma para a Alma

Carlos Roberto Lima disse...

Muito boa!!!O primeiro dela que eu li na adolescência,foi:A paixão segundo GH.Pirei!!!

Clara Maia disse...

Lindíssima e misteriosa

Margarete Da Costa Andrade disse...

Perfeito!

Lucelia Alves disse...

Escritora linda e talentosa... adoro!!! Bjo Nahud!