janeiro 03, 2016

......................................... JEAN GENET: SEXO, TRAIÇÃO e CRIME



Ilustrações:
LEONOR FINI


Rotulado ainda hoje como maldito, JEAN GENET (1910 - 1986) é um dos maiores escritores da França. Ele faleceu num pequeno hotel parisiense e, por sua vontade, documentada em testamento, foi enterrado no discreto cemitério de Larache, no Marrocos, com vista para a casa do seu último amante, Mohamed El-Katrani, entre túmulos de jovens soldados da Legião Estrangeira. O autor de “As Criadas” (peça teatral escrita em 1947, publicada em 1954) conheceu pela primeira vez o país marroquino na década de 1950, passando a visitá-lo frequentemente até à sua morte. 

Abalando a consciência social e a fragilidade do sistema de valores da sociedade burguesa, sua literatura aborda temas como assassinato, roubo, traição, sexo, homossexualidade, poder e perversão, e impressionou Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault. Durante muitos anos foi o meu escritor favorito. Até batizei um felino, em Barcelona, com o seu sobrenome. Li toda sua obra e, com o passar do tempo, terminei por esquecê-lo. Neste verão baiano, reencontrei ao acaso o magistral romance “Querelle de Brest” (1947), filmado belamente pelo alemão Rainer Werner Fassbinder em 1982, reacendendo o antigo fascínio.

Em 1998, visitei a sepultura do polêmico escritor, sob o sol ardente de uma tarde de outono e a visão idílica de um mar azulado. Não havia mais ninguém, nem sombra dos mitômanos que costumam atravessar meio mundo para homenageá-lo com masturbações. Inesperadamente, surgiu uma mulher vestida com uma burca negra, revelando olhos penetrantes. Logo desapareceu em silêncio, fazendo-me lembrar-se de um relato de JEAN GENET sobre um encontro num trem, numa incrível capacidade de transformar o banal em inquietante poesia: “olhando um viajante sentado diante de mim, tive a revelação de que qualquer homem pode ser outro. Seu olhar não era dele: era o meu que eu encontrava em um espelho, sem me advertir e em plena solidão e esquecimento de mim mesmo. Saí do meu corpo, e pelos olhos, entrei no corpo do viajante, ao mesmo tempo em que o viajante tomava posse do meu”. Por fim, li um poema em voz alta e gozei, partindo de volta a Tanger.

A mitologia pessoal de JEAN GENET é marcada por escândalos, roubos, prostituição, vagabundagem, brigas, anti-semitismo e rixas políticas. Ainda assim, não sufocou a criação lúcida e poética, consagrada em textos teatrais, romances, poemas, autobiografia e ensaios sobre Alberto Giacometti, Rembrandt e Fiodor Dostoievski - incluindo uma formidável realização cinematográfica, “Chant d’Amour” (1950), cuja distribuição comercial nunca autorizou. Os seus primeiros trabalhos chamaram a atenção e receberam elogios de Jean Cocteau, mas foi através da influência de Jean-Paul Sartre que ficou famoso. 

jean genet
Condenado, por crime de morte, à prisão perpétua, obteve o perdão em 1948 graças aos esforços de ilustres artistas, como Pablo Picasso. Tornou-se amigo de outras importantes figuras do seu tempo, como os filósofos Jacques Derrida e Michel Foucault, o escritor Alberto Moravia, os compositores Igor Stravinski e Pierre Boulez, o diretor de teatro Roger Blin, os pintores Leonor Fini e Christian Bérad, os líderes políticos Georges Pompidou e François Mitterrand. Nomes cujo convívio reforçou a certeza de sua importância como autor.

Filho de uma prostituta, de pai desconhecido e educado por camponeses de Morvan, na Borgonha, JEAN GENET conheceu desde a infância os mais sórdidos aspectos da sociedade. Abandonou a família adotiva aos dez anos. Flagrado roubando, passou a adolescência e boa parte da juventude em reformatórios e prisões, onde afirmou a sua orientação sexual. Conseguiu fugir e alistar-se na temida Legião Estrangeira, de onde foi expulso por desonra, após ter sido surpreendido fazendo sexo com um recruta. Escritor notável e controverso, transformou uma existência de miséria, humilhação e sofrimento extremo em literatura de incontestável qualidade. 

Em 1942, abalou a moral burguesa com um poema elaborado no cárcere, “O Condenado à Morte”, um canto de amor ao amante-bandido Lucien Sénémaud, misturando erotismo, ciúme, paixão e deslealdade. Continuou provocando alvoroço com “Nossa Senhora das Flores” (1944), “O Milagre da Rosa” (1946), “Querelle de Brest”, “Pompas Fúnebres” (1948), “Poemas” (1948) e as memórias “Diário de Um Ladrão” (1949), onde narra as suas aventuras e andanças pela Europa, as suas paixões e sentimentos. 


Embora publicado inicialmente por editoras alternativas e com divulgação restrita, seu nome correu de boca em boca, graças a uma obra que conjuga beleza, sexo, traição e morte – valores sublimes da sua estética literária. O processo de distribuição de seus livros foi marcado, entretanto, por proibições e vetos constantes. Em 1964, o departamento de Estado dos EUA se recusou a dar um visto a JEAN GENET por motivos de desvio sexual. Este, entre outros tantos eventos ligados ao escritor e a sua obra, incitaram ainda mais a procura pelos seus textos e reafirmaram seu papel transgressor.

Apresentando o sexo despido de sensualidade e exaltando as virtudes de criminosos, violentos e covardes, sua magnificência literária encantou o célebre filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, que escreveu “Saint Genet, Ator e Mártir” (1952), expondo o escritor marginalizado na vida mundana. Esmagado pelo livro, fotografado pelo lendário Brassaï, entrevistado inúmeras vezes e acompanhante da pintora Leonor Fini em festas badaladas, JEAN GENET terminou por naufragar numa crise, interrompendo a escrita por vários anos. Ele se sentiu incorporado a uma sociedade que desprezava.

Desiludido, entregou-se a um relacionamento amoroso insano com um formoso italiano, Decimo Christiani, tuberculoso e prostituído, que conheceu numa sauna em Roma. Apaixonado, inventou um filme, “Le Bagne”, com o amado enfermo como protagonista. Não conseguindo concretizar o projeto, escreveu “Carta Aberta a Decimo”, direcionada para a revista norte-americana “New Story” e jamais publicada. Abandonado, melancólico e desesperado, esboçou uma obra nunca escrita totalmente, mas sonhada e anunciada: “Infernos” (publicada incompleta, postumamente). A ideia, ambiciosa, versava sobre a simbologia universal, o seu Eu e a ética na arte. Superando códigos morais e atravessando honestamente o “território do mal”, escreveu: “Uma vida de homem inclui alguns instantes de luz. O resto está voltado ao sombrio”.

Autor da impactante peça de teatro “As Criadas”, JEAN GENET pediu que os personagens – femininos – fossem interpretados por atores. Redescobriu a dramaturgia na segunda metade dos anos 1950 ao se enamorar do ator Pierre Joly, aprofundando um estilo expressionista de denúncias sobre os preconceitos políticos e sociais, que firmaram seu temperamento anárquico e rebelde. Escreveu “O Balcão” (1956) - que teve uma montagem de grande sucesso no teatro brasileiro, encenada pelo diretor argentino Victor Garcia, numa cenografia peculiar e inovadora, em 1969; “Os Negros” (1958) e “Os Biombos” (1961), entregando-se novamente ao silêncio literário, quebrado apenas por um longo poema político escrito no ano de sua morte: “Le Captif Amoureux” (1986). 


Amargo, quando questionado sobre sua homossexualidade, dizia: “É uma estética da morte que nega o mundo e se destina à esterilidade. Nós, as bichas, somos fadas não do nascimento, mas da morte”. Ele teve muitos amantes, além dos já citados, o piloto de automóveis Jacky Maglia, e os árabes Ahmed Lahoussine e Abdallah Bentaga, entre outros. Abdallah, equilibrista de circo, após acidente que o deixou incapacitado para o exercício da sua arte, suicidou-se em 1964. Inconformado, o escritor tentou se matar, ingerindo o sonífero Nembutal.

Atravessou a década de 1960 colhendo frutos do sucesso dos seus romances e peças. A partir dos anos 1970 e até a sua morte, defendeu a independência argelina, empenhou-se na defesa de trabalhadores imigrantes na França, assumiu a causa dos palestinos e envolveu-se com líderes de movimentos como Panteras Negras e Baader-Meinhof. A sua má reputação revoltou muita gente. Ele era fascinado por fardas, fossem de policiais ou soldados, ou mesmo dos SS nazis. 


Considerado anti-semita e atraído pelo fascismo, JEAN GENET provocou simpatias e ódios. Resultado de atormentada existência e oposto a todas as normas e convenções, tendo elegido como suas virtudes principais o roubo, a traição e a homossexualidade; admirador de criminosos e terroristas; há, todavia, uma certeza: é um dos maiores escritores da história da literatura. Em 1983 foi-lhe concedido um dos mais importantes prêmios literários franceses, o Grande Prêmio Nacional.

Difícil definir sua personalidade contraditória, inspiradora e pragmática, cuja intimidade ou simples convivência social, nos últimos anos de vida, tornou-se praticamente insuportável, mesmo para os amigos mais dedicados. As causas que sustentou, as mentiras que inventou (muitas vezes gratuitamente), as incoerências e as posições políticas que defendeu, contribuíram para uma biografia nebulosa. 

Vagabundo, ladrão, prostituto, mendigo, presidiário, JEAN GENET sofreu no corpo e no espírito experiências terríveis e degradantes. A sua vida constitui talvez o itinerário mais absurdo de qualquer homem de letras do século XX. Mas a sua extraordinária literatura, de uma explícita crueza unida a um profundo lirismo, dando voz aos excluídos e marginalizados, merece muitos leitores.

 "QUERELLE DE BREST" por JEAN COCTEAU



 

7 comentários:

Berenice Murta disse...

Ai, pirei. Sou fã do teatro de Genet. Matéria incrível! Obrigada.

Maria Jose Saffi Boso disse...

Grande escritor

Bettina Mueller disse...

"Mais être bonne quand on est Bonne..." Controverso mas competente escritor francês. Dou especial destaque às suas peças do Teatro do Absurdo.

Ayrton Alves disse...

Amo a obra do Genet.

Paulo Mangini disse...

Magnífico Genet!

Clara Pacheco disse...

Excelente texto sobre este maravilhoso escritor

Anônimo disse...

Muito bom. Adorei também os desenhos de Cocteau.