O amor não é uma virtude, é um vício,
e são os vícios que fazem a vida valer a pena.
JEAN GENET
Ilustrações:
LEONOR FINI
Rotulado
ainda hoje como maldito, JEAN GENET (1910 - 1986. Paris / França) é um dos maiores escritores da França. Ele faleceu
num pequeno hotel parisiense e, por sua vontade, documentada em testamento, foi
enterrado no discreto cemitério de Larache, no Marrocos, com vista para a casa
do seu último amante, Mohamed El-Katrani, entre túmulos de jovens soldados da
Legião Estrangeira. O autor de “As Criadas” (peça teatral escrita em 1947,
publicada em 1954) conheceu pela primeira vez o país marroquino na década de
1950, passando a visitá-lo até à sua morte. Abalando a
consciência social e o sistema de valores da sociedade burguesa,
sua literatura aborda temas como assassinato, roubo, traição, sexo, homossexualidade,
poder e perversão, e impressionou Jean Cocteau e Jean-Paul Sartre. Durante muitos anos foi o meu escritor favorito. Até batizei um
felino, em Barcelona, com o seu sobrenome. Li toda sua obra e, com o passar do
tempo, terminei por esquecê-lo. Neste verão, reencontrei ao acaso o magistral
romance “Querelle de Brest” (1947), filmado pelo alemão Rainer Werner
Fassbinder em 1982, reacendendo o antigo fascínio.
Em
1998, visitei a sepultura do polêmico escritor, sob o sol ardente de uma tarde
de outono e a visão idílica de um mar azulado. Não havia mais ninguém, nem
sombra dos mitômanos que atravessam meio mundo para homenageá-lo com
masturbações. Inesperadamente, surgiu uma mulher com uma burca negra. Logo desapareceu em silêncio, fazendo-me lembrar-se de um
relato de JEAN GENET sobre um encontro num trem, numa incrível capacidade de transformar
o banal em inquietante poesia: “olhando um viajante sentado diante de mim, tive
a revelação de que qualquer homem pode ser outro. Seu olhar não era dele: era o
meu que eu encontrava em um espelho, sem me advertir e em plena solidão e
esquecimento de mim mesmo. Saí do meu corpo, e pelos olhos, entrei no corpo do
viajante, ao mesmo tempo em que o viajante tomava posse do meu”. Por fim, li um
poema em voz alta, partindo de volta a Tanger. A mitologia
pessoal de JEAN GENET é marcada por escândalos, roubos, prostituição,
vagabundagem, brigas, anti-semitismo e rixas políticas. Ainda assim, não
sufocou a criação lúcida e poética, consagrada em textos teatrais, romances, poemas,
autobiografia e ensaios sobre Giacometti, Rembrandt e Dostoievski - incluindo uma realização cinematográfica, “Chant
d’Amour” (1950), cuja distribuição nunca autorizou. Os seus primeiros trabalhos receberam elogios de Jean Cocteau, mas foi através de
Jean-Paul Sartre que ficou famoso.
jean genet |
Condenado, por crime de morte, à prisão
perpétua, obteve o perdão em 1948 graças aos esforços de ilustres artistas,
como Pablo Picasso. Tornou-se amigo de outras importantes figuras do seu tempo,
como os filósofos Jacques Derrida e Michel Foucault, o escritor Alberto
Moravia, os compositores Igor Stravinski e Pierre Boulez, o diretor de teatro
Roger Blin, os pintores Leonor Fini e Christian Bérad, os líderes políticos
Georges Pompidou e François Mitterrand. Nomes cujo convívio reforçou a certeza de sua importância
como autor.
Filho
de uma prostituta, de pai desconhecido e educado por camponeses de Morvan, na
Borgonha, JEAN GENET conheceu desde a infância os mais sórdidos aspectos da
sociedade. Abandonou a família adotiva aos dez anos. Flagrado roubando, passou
a adolescência e boa parte da juventude em reformatórios e prisões, onde
afirmou a sua orientação sexual. Conseguiu fugir e alistar-se na temida Legião
Estrangeira, de onde foi expulso por desonra, após ter sido surpreendido fazendo
sexo com um recruta. Escritor notável e controverso, transformou uma existência
de miséria, humilhação e sofrimento extremo em literatura de incontestável
qualidade. Em 1942, abalou a moral burguesa com um poema elaborado no cárcere,
“O Condenado à Morte”, um canto de amor ao amante-bandido Lucien
Sénémaud, misturando erotismo, ciúme, paixão e deslealdade. Continuou
provocando alvoroço com “Nossa Senhora das Flores” (1944), “O Milagre da Rosa”
(1946), “Querelle de Brest”, “Pompas Fúnebres” (1948), “Poemas” (1948) e as
memórias “Diário de Um Ladrão” (1949), onde narra as suas aventuras e andanças
pela Europa, as suas paixões e sentimentos.
Embora publicado inicialmente por
editoras alternativas e com divulgação restrita, seu nome correu de boca em
boca, graças a uma obra que conjuga beleza, sexo, traição e morte – valores
sublimes da sua estética literária. O processo de distribuição de seus livros
foi marcado, entretanto, por proibições e vetos constantes. Em 1964, o
departamento de Estado dos EUA se recusou a dar um visto a JEAN GENET por
motivos de desvio sexual. Este, entre outros tantos eventos ligados ao escritor
e a sua obra, incitaram ainda mais a procura pelos seus textos e reafirmaram seu
papel transgressor. Apresentando
o sexo despido de sensualidade e exaltando as virtudes de criminosos, violentos
e covardes, sua magnificência literária encantou o célebre filósofo existencialista
Jean-Paul Sartre, que escreveu “Saint
Genet, Ator e Mártir” (1952), expondo o escritor marginalizado na vida mundana.
Esmagado pelo livro, fotografado pelo lendário Brassaï, entrevistado inúmeras vezes e acompanhante
da pintora Leonor Fini em festas, JEAN GENET naufragou
numa crise, interrompendo a escrita por vários anos. Ele se sentiu incorporado a
uma sociedade que desprezava.
Desiludido, entregou-se a um relacionamento
amoroso insano com um formoso italiano, Decimo Christiani, tuberculoso e
prostituído, que conheceu numa sauna em Roma. Apaixonado, inventou um filme, “Le
Bagne”, com o amado enfermo como protagonista. Não conseguindo concretizar o
projeto, escreveu “Carta Aberta a Decimo”, direcionada para a revista
norte-americana “New Story” e jamais publicada. Abandonado, melancólico
e desesperado, esboçou uma obra nunca escrita totalmente, mas sonhada e
anunciada: “Infernos” (publicada incompleta,
postumamente). A ideia, ambiciosa, versava sobre a simbologia universal, o seu
Eu e a ética na arte. Superando códigos morais e atravessando honestamente o
“território do mal”, escreveu: “Uma vida de homem inclui alguns instantes de
luz. O resto está voltado ao sombrio”.
Autor
da impactante peça de teatro “As Criadas”, JEAN GENET pediu que os personagens
– femininos – fossem interpretados por atores. Redescobriu a dramaturgia na
segunda metade dos anos 1950 ao se enamorar do ator Pierre Joly, aprofundando
um estilo expressionista de denúncias sobre os preconceitos políticos e
sociais, que firmaram seu temperamento anárquico e rebelde. Escreveu “O Balcão”
(1956) - que teve uma montagem de sucesso no teatro brasileiro, encenada
pelo argentino Victor Garcia, numa cenografia inovadora, em 1969; “Os Negros” (1958) e “Os Biombos”
(1961), entregando-se novamente ao silêncio literário, quebrado apenas por um longo poema político escrito no
ano de sua morte: “Le Captif Amoureux” (1986).
Amargo, quando questionado sobre
sua homossexualidade, dizia: “É uma estética da morte que nega o mundo e
se destina à esterilidade. Nós, as bichas, somos fadas não do nascimento, mas
da morte”. Ele teve muitos amantes, além dos já citados, o piloto de automóveis
Jacky Maglia, e os árabes Ahmed Lahoussine e Abdallah Bentaga, entre outros.
Abdallah, equilibrista de circo, após acidente que o deixou incapacitado para o
exercício da sua arte, suicidou-se em 1964. Inconformado, o escritor tentou se
matar, ingerindo o sonífero Nembutal. Atravessou
a década de 1960 colhendo frutos do sucesso dos seus romances e peças. A partir
dos anos 1970 e até a sua morte, defendeu a independência argelina e os imigrantes na França, envolveu-se com a causa palestina e movimentos como Panteras Negras e Baader-Meinhof.
A sua má reputação revoltou muita gente. Ele era fascinado por fardas, fossem
de policiais ou soldados, ou mesmo dos SS nazis.
Considerado anti-semita e
atraído pelo fascismo, JEAN GENET provocou simpatias e ódios. Resultado de
atormentada existência e oposto a todas as normas e convenções, tendo elegido
como suas virtudes principais o roubo, a traição e a homossexualidade; admirador
de criminosos e terroristas; há, todavia, uma certeza: é um dos maiores escritores da história da
literatura. Em 1983
foi-lhe concedido um dos mais importantes prêmios literários franceses, o
Grande Prêmio Nacional. Difícil
definir sua personalidade contraditória, inspiradora e pragmática, cuja intimidade
ou simples convivência social, nos últimos anos de vida, tornou-se
praticamente insuportável, mesmo para os amigos mais dedicados. As causas que
sustentou, as mentiras que inventou, as incoerências
e as posições políticas que defendeu, contribuíram para uma biografia nebulosa. Vagabundo, ladrão, prostituto, mendigo, presidiário, JEAN GENET sofreu no corpo
e no espírito experiências degradantes. A sua vida constitui talvez
o itinerário mais absurdo de qualquer homem de letras do século XX. Mas a sua
extraordinária literatura, de uma explícita crueza unida a um profundo lirismo,
dando voz aos excluídos e marginalizados, merece leitores.
“QUERELLE DE BREST” por JEAN COCTEAU
9 comentários:
Ai, pirei. Sou fã do teatro de Genet. Matéria incrível! Obrigada.
Grande escritor
"Mais être bonne quand on est Bonne..." Controverso mas competente escritor francês. Dou especial destaque às suas peças do Teatro do Absurdo.
Amo a obra do Genet.
Magnífico Genet!
Excelente texto sobre este maravilhoso escritor
Muito bom. Adorei também os desenhos de Cocteau.
Entrar neste blogger foi reviver minha juventude. Meu melhor escritor: Genet. Muito obrigado pelo texto. Lindo!!
Jean Genet é uma maravilha! Por exemplo: ninguém compreendeu Rembrandt melhor do que ele. Este texto está lindo, parabéns!
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