setembro 01, 2022

........................... KONSTANTÍNOS KAVÁFIS: DESEJO e HISTÓRIA

 

Esculturas:
FÍDIAS
(480 a.C. - 430 a.C. Atenas, Grécia)
LÍSIPO
(390 a.C. – 300 a.C. Sicião, Grécia)
PRAXITELES
(395 a.C.- 330 a.C. Atenas, Grécia)
 
 
Considerado o maior nome da poesia em idioma grego moderno, em vida não publicou nenhum livro. Seus poemas eram distribuídos em folhas soltas ou, então, publicados em revistas literárias. Nascido em uma comunidade grega em Alexandria (Egito), KONSTANTÍNOS KAVÁFIS (1863 – 1933) produziu versos entre o particular e o histórico, representando tanto a tradição quanto as próprias subjetividade e revelando uma percepção muito particular da memória: não só a histórica, mas a íntima, a memória do corpo, do desejo homoerótico velado, da beleza sensual da juventude e da potência criadora da arte.
 

Sensível, sensorial e sensual, o poeta conviveu com a pobreza e o desconforto. Tendo trabalhado durante 30 anos na Bolsa de Valores Egípcia, morou em Alexandria até à sua morte, que ocorreu por motivo de câncer da laringe. Faleceu no dia do seu aniversário, 29 de abril. Seu último gesto foi desenhar um círculo numa folha branca e depois colocar um ponto no meio do círculo. Ao longo da vida, escreveu 154 poemas, os quais, por hábito, numerava. Todas eles com boa circulação em português, sendo traduzidos por nomes de prestígio como Haroldo de Campos e José Paulo Paes.
 
Uma das características mais fortes da sua poesia é o diálogo entre o passado e o presente. A beleza e a tragicidade da arte grega convivendo com o prazer de um eros pulsante e a melancolia de um corpo que envelhece. Original e influente, KONSTANTÍNOS KAVÁFIS tem um lugar duradouro na tradição literária, entre outras razões, pela sua franca abordagem dos temas homossexuais, o esotérico sentido de história e a criação de um mundo ricamente mítico.

18 POEMAS de KAVÁFIS

01
LEMBRA, CORPO…
 
Corpo, lembra não só o quanto foste amado,
não só os leitos em que deitaste,
mas também os desejos que por ti
brilhavam nos olhos, claros,
e tremiam na voz – e alguma
barreira do acaso os frustrou.
Agora que tudo já é passado,
parece que àqueles desejos
também te entregaste – como brilhavam,
lembra, nos olhos que te fitavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.
 
02
INÍCIOS
 
Por completo o ilegal prazer
se deu. Do leito se levantam,
e com pressa vestem-se sem nada dizer.
Saem desunidos, escondidos, da casa; e seguem
assim inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles denunciasse
em que tipo de cama há pouco deitaram-se.
 
Mas a vida do artista se enriquece
Amanhã, no outro dia, anos mais tarde, serão escritos
os versos fortes que tiveram aqui seus inícios.
 

03
VITRINE de TABACARIA
 
Perto da vitrine iluminada
de uma tabacaria pararam em meio a muitos outros.
Por acaso, seus olhares se encontraram
e o ilegal desejo das suas carnes
se revelou timidamente, hesitante.
Depois, alguns passos ansiosos pela calçada
até que sorriram e trocaram acenos discretos.
 
E depois, na carruagem fechada…
O sensual aproximar de corpos;
as mãos que se penetram, os lábios que se penetram.
 
04
LONGE
 
Quisera referir essa lembrança…
Mas já se apagou tanto… visto que nada se mantém –
pois longe, nos primeiros anos de minha adolescência, ela jaz.
 
Uma pele como feita de jasmim…
Aquela noite de agosto – era agosto? – aquela noite…
Mal me lembro agora dos olhos – eram, creio, azuis…
Ah! sim, azuis: um azul de safira.
 

05
VOLTA
 
Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me –
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.
 
Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.
 
06
O ESPELHO da ENTRADA
 
À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.
 
Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atletas diletante)
estava ali com um pacote.
 
Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.
 
Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.
 
Mas o antigo espelho que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.
 

07
DESEJOS
 
Como belos corpos de mortos que não envelheceram
e foram encerrados, com lágrimas, em magnífico mausoléu,
com rosas nas cabeças e jasmins nos pés –
assim se lhes assemelham os desejos que passaram
sem se realizar, sem que nenhum
alcançasse uma noite de prazer, ou sua manhã luminosa.
 
08
TANTO CONTEMPLEI
 
Tanto contemplei a beleza
que minha vista dela se fartou.
Linhas do corpo. Lábios rubros. Membros sensuais.
Cabelos como que tomados de estátuas gregas:
sempre belos, mesmo quando estão despenteados,
e caem, um pouco, sobre a fronte branca.
Rostos do amor, assim como os desejava
minha poesia… nas noites de minha juventude,
em minhas noites, às ocultas, encontrados…


09
QUANTO POSSAS
 
E se não podes fazer tua vida como a queres,
esforça-te pelo menos nisto,
quanto possas: não a degrades
na convivência demasiada com as pessoas,
nos demasiados movimentos e colóquios.
Não a degrades levando-a,
trazendo-a frequentemente e expondo-a
à estupidez cotidiana
das relações e das companhias,
até que se torne pesada como uma estranha.
 
10
As JANELAS
 
No escuro do habitáculo eu passo
a depressão dos dias e meus passos
buscam janelas. Quando abrir-se uma
delas, peço ao fulgor que me consuma.
Mas a janela não há, ou não consigo
vê-la. Que fique ausente, a sós, consigo!
Talvez a luz tão-só renove a dor.
Quem sabe a nova que ela irá me impor?
 

11
DESLEALDADE
 
No casamento de Peleu e Tétis,
Apolo ergueu-se no festim sublime
para felicitar os neoconsortes
pelo filho que a união traria:
"Não haverá doença que o afete,
sua vida será longa." À previsão,
Tétis sorriu. Sabia que as palavras
de Apolo se cumpriam, eram proféticas,
davam aval à sina de seu filho.
E Aquiles vicejava na Tessália,
que sua beleza tanto enobrecia;
não olvidava Tétis o que ouvira.
Mas, um dia, gerontes noticiam
que o pés-velozes falecera em Tróia.
E Tétis rasga a indumentária púrpura,
a desvestia brusca; anéis, pulseiras
arroja ao chão. Rememorava, imersa
em pranto, a previsão de outrora. “O que
pretende Apolo, o sábio?”– a si indaga.
“O poeta onde andava, que em festins
embasbacava com a fala? O áugure
onde ia, quando morre um ser tão jovem?”
E os gerontes disseram que o Flecheiro
ele próprio descera em Tróia e sócio
dos troianos aniquilara Aquiles.
 
12
Os RISCOS
 
Mírtias profere (sírio, estudava
em Alexandria, sob o reinado,
entre gentio e cristão,
de Constante e Constâncio, ambos augustos):
“Teoria e estudo hão de dar-me vigor
e não serei frouxo com meus apetites!
Meu corpo, entrego-o ao hedonismo,
à evasão onírica,
aos ímpetos carnais mais radicais,
à pulsão lasciva de meu sangue, sem
laivos de fobia, a meu talante—
e a volição não falha, pois teoria e estudo
hão de ser meu lastro —,
quando me arisque, o hausto
reencontro-o, como outrora, ascético”.
 

13
A GLÓRIA dos PTOLEMEUS
 
Sou o Lagida, rei. Ninguém conhece
(força e riqueza ajudem-me) como eu,
(bárbaro ou macedônio se entristece)
o que é prazer. É reles o Selêu-
cida com o que julga – rio! – o sexo.
O que procuras tens aqui complexo:
a pólis mestra, o cume ampliconvexo
pan-grego, a fala, a arte, em tudo há nexo.
 
14
FUI
 
Não me retive. Abri-me inteiro e fui.
À voluptuosidade, real às vezes,
concretizada às vezes em meu cérebro,
fui, no luzidio pleno de uma noite.
Goles de vinhos encorpados, como sói ser
com quem desteme o prazeroso.
 

15
MAR MATUTINO
 
Deter-me aqui. Vislumbre um pouco a natura.
O rútilo blau do mar matutino,
a abóbada sem nódoa, a orla ocre. A tudo
embeleza a luz efusa.
 
Deter-me aqui. Me iluda um tal panorama
(verdade: estático, o vi fugaz);
um tal, e não, também aqui, as fantasmagorias,
as rememorações, a luxúria das miragens.
 
16
CLITO, ADOECIDO
 
Clito, rapaz gentil,
beirando os vinte e três anos,
educação primorosa, exímio em grego,
sofre de enfermidade grave. A febre o abate,
a mesma que, no ano em curso, arruína Alexandria.
 
A febre o abate, bem agora que o desgosto já
o derrubara, quando o amigo, ator novato,
não mais o quis, cansou de amá-lo.
 
A enfermidade é grave e aturde os genitores.
 
Aturde também a fâmula senil,
responsável por ele desde sempre.
No auge do desconforto,
lhe vem à mente um ídolo que, infante,
idolotrava, antes de, servil,
ingressar no lar de cristãos probos, antes de cristianizar-se.
Sorrateira, apodera-se de uns biscoitos, vinho e mel.
Deposita-os à beira-ídolo. Entoa ladainha súplices,
rememoradas tangencialmente. A tolo não se apercebe
de que ao dâimon fusco é igual
se um cristão recobra ou não sua saúde.
 

17
O OMBRO ENFAIXADO
 
Disse que bateu em um muro ou que caiu.
Mas provavelmente a razão seria outra
para o ombro ferido e enfaixado.
 
Por conta de um movimento um tanto brusco
em direção à estante, para descer algumas
fotos que queria ver de perto,
soltou-se a faixa e um pouco de sangue escorreu.
 
Novamente enfaixei o ombro, e demorei-me
um pouco nesta tarefa, pois não doía
e agradava-me ver o sangue. Coisa
do meu amor era aquele sangue.
 
Assim que saiu, encontrei sobre a cadeira em
Frente um pano das ataduras manchado de sangue,
pano que parecia dever ir direto pro lixo
e que sobre os meus lábios mantive eu,
e que beijei por longo tempo –
o sangue do meu amor nos meus lábios.
 
18
ÍTACAS
 
Quando, de volta, viajares para Ítaca
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Cíclopes,
ao colério Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões nem Cíclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de ti.
 
Roga que tua rota seja longa,
que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios para arrematar mercadorias belas;
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatos, quantos puderes achar.
 
Detém-te nas cidades do Egito -nas muitas cidades-
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
e que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhares no decurso do caminho,
sem esperares de Ítaca riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.
 

Tradutores:
Fernanda Lima
Ísis Borges da Fonseca
José Paulo Paes 
e Trajano Vieira



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